Quando eu nasci, meu pai já estava aposentado, e, na infância, minha mãe tinha tantos empregos que eu nunca consegui entender o trabalho de uma maneira normal. Nenhum dos dois saía de casa depois do café dizendo vou trabalhar e voltava no fim do dia para jantar. Era totalmente diferente do que eu via nas novelas ou nas casas dos amigos. Com eles era como se o trabalho fosse ao mesmo tempo tudo e nada em suas vidas.
Meu pai me buscava no colégio, fazia a ronda numa empresa na qual era sócio, ia a escritórios de imobiliárias entregar papéis e recolher dinheiro, e me confidenciava:
– Aqui tá todo mundo enrolando. Vamos tomar um sorvete.
Minha mãe me levava pra passear num determinado lugar e quando eu menos esperava estava sentado no fundo de uma sala onde ela dava aula para um grupo de pessoas que eu nunca tinha visto.
– Vai anotando os pontos que as pessoas mais perguntam- ela me pedia.
Espremido entre essas duas éticas do trabalho bizarras, óbvio que me tornei um jovem adulto com problemas. Trabalhava em excesso por nada, brigava com chefes em prol de clientes, e, quando comecei a ter as minhas empresas, organizava reuniões com os funcionários para levantar maneiras de pagá-los mais. Talvez por isso eu nunca entendi uma linha escrita na revista Você S.A. Para mim trabalho não era o caminho para status e fortuna, mas a única maneira de estabelecer relações e justificar minha existência no mundo.
Depois de anos sofrendo nessas relações comerciais e profissionais dramáticas que eram mais emocionais do que práticas, um dia, na análise, o meu psicanalista acertou na mosca:
– Você não consegue parar de trabalhar.
É verdade. Não consigo. Nunca consegui.
Todas as minhas relações, inclusive as pessoais, tem um quê de prestação de serviço. Conheço uma pessoa, me torno sua amiga, e, pimba!, temos um projeto juntas. Seja uma banca para vender revistas usadas, como fazia na infância; um fanzine ou associação de RPG, na minha adolescência; ou uma das inúmeras empresas que tive ou das quais participei na minha vida. Se você me conhece pessoalmente, me diz a verdade, não lhe dá a impressão às vezes que estou prestando uma consultoria?
Eu sei, é chato pacas. Você vem falar de um problema qualquer e eu já penso em como podemos transformar isso em algo: um podcast, um livro, um projeto, um evento. Parece até que estou ligado no 220, mas não estou. Eu simplesmente não consigo parar de trabalhar. Talvez daí venha a minha mania insuportável de dar palpite em tudo. Mesmo quando as pessoas só querem anuência, eu sempre tenho uma sugestão a fazer. Eu tento me controlar, mas, desculpem, é mais forte do que eu.
O tal psicanalista, que verbalizou o que eu nunca consegui, disse, na época, que o problema vinha de duas mensagens contraditórias que meu inconsciente reinterpretou. Meu pai dizia: não trabalha. Minha mãe dizia: não é trabalho. Mas o inconsciente, cheio de vontades, não entende “não”. Assim, interpretei na minha vida: “trabalha, é trabalho”.
Pra piorar, trabalho, pra mim, nunca teve a ver com dinheiro. Acho que se fosse milionário minha vida ia ser igual a que eu tenho hoje, pois continuaria fazendo a grande maioria das coisas que faço sem precisar me preocupar com dinheiro, um outro assunto problemático que não dá pra tratar aqui.
Durante muito tempo isso me angustiou, mas a idade vai te permitindo perceber que tem algumas coisas que não vão mudar em você, como aquela unha encravada crônica ou a mania de beber leite da caixinha. Então a gente precisa aprender a conviver com isso pois a opção é sempre pior.
Pra mim, por exemplo, não trabalhar é não estabelecer relações, é estar isolado do mundo, deprimido, sem função ou razão de viver. Por isso eu trabalho. O dinheiro, às vezes, é uma apreciada e necessária consequência, mas não é a razão de tudo. A coisa mais importante é, como dizia Andy Warhol, o uôrque.
Por isso, vou continuar a dar palpite na vida alheia, a montar planos de marketing, a revisar livros, a criar jogos, a fazer listas de leitura, a montar sites, grupos de estudo e tudo mais que me faça me sentir útil. Tudo mais que concretize a minha experiência na Terra e me lembre que estive aqui para servir você. Mesmo que seja acordar às cinco da manhã para escrever um post num blog que ninguém lê.
Este texto faz parte da blogagem coletiva Estação Blogagem, com o tema Tarô: cada semana de novembro será regido por um naipe que vai inspirar a produção dos textos. Para saber a programação e participar, leia esse texto aqui.
eu leio, lisandro!
tô aqui refletindo sobre o que é realmente trabalho e o que é viver. acho que viver é fazer coisinhas, nisso me identifico com vc. 🙂
adorei essa carta, vou tentar escrever o meu texto logo menos.
abraço!