Ensaios

10 de espadas

Foi sem querer.

Estava numa tarde de sábado preguiçosa inundado na quantidade de coisas para não ver no Netflix, quando decidi rever o primeiro episódio de Halt and Catch Fire. É, aquela série sobre o mercado de informática, desde o PC até o início da internet. Agora, 3 semanas depois, acabei de re-assistir ao seu último episódio, e, confesso, estou novamente maravilhado. Mas por razões diferentes daquelas da primeira vez.

Como dizem, você nunca passa pelo mesmo rio duas vezes. Ou mudou o rio, ou mudou você. Com séries e qualquer outra manifestação artística é a mesma coisa. Se você busca a mesma sensação ao resgatar uma experiência, desculpa, mas isso não se chama prazer estético. Tá mais pra dependência psicológica.

Revisitar uma obra de arte é estabelecer um novo diálogo onde, por mais que o seu interlocutor pareça, e muito grifo no pareça, estar dizendo a mesma coisa, você quer se surpreender com as suas próprias respostas. E descobrir o que mudou em você.

Na primeira vez que assisti a Halt and Catch Fire estava num momento muito ruim, angustiado. E foi isso o que a série me passou: uma sensação de ansiedade e medo que não se completou quando Joe MacMillan terminou a série da mesma forma que começou.

As batalhas e sucessivas derrotas dos protagonistas pareciam apenas um destino inescapável e sem sentido. Como o meu. Na época.

Agora, 3 anos depois ouço Joe MacMillan dizer as mesmas palavras e elas ecoam de forma diferente em mim. Mudou a série ou mudei eu?

O nome da série vem de um comando que joga a máquina numa competição interna entre suas funções o que pode destruí-la ou paralisá-la requisitando um reboot. É uma óbvia referência a competição desenfreada no mercado de tecnologia que torna reis em párias de uma hora pra outra e está coalhada de histórias de reinvenção, mas é também um lembrete das forças do destino. O destino que, como uma avalanche, uma bola de neve, é uma força impossível de parar e cujo fim todos nós sabemos. Será?

Por mais que, ao contrário do que lhes vendem nas fantasias corporativas ou de auto-ajuda de meritocracia e crescimento constante, a vida não seja um eterno melhorar, os ciclos que vivemos, apesar de aparentemente sem sentido, estão aí para nos mudar e ao mesmo tempo nos tornar cada vez mais nós mesmos. Como boa ficção, a nossa vida é uma eterna dança entre plot e exposição de personagem. Nunca percebeu isso? Sério? Então para e presta atenção. Está acontecendo a todo momento. Inclusive agora.

Na série, isso fica bem representado pela sua estrutura não circular, mas em espiral. Joe continua inquieto, mas diferente. O que o torna curioso está lá, mas a forma como ele lida com isso mudou. Bos, ainda é o boss, mas de pai tirano se torna a figura paternal e frágil que nos abraça no final. Donna e Cameron, como as forças criativas que representam, renascem, mais uma vez. E Gordon faz a sua transformação através das gerações e das construções que deixa como legado.

Não é a toa a quantidade de citações budistas ou referências taoistas na série. Estamos, sim, falando de (im)permanência. De relações, sonhos, empresas, tecnologia. Nada continua, mas não continuar é uma constante. Por isso é preciso sempre renascer. Mais do que iterações, acontecidas em que cada um desses ciclos de mudança e descoberta, são as interações que importam, pois nada acontece no vácuo, e aqueles que nos acompanham em nossa jornada são os espelhos onde nos veremos, nos construiremos e renasceremos, como a Fênix.

Por isso, o título do episódio final, 10 de espadas, é tão apropriado e tão rico em significado. 10 de espadas é um dos arcanos menores do Tarot que no baralho desenhado pela Pamela Colman Smith tem a imagem de um homem caído no chão apunhalado por 10 espadas enquanto ao fundo o sol nasce cheio de esperanças. Aparentemente um paradoxo, mas claramente uma passagem.

A vida, a carta nos lembra, não é um catálogo de vitórias. Essas mentiras você pode deixar pras entrevistas de emprego e perfis em redes sociais. A vida é um darumá. Como o tradicional boneco japonês, o nosso objetivo não é sempre estar por cima, mas ter forças para se levantar 8 vezes após cair 7. Como fizeram os protagonistas de Halt and Catch Fire, como nós fazemos todos os dias. 

Deixem-me terminar fazendo uma pergunta…

Melhor não. Não quero ouvir respostas. Desculpe, foi sem querer.

Será?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.