Decidido a finalizar o trabalho da semana anterior e fotografar campo e contracampo de todas as estátuas urbanas da orla da zona sul, tomei a difícil decisão de atravessar a fronteira. A dificuldade da decisão não se devia à distância, qualidade de acesso ou qualquer barreira física. O que realmente me assustava, e assusta, quando preciso atravessar a fronteira, é o choque cultural. A fronteira entre Copacabana e Ipanema/Leblon, mais que uma fronteira física, é uma fronteira conceitual; espiritual, quase.
Tanto é assim que a área onde um bairro começa e o outro termina é uma pororoca de idéias e emoções. Bares tradicionais e sujos são, ao mesmo tempo, elegantes e caros; pequenos locais que testemunharam momentos glamourosos vivem na infâmia; galerias alternativas dependentes das últimas novidades nunca saem de moda; e tudo culmina numa termas na rua Cunning que, como dizem alguns conhecidos, gourmetizou a prostituição. Essa distância entre Copacabana e Ipanema, de meras centenas de metros físicos, é na verdade contada em anos luz ideológicos.
Armado de determinação e coragem, encarei o desafio. Peguei uma bicicleta na Miguel Lemos e me encaminhei em direção ao Arpoador. No caminho, ainda em Copa, algumas famílias abandonavam seus picnics noturnos e outras chegavam para o sol da manhã no posto 6; enquanto isso, pequenos grupos de idosos caminhavam em direção a um final de vida um pouco mais saudável. Em breve deixaria essa fauna simpática por gente correndo em roupas de grife monitorados por gadgets de última geração. Será que estava pronto pra isso?
Passei o Forte de Copacabana e na Francisco Otaviano um vento frio me freava, me lembrando que eu estava ultrapassando uma barreira, que alí não era meu lugar. Eu redobrei o esforço e venci o vento, mesmo sabendo que ele tinha razão. Ipanema não era meu lugar.
Cheguei ao Arpoador e já encontrei Tom Jobim deixando a praia. Plácido ele seguia tranquilo e aparentemente sem rumo.
No contracampo, sua intenção ficou clara. Seu primeiro destino parecia ser o colégio São Paulo. Como um Humboldt Humboldt ele buscava algum amor perdido da mocidade nas jovens meninas que chegavam à escola pela manhã. Mas, como era domingo, ele estava sem sorte. A juventude pela qual ansiava estava em casa.
A ambiguidade moral de Ipanema já começava a mostrar sua cara. O que é deplorável em um bairro, ganha contornos românticos no outro. Enquanto em Copacabana um tarado pego com a menina de 13 anos ia ser linchado pela multidão, o “amor” do cantor pela menina feia que estava entrando na puberdade era apenas uma curiosidade. Não preciso dizer de quem estou falando.
Copacabana, com toda a sua moral distorcida, não esconde quem é atrás de meias palavras. Apesar de preto e branco conviverem funcional e, muitas vezes, amistosamente, há pouco cinza no bairro. Já em Ipanema tudo é cinza. Tudo é aceitável. Tudo é explicável. Ninguém está errado. Ninguém está certo. Nada é verdade, tudo é permitido. Em Copa, tudo é errado, nada é permitido, mas não escondemos quem sabemos ser.
Continuei pela orla e ao longe o hotel Marina apontava o final do Leblon como um farol. Imortalizado pela música da cantora homônima, ele sempre me pareceu o sumário definitivo do Leblon. Um bairro onde é bonito ser triste e a riqueza traz uma infelicidade da qual ninguém quer se livrar. Não admira que o Hotel Marina quando acende despreze a população e não o faça em nome de ninguém. Essa indiferença me incomodava tanto na juventude que mais de uma vez esperei o nascer do sol na sua frente para vê-lo apagar. Sempre em vão. Se não acende por mim nem por ninguém, por que iria apagar?
Cheguei ao final do Leblon e, fechando a minha aventura, Zózimo aproveitava a vista me ignorando.
E com uma vista dessas quem pode não lhe dar razão?
Com a missão cumprida, comecei minha volta e me questionei por que tenho tanta hojeriza de Ipanema e Leblon. Lembrei dos anos em que trabalhei ou morei na área e como me sentia inadequado. Talvez o problema não fosse do bairro, mas, sim, uma falha minha projetada neles. Talvez eu não estivesse pronto para essa liberdade moral. Por outro lado, sentia que nós, os oprimidos por nossas consciências, merecíamos uma folga. Enquanto em Copa, até na praia, olhamos sempre para dentro, presos na nossa Baía; em Ipanema e no Leblon, o olhar sempre era para fora reafirmando a validade dos desejos mais espúrios de cada um. Nós, copacabanenses, ao contrário, somos forçados a olhar uns para os outros e, consequentemente, ver e viver nossos erros. Não é à toa que Copacabana é o bairro com mais igrejas na cidade. Estamos continuamente em modo de expiação. Já em Ipanema e Leblon, distorcendo as palavras de Ney Matogrosso, não existe pecado abaixo do Arpoador.
Entrei na Francisco Otaviano e deixei os bairros sem olhar para trás. Seja por que for, não pertenço a eles. Nem suas estátuas falam a mim. Elas estão presas demais em suas subjetividades e pouco questionam quem são. Assim como as inúmeras estátuas que perambulam vivas pelos bairros.
Mas não culpo os bairros. O problema é meu. Sou eu que não estou pronto para isso. Pra toda essa aceitação incondicional. Apesar de bela e sedutora, podem ficar com essa vista ambígua e permissiva para vocês. Como bom neurótico de formação judaico/cristã, prefiro olhar para dentro. Não cometerei o erro da mulher de Lot. Não olharei pra trás. Dessa Sodoma e Gomorra, não tenho nada para sentir saudades.
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