Até que demorou.
Na semana passada, uma notícia passou discretamente pelos jornais cariocas: seria montada uma Operação “Linha Dura” na Praça São Salvador. O responsável pelo informe, o Coronel Paulo César Amêndola, secretário de Ordem Pública(?), alegou que os moradores estavam reclamando de “som alto, consumo de drogas, impedimento do acesso de carros dos moradores, e”, segundo ele, até “sexo nas calçadas” (sic).
Moro na frente da Praça e, confesso, não é mole. Meu apartamento é de fundos e às vezes, até no meio da madrugada, ouço palmas e gritos. O consumo de drogas também é visível, mas ao impedimento de acesso e ao sexo nas calçadas ainda não fui apresentado. A Praça São Salvador, como todos os agrupamentos humanos no Rio de Janeiro é, sim, uma bagunça.
Na sexta os guardas municipais chegaram e já esperávamos algum bafafá, mas choveu. No sábado, idem. Ficou pra depois.
No domingo, levamos a nossa filha ao parquinho, e a tradicional feirinha não estava lá. O chorinho corria solto, mas as barracas não estavam montadas e o público que frequenta a Praça no domingo pelo jeito decidiu ficar em casa. Em seu lugar apenas uma aglomeração dos expositores da feira em frente ao Corpo de Bombeiros discutindo com representantes da guarda municipal. Fui obrigado a conferir.
Pelo que escutei a feira não tinha todos os documentos necessários para ser montada e a lei do artesão, invocada pelo pessoal Chorinho para continuar com suas atividades, não serviu para garantir o seu funcionamento. A indignação era grande. Alguns dos expositores me reconheceram por conta de O Salvadorenho, meu fanzine, e me convocaram:
– Ó, é o cara do jornalzinho. Vem cá. Vem cá ouvir o que está acontecendo.
E eu ouvi. Gente reclamando que ia jogar quilos de comida fora; gente reclamando que o Chorinho não foi solidário e, ao invés de parar, continuou como se nada estivesse acontecendo; gente reclamando que a guarda estava atacando outras questões que não as alegadas pelo nosso estimado coronel; gente reclamando que se a feira era ilegal por que não foi fechada há mais tempo; gente reclamando do aviso da suspensão da feira em cima da hora; gente reclamando disso; gente reclamando daquilo. Gente reclamando.
Tentei botar panos quentes e pedir que o pessoal se unisse. Ao invés de ceder ao golpe mais antigo do governo (colocar cidadão contra cidadão), era importante que nos uníssemos contra governantes que só aplicam as leis quando lhes é conveniente. Era importante focar em ações para mantermos um dos raros espaços democráticos da cidade em funcionamento. Era importante, ao invés de só fazer resistência, encontrar uma maneira de nos tornarmos parte da solução e não do problema. Falei de tudo que era importante, mas ninguém me ouviu. Também pudera, analisando o meu discurso, estava sendo mais esquivo que o pessoal do município que impedia o povo de trabalhar sem uma justificativa verdadeiramente forte. Em minha defesa, não tinha o que dizer pra eles. A feira estava ilegal? Pelo jeito, sim. Isso prejudicava muita gente? Com certeza. O que dizer numa hora dessas além do usual “eu te entendo, mas você está errado também”?
Dei uma volta na praça e no comércio das redondezas. O impacto do fim da feira era óbvio. Botecos vazios, mas menos barulho. Tristeza, mas menos sujeira. Será possível ser animado e carioca sem bagunça? Acho que não.
Compramos o que alguns dos expositores conseguiram vender para minimizar seu prejuízo e voltamos pra casa num misto de desolação e espanto.
Crivella conseguiu. Mostrou sua “força” atacando o “centro de operações” dos apoiadores do Freixo. E, pior, acirrou a briga da feira contra o Chorinho, inimigos moderados de longa data. O que esperar do futuro? A liberação da feira na semana que vem e o fechamento do chorinho? O aumento da tensão em ambos os lados? Um fato violento que justifique ações mais duras? E, enfim, o gradeamento da praça?
Seja que caminho seguirmos, estamos assistindo ao início do sepultamento de mais um espaço de congraçamento popular.
Se olharmos para as justificativas do coronel para a sua ação, todas são válidas, mas lhes pergunto: a mesma reclamação não vale para outros lugares? A escolha da Praça para essa operação não é claramente uma retaliação conta o bairro que votou massivamente no candidato da oposição e onde ocorreu o escândalo que mais deu dor de cabeça ao prefeito durante a sua campanha? A ação pode ser correta, mas a sua justificativa política claramente mostra a face vingativa do nosso prefeito. Bem vindos ao Rio de Janeiro do Antigo Testamento.
Morei em Copacabana em frente ao Bip Bip e os problemas eram similares. Alfredinho, dono de um dos últimos pontos tradicionais do samba carioca, continua sendo alvo do ódio dos governos apesar do seu estabelecimento ser tombado. Acredito que diversos outros lugares sofram com isso. A Baratos da Ribeiro, da qual fui sócio, sofreu. E é sempre do mesmo jeito. Estamos errados nos excessos e no desleixo nas nossas ações de mobilização popular mas as ações governamentais são sempre desproporcionais e guiadas por motivos torpes. E como sabemos: se odiarem você o suficiente, encontrarão uma forma legal de ferrar com você. Afinal para quê ter poder senão para utilizá-lo para atacar seus inimigos e alimentar seus egos carentes e famintos?
O fim de semana terminou num suspiro. No fim do dia, dei mais uma volta na praça e já via gente concordando com o governo. Tinha gente até dizendo que a feira impedia o povo de ir a pé até o Super Mercado. Pronto. Tava explicado o impedimento de acesso. Rapidamente tínhamos chegado ao ponto em que os empregados assumiam o discurso do Patrão. Crivella mostrou a que veio. Deve ter diploma de maldade da Faculdade Niccolo Machiavelli para membros da bancada evangélica.
Ontem, segunda feira, trazia a minha filha da escola e resolvemos passar no parquinho. Nem sinal do pipoqueiro ou do Pula Pula. Uma tristeza só. Por outro lado, havia uma presença significativa dos guardas municipais para inibir os ambulantes.
– Cadê o Pula Pula, papai?
– A guarda municipal não quer que tenha Pula Pula, filha.
– Porquê?
– Porque o governo odeia o nosso bairro- falei bem alto pros guardas ouvirem.
Eles apenas riram do meu arroubo passivo agressivo.
– O governo é bobo, papai. É bobo e feio.
– Tem razão, filha. É bobo pacas.
Obrigado, Marcelo Crivella, graças a você ficou mais fácil criar minha filha como anarquista.