Ensaios

Ódio rotativo

Nos anos 80, um dos meus programas preferidos com o meu pai era vê-lo brigar na Mesbla. Se você nasceu depois do fim da hiper inflação, deixa eu te situar. A Mesbla era uma rede lojas de departamentos assim como a Sloper e a Sears. Desculpe, referências tautológicas. Estou tentando explicar a um deficiente visual o que é o verde dizendo que é a mistura do azul com o amarelo. Esclarecendo melhor, Lojas de Departamentos eram shoppings primitivos. Ao invés de conglomerados de lojas num mesmo prédio, tínhamos uma só enorme loja com diversos departamentos, de lingerie a lanchas passando por instrumentos musicais e brinquedos. Pra quem não sabia exatamente o que queria comprar era ideal. Como os shoppings. Assim como para quem precisava comprar a crédito ou a prestação.

Na época da hiper inflação, crédito era uma coisa difícil. Bancos só serviam para guardar a sua poupança e dobrar o seu salário para ser usado no mês seguinte quando os preços tinham triplicado. Não eram essas máquinas de vender dinheiro e produtos financeiros de hoje. Viver nos anos 80 não era mole, mas precisávamos consumir, e por isso apelávamos para os carnês, que funcionavam como poupanças exclusivas para o consumo, como o Baú da Felicidade, e para o crédito das próprias lojas através de cartões que só podiam ser usados nelas. A inadimplência, acredito, era alta, mas escravizar um grande número de fregueses a sua marca devia ter lá suas vantagens.

Meu pai, como os demais brasileiros, não agiu diferente. Não tínhamos carnê do Baú, mas tínhamos um cartão. Da Mesbla. No início foi genial. Ganhei muitos brinquedos, que eu queria, e um violão e roupas, que eu não queria. Minha mãe deve ter feito lá suas compras e até o meu pai, um dedicado porém pretenso avaro, deve ter comprado uma coisa ou outra. Mas depois do sorvete, sempre vinha o palito. Então, todo mês, sempre num sábado, meu pai me pegava em casa e nos encaminhávamos para a Mesbla da rua do Passeio em peregrinação com um saco de dinheiro para pagar o cartão nos guichês da loja. Pensando bem agora tenho a impressão que ele achava que isso ia me ensinar algo. Se era isso, lamento, falhou.

No primeiro mês do cartão, meu pai entrou todo pimpão na loja, cumprimentou todo mundo e pagou sem reclamar. No segundo, entrou calado, esperou quieto na fila e conversou baixinho com a caixa sobre opções de rolamento da dívida. No terceiro, entrou batendo os pés, esperou impaciente na fila, bufou em frente a caixa e entregou o dinheiro contando nota a nota. No quarto…

Um aparte. Se hoje os juros são surreais, imagine esses mesmos juros com planos econômicos, mudança de moeda e preços corrigidos pela inflação. As alterações de valor real poderiam até ser pequenas mas a impressão de mudança era gigantesca. Não acredita? Então deixa eu te falar. Pra eu comprar revistinha na banca era preciso consultar uma tabela. As revistas não tinham preço, tinham um código que era reajustado mais de uma vez na semana. Por isso íamos todo dia na banca para comprar mais barato quando elas eram lançadas. Sentiu o drama?

Onde estava mesmo? Ah, no quarto mês. No quarto mês meu pai surtou. Entrou na loja nervoso, suando, mas chegou num espírito conciliador, desejando secretamente que a loja concordasse com ele. Ouviu as explicações do caixa, do gerente e até do segurança da loja. Não se convenceu. Tinha algo errado. Ele sabia que tinha algo errado. Tentou argumentar. Ficou mais nervoso. Deu uma volta na loja para se acalmar. Não adiantou. Voltou pros guichês. Falou tudo de novo esperando um resultado diferente. Não rolou. Aí o lance fedeu. Ameaçou, gritou e, depois de toda a algazarra, pagou a contragosto o valor total, chamou a atenção dos demais fregueses, rasgou o cartão teatralmente na frente de todo mundo e me puxou pra fora da loja:

– Nunca mais voltamos aqui, filho. Mesbla nunca mais! Nunca mais!

Mentira. Na semana seguinte voltamos. Minha mãe precisou de uma batedeira e meu pai foi pedir uma substituição do cartão:

– Desculpe, perdi o meu- alegou submisso.

Depois dessa primeira vez, o ciclo se repetiu. Muitas vezes. De quatro em quatro meses íamos do desenfreado êxtase do consumo ao espetáculo da rejeição do sistema capitalista. As lojas mudavam, mas o ciclo sempre estava lá. Sempre encerrado com o mea culpa do “preciso de crédito de novo”. Como eu disse, não era mole viver nos anos 80.

Depois de anos na faculdade de psicologia, agora entendo que esses rituais tinham lá sua razão de ser. Meu pai precisava reafirmar seu poder no mundo pelo direito ao consumo ao mesmo tempo que precisava externar a sua insatisfação em ser escravo desse mesmo processo. Neurótico básico. Odeia o que deseja. E ama se odiar. Como todos nós.

Ontem, fui pegar dinheiro no banco e o caixa eletrônico já informava sobre as mudanças no crédito rotativo. Se usado por mais de 30 dias ele seria bloqueado e o cliente obrigado a negociar a dívida. Não acho mal negócio mas vai interferir nos processos neuróticos de muita gente.

Infelizmente, ao contrário do meu pai, esse povo não vai ter a sua disposição uma plateia para vê-lo rasgar seu cartão para depois, em segredo, ir na semana seguinte pedir crédito novamente. Hoje, a distância imposta pela automatização dos sistemas de opressão nos impede de ter esses momentos de catarse. Vamos da raiva à resignação em segundos. Até o processo de destruição do nosso ego se tornou mais eficiente.

É claro que em alguns momentos a corda rompe e a gente surta. Me lembro de ter rasgado um talão de cheques novinho no meio de um carnaval de raiva do banco.

– Nunca mais uso cheque! – uma promessa que eu cumpri.

Mas isso foi no final dos anos 90. Na mesma época teve um amigo meu que, ao descobrir no meio de uma madrugada num 24 horas que não tinha dinheiro, mijou no banco todo. E tem aqueles casos mais atuais que a gente acha no youtube do pessoal que perde a linha com os pobres coitados dos atendentes telefônicos, que, como as tropas nazistas em Nuremberg, repetem a exaustão que só estão cumprindo ordens.

Apesar desses rompantes anedóticos, com certeza, nossas possibilidades de resistência e revolta inócuas estão reduzidas. Aprendemos nosso papel na máquina e, por mais que sintamos dor ao sermos espremidos, sofremos em silêncio soltando pequenos ais nas redes sociais.

Nesse cenário de crise talvez isso se torne uma oportunidade para o setor bancário. Você ganha direito a dar um tapa num gerente por ano no pacote de serviços hiper ódio master. E ao comprar nosso título de capitalização “Eu te odeio” concorre a dar um chute na bunda do nosso presidente.

E por que parar no setor bancário? A política que nos dá tanto ódio inextravasável é ideal. Todo ano sortearemos brasileiros que escolherão políticos para, supremo deleite, tomar um generoso copo de chorume em rede nacional. Se somos escravos dessas ignorantes elites financeiras e políticas e nada podemos mudar, acho importante que comecem a pensar em métodos para lidar com o nosso ódio ou perderão rapidamente os burros que puxam suas carroças por loucura, doença ou morte.

Já posso escolher o meu político para tomar o copo de chorume?

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