Ao contrário do que acontece entre as mulheres de melhores amigos, os consortes, namorados ou maridos de melhores amigas precisam ter uma relação maior do que simples civilidade. É preciso encontrar pontos em comum, simpatias e identificações que permitam um mínimo de amizade. Afinal, ao contrário do que acontece com as mulheres de melhores amigos, seremos obrigados a passar muito tempo juntos enquanto elas entram em lojas, vão ao banheiro, discutem quintas pessoas ignorando as nossas presenças ou simplesmente impõe a nossa participação de metade de casal em eventos sem nos consultar. Se vamos passar tanto tempo sozinhos, mesmo que acompanhados, com outra pessoa é melhor que ele seja pelo menos um pouco nosso amigo.
Com a gente foi assim. Quando nos conhecemos foi, óbvio, constrangedor. Fomos apresentados como crianças que precisam se tornar amigas por laços que nos transcendem:
– Olha, fulaninho, esse é o sicraninho. Vocês vão ser melhores amigos daqui por diante, tá?
– Tá- nós respondemos sem opção.
Ao pouco começamos a buscar onde escorar a nossa relação. Graças a Deus você gostava de quadrinhos, mesmo que não dos mesmos que eu, e a minha biblioteca permitia conversas movidas pelo que não sabíamos um do outro.
– Uau, você curte Conan?!
– Já gostei mais. Hoje em dia acho os livros melhores do que os quadrinhos.
– Eu gosto pacas de 007. Já vi todos. Várias vezes. Você gosta?
– Não vi todos, mas gosto bastante da fase do Roger Moore.
– E o Daniel Craig? Tá perfeito, né?
– Concordo que seja o mais fiel ao livros, mas 007 pra mim é um lance anacrônico. Por isso a fase galhofa do Roger Moore é a minha preferida.
– Deixa de ser chato.
– Sério. Um dia vou escrever um artigo sobre isso.
– Quando escrever me manda pra eu ler.
– Beleza.
E assim, como meninos discutindo seus heróis e quadrinhos fomos formando nossa relação. Quando nossas mulheres se encontravam, era quase um play date para nós. Separávamos jogos de tabuleiro, filmes e livros para ofertar um ao outro e estreitar os nossos laços.
– Pô, já leu essa história do Fantasma?
– Eu gostava da época do Lee Falk.
– Deixa de ser chato. Essa parada é nova mas é bem legal. Lê. Leva.
– Sei lá.
– Leva.
– Tá, mas não quer levar o livro do Conan?
– OK. OK. A gente troca, então. Beleza.
– Beleza.
Entre empréstimos e comentários do que nos ofertávamos, a nossa relação foi sendo construída. Aos poucos não só nos tornamos colegas, mas tábuas de salvação nos protegendo mutuamente em situações sociais das quais não queríamos tomar parte.
– Sábado vai ter o aniversário da Fulana – nossas mulheres diriam.
– O marido da Sicrana vai? – perguntaríamos um do outro.
– Vai, por que?
– Nada, só pra saber. Se ele for vai ser menos chato.
Aos poucos, por nos ajudarmos a sobreviver a ambientes sociais que eram particularmente desconfortáveis para nós, o coleguismo se tornou amizade e todo o resquício de embaraço inicial tinha sumido na nossa relação. Inclusive, começamos a prometer nos encontrar separadamente, o que nunca cumprimos, e a estimular a amizade de nossas mulheres só pra podermos nos ver.
– Tem mó tempo que você não vê a Fulana.
– Pois, é.
– Chama ela aqui na sexta pra tomar um cerveja e comer um chili.
– Tem certeza?
– Tenho. Vê se o chato do marido dela pode vir, tá?
– Tá.
Ou pior, começamos a inventar motivos idiotas pra nos ver.
– Pô, não tô conseguindo instalar essa porra na Smart TV.
– Olha no manual como faz.
– Não, acho melhor chamar o chato do Sicrano aqui. Ele entende dessas porras.
– Tem certeza?
– Claro, chama eles aí e a gente toma uma cerveja também.
– OOOOK.
Enfim tudo se tornou natural e nos tornamos mais do que uma simples extensão da amizade de nossas mulheres. Mesmo nos chateando, nos tornamos amigos.
Um dia você ficou doente.
Não levamos a sério. Você ia superar isso. Imagina só, logo você ia deixar se abater? Não deixou e depois de um tratamento complicado especialmente pela sua crença na imortalidade que lhe impedia de ter um plano de saúde, tudo voltou ao normal.
A doença se tornou mais um assunto que passamos juntos mas tinha sido, graças a Deus, superado. Foi mais um lance que mostrou o quanto estávamos aí um para o outro. Chatos, porém amigos.
Mas essa doença é safada e acabou voltando. Dessa vez pior, mais rápida e mais destruidora. Mal ficamos sabendo da volta, você, com suas razões, se isolou. E nós tolamente, a princípio, respeitamos esse tempo. Em poucos meses, ficamos sabendo que a situação tinha piorado.
Quando você começou o segundo tratamento, quebramos o protocolo e fomos visitá-lo. Você estava mal; fraco; cansado. A esperança que tivera no primeiro tratamento, apesar de novamente declarada, parecia um discurso velho e gasto. Ao contrário da primeira vez, em que a vida continuava apesar de tudo, dessa vez tudo parara em nome da doença. Por mais que torcêssemos, não parecia que havia chance de ganhar. Quando o tratamento chegou ao fim, as notícias não foram boas. A sua saúde tinha piorado.
Fomos te visitar novamente. Quase não conversávamos mais das coisas que nos tornaram próximos. A vista lhe faltava, a cabeça doía, e não tínhamos como conversar entre chopes sobre as coisas das quais gostávamos. A doença , como uma convidada indesejada, entrara na sala e pedia toda a nossa atenção. A nós só restava nos calar e ficar lado a lado tentando ignorar o que gritava na nossa frente.
Sem saber como fazer o meu papel de amigo numa situação como essa, enfim cumpri a minha promessa, escrevi o artigo sobre o 007 que tanto tinha prometido e lhe enviei. Você, ao contrário do que eu esperava, leu e tinha uma opinião a respeito:
– Entendi o que você quer dizer com anacrônico, mas, porra, você é chato pra caralho. Não dá pra deixar as pessoas curtirem as coisas sem dar uma opinião? Pô, deixa de ser chato.
Ainda havia muito de você por baixo de toda a doença que o cercava.
Nessa época, você deu uma pequena melhorada e surgiu a esperança de um novo tratamento. Dessa vez a gente tinha certeza que as coisas iam dar uma virada. Você, mesmo fraco como estava, ia conseguir se recompor, dar a volta por cima e deixar essa história pra trás como da última vez.
Infelizmente, o tratamento não deu resultado. Nem você, nem nossas mulheres, nem eu sabíamos o que fazer ou dizer. Por isso simplesmente ficávamos lá, esperando. Esperando um milagre, o fim, uma virada para uma situação que se era quase insustentável pra nós, imagina como era pra você.
Essa semana você foi internado. Não conseguia mais comer e ficou dias sem se alimentar direito. Talvez dessa vez você conseguiria ganhar um peso e, mais fortalecido, começar um caminho à recuperação. Mas não deu tempo nem de ter esperanças. Ontem você resolveu ir embora.
Me faltam palavras no momento. Por isso escrevi tantas. Não entendo desígnios divinos e tenho grande dificuldade em botar tudo na conta de uma cruel aleatoriedade sem rosto. Não sei se foi bom ou se foi ruim; se você deveria ter lutado mais ou menos; se foi melhor descansar; ou se devo me sentir culpado por ter feito menos do que poderia fazer. Simplesmente foi. E contra isso não existem argumentos. Perdi um amigo.
Sem saber o que sentir ou dizer, sou obrigado a retribuir o que você vivia dizendo pra mim:
– Porra, cara, deixa de ser chato.
Infelizmente é tarde demais pra isso e minhas palavras ecoam nas paredes surdas. Mas confesso que quase consigo ouvir você respondendo:
– Olha quem fala? O cara mais chato do mundo.
Edson, foi um prazer te chatear. Boa viagem.
O “Gaúcho” como o chamava carinhosamente, sempre foi muito maneiro comigo.
O encontrei ano passado no “Diobar” no bairro do Flamengo é ele me falou da doença é que a havia superado. Que pena. Não sei se chegará aos ouvidos da Lu, Mas deixou aqui minhas condolências à viúva.
Li seu texto por acaso por conta da Gabi ter postado no Facebook e parabéns Lisandro.
Vc definitivamente é um baita de um escritor.
Abraços do Jr.