Ensaios

Gula e Ganância

Mauro chegou ao aeroporto de Wattay exatamente às 20:32, horário local. Logo após passar sem problemas pela alfândega laosiana, encontrou com o advogado de sua tia Carô, um senhor bastante idoso, chamado Loum Soung, que o aguardava no desembarque. Com uma certa dificuldade, se cumprimentaram em inglês e seguiram para o carro que os esperava para levá-los ao enterro da sua tia perdida. Ivete mandou uma mensagem: “E aí, a herança?”. Mauro respondeu: “Nada, ainda”.

O motorista cortava as ruas de Vientiane com agressividade e precisão. Loum Soung, no seu inglês ruim, contava a Mauro como Carô tinha auxiliado o Partido Popular Revolucionário do Laos a manter o poder desde 1975 e com isso construído uma pequena fortuna e um grande prestígio.

– Ano em que nasci…- Mauro murmurrou

– Are you hungry? – Loum Soung o interpretou mal.

O advogado deu algumas indicações ao motorista e logo eles pararam em frente a um restaurante. Mauro não reclamou. Ele até podia comer alguma coisa. Sempre. Ivete insistia, enviando mensagens: “E aí, quanto ela te deixou?”. Mauro respondeu: “Não sei. A caminho”. Eram 21:58.

Loum Soung e Mauro entraram no restaurante pequeno e congestionado e sentaram numa janela que dava vista para a rua. Tudo era muito barulhento, laranja e vermelho. Mauro pegou o cardápio e não entendeu nada. Loum Soung o tirou da sua mão e ofereceu:

– My treat.

Mauro entendeu e relaxou. Os garçons traziam um prato atrás do outro, enquanto Loum Soung ia enumerando as propriedades de sua tia: as minas de pedras preciosas, as casas e hotéis que só podiam ser possuídas por estrangeiros, as plantações de arroz, o zoológico de animais exóticos, e a rede ferroviária em Saravane.

– Sarajane?- Mauro não entendeu.

Loum Soung e alguns clientes próximos que ouviram seu comentário riram alto. Loum Soung gritou algo pro gerente do restaurante, que, em resposta, colocou um CD no sistema de som e logo todos cantavam ou dançavam o hit: “Vamos abrir a roda”, sucesso no Brasil em 1987 e, aparentemente, uma preferência nacional no Laos.

Enquanto o Axé dominava o ambiente, Mauro se deliciava com Laap, uma salada de carne, Paeng Pet, um cozido de sangue de pato, e Jaew Bong, um guisado de carne seca de búfalo. Tudo estava muito bom e em grande quantidade, mas Mauro sentia falta de algo a mais e chamou o gerente:

– Fish?

– NO FISH!- o gerente frustrou seus desejos.

Mauro e Loum Soung deixaram  restaurante empanzinados às 23:43 enquanto o Laos se tornava uma pequena filial do Farol da Barra de Salvador.

Retomaram a viagem. Ivete mandou mais uma mensagem: “Quando tiver notícias da herança, me avisa”. Mauro respondeu: “OK”.

Rodaram a noite toda pelas estradas esburacadas do Laos e às 5:22, com o sol nascendo, chegaram a propriedade de Carô, uma enorme hacienda estilo mexicano no meio do sudeste asiático. Na porta um grupo de empregados, vestidos como bandoleiros de um faroeste espaguete, os aguardava. 

Loum Soung os afastou como um enxame de moscas e arrastou Mauro pela casa até chegarem a um salão onde Carô, completamente nua, repousava sobre uma cama de flores.

Mauro ficou paralisado com a surpresa. A tia, que só tinha visto uma vez em 1994, por conta de uma visita que ela fez ao presidente Itamar, em homenagem ao time vitorioso na Copa dos Estados Unidos, estava alí pura e completa, como uma deusa baiana no meio de um filme sobre a Guerra do Vietnam. Loum Soung interpretou mal a reação de Mauro mais uma vez:

– Hungry?

Mauro aceitou. Sempre havia espaço para fazer uma boquinha. Loum Soung gritou para os empregados que trouxeram Khao Piak Sen, uma sopa de macarrão, acompanhada de pão de arroz. Ivete insistia: “Como estão as coisas? Estou ficando preocupada”. Mauro respondeu: “Relaxa, tudo tranquilo”.  

Mauro, completamente satisfeito, mas com aquela sensação de desejo mal resolvido,  chamou uma das empregadas e perguntou:

– Fish?

Ela pareceu assustada e se afastou rapidamente. O que tinham contra peixe no Laos? Ele foi ver as horas e deu falta do relógio.

Começou a refazer o caminho até o carro, para encontrá-lo mas nada. Loum Soung, sem entender o que acontecia começou a ficar tenso. Os empregados o observavam nervosos pelos cantos, como baratas esperando pelo dedetizador. Loum Soung chamava Mauro e perguntava o que havia acontecido em inglês, mas Mauro não entendia nada e batendo no pulso, gritava:

– Relógio! Relógio!

Os empregados e Loum Soung se escandalizavam a cada reação de Mauro que poderia muito bem estar xingando suas mães ou maldizendo o Partido Popular Revolucionário do Laos. Para dar um fim a essa crise de Mauro, Loum Soung lhe aplicou um cirúrgico golpe no pescoço que o fez desmaiar. Ivete mandou uma mensagem: “Cade tú?”. Não houve resposta. Ninguém sabia que horas eram.

Mauro acordou no chão de terra batida. A sua volta um enorme aquário cheio de peixes estranhos e um  terrário onde cobras e lagartos sofriam espremidos. Loum Soung se aproximou de Mauro com uma caixa e a entregou a ele:

– Yours.

– Herança?

Yeah. Heritage.

Mauro percebeu que cometeu algum erro e se havia algo a receber de Carô só aquilo tinha restado. Colocou a caixa embaixo do braço e seguiu Loum Soung em direção ao carro. O motorista os esperava usando o relógio de Mauro. Ele preferiu não falar nada. Eram 11:42.

Mauro voltou sozinho para o aeroporto evitando responder as mensagens de Ivete. A missão tinha sido um fracasso, mas nem isso ele tinha coragem de conferir. Podia até ser que a caixa estivesse cheia de jóias, pedras preciosas, dinheiro, mas a sua intuição lhe dizia que não era nada disso. Na caixa estaria, sim, a concretização da sua derrota. 

Chegou ao aeroporto, segundo o seu relógio no pulso do motorista às 17:34. Ainda faltavam 9 horas pro seu voo de volta. Sentou-se no salão de espera e finalmente resolveu abrir a caixa. Dentro dela um peixe-pedra aparentemente cozido pela elevada temperatura ambiente. Lembrou que não comia nada desde o café e resolveu provar um pedaço. Estaria bom? se perguntou. Não estava. Pra dizer a verdade era o peixe mais venenoso do mundo. 

Caiu no chão sem conseguir respirar. Enquanto os locais tentavam acudi-lo, ele pegou o celular para mandar uma última mensagem a Ivete. Finalmente ele viu que ela, como se adivinhasse o desfecho dessa aventura, repetira uma mesma mensagem várias vezes: “Dá notícias, estou com um mau pressentimento. Dá notícias”. Ele, sufocado, sendo contido por uma pequena multidão, respondeu como um último suspiro: “Não peça Peixe!”.

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