Ficção

As merdas do Arnaldo

Arnaldo, apesar de despachado com os amigos, socialmente era um homem de pudores. Por exemplo, ele nunca comprava papel higiênico no pico de movimento do supermercado.

– Porra, Arnaldo, vai comprar papel. Tá pra acabar- Flavinha dizia.
– Relaxa. Pra hoje tem. Vou amanhã.
– Que diabo de frescura é essa, homem?
– Porra, Flávia. Só não quero que o pessoal lembre que eu cago.
– Arnaldo, cá entre nós, todo mundo caga.
– Eu sei. Eu sei. Só não quero que pensem em mim cagando.

Arnaldo tinha uma certa razão. Não era nada interessante pensar num homem peludo, de quase 2 metros e por volta de 150 quilos cagando.

Por outro lado, cagar era uma das atividades que aparentemente lhe davam mais prazer. Em casa, onde podia ser ele mesmo, longe dos olhares e da reprovação da sociedade, ele se entregava a esse amor por inteiro. Logo depois de terminar uma longa e variada refeição, ele acendia um cigarro, batia na barriga e dizia:

– Agora vou ao trono para coroar essa refeição digna de um rei.

No trabalho, ele também sentia o prazer de evacuar, mas tentava ser mais discreto. Ia no banheiro perto da Copa, que tinha menos movimento, e, ao terminar seus afazeres, batia na barriga e murmurava:

– Não é todo dia que a gente dá uma cagada dessas. Não é todo dia.

Mas era todo dia. E quase toda hora.

Enquanto Flávia sofria de uma bruta prisão de ventre que a deixava literal e figurativamente enfezada, Arnaldo, como um relógio, visitava o banheiro para, segundo ele, “Fechar o ciclo da vida”.

Um dia, a Flávia percebeu que havia algo estranho e perguntou:

– Você foi ao banheiro hoje, Arnaldo?

Arnaldo fez um esforço, mas não lembrava se tinha ido ao banheiro ou não. Quase sem acreditar foi checar o livro que lia quando estava cagando e, sim, ele não tinha mudado de página desde o dia anterior.

– Estranho- murmurou.

O dia seguinte a mesma coisa. Nada de vontade de ir ao banheiro. Flávia até perguntou se ele estava sentindo alguma dor, mas ele não sentia nada.

– É como se estivesse indo normalmente. Normalmente.

Ele até fez um esforço, mas nada saía. No quinto dia sem cagar, ele foi ao médico.

– Calma, amigo. Tem gente que vai pouco mesmo.
– Eu não sou esse tipo de gente. Eu vou sempre.
– Mudou algo na sua alimentação?
– Não.
– Mudança em atividade física?
– Também não.
– Tá bom. Vou pedir uns exames, mas tenho certeza que não é nada de mais.

O médico estava errado.

No exame de sangue deu uma diferença na quantidade de glóbulos vermelhos e no tamanho das hemácias e leucócitos, o que podia ser um indicativo de células atípicas e imaturas circulando no sangue. Ou seja, câncer.

Arnaldo, continuou sem cagar, e fez os exames complementares que vieram a confirmar que estava com a doença maldita.

A comoção entre todos nós foi grande, mas Arnaldo parecia inabalável. Um dia, num momento de vulnerabilidade, ele nos confidenciou a única coisa que lhe incomodava:

– Sabe? Nem tenho medo de morrer, mas, pode crer, sinto uma bruta saudade de cagar.

Eventualmente, com o início do tratamento, ele voltou a evacuar, mas, segundo ele, não era a mesma coisa:

– Sabe? O prazer foi embora. Quando o intestino quer matar o hospedeiro, cagar vira só uma função.

O primeiro tratamento terminou, mas não foi bem sucedido. Enfim os médicos resolveram agir de forma mais agressiva e decidiram tirar logo a parte mais impactada do seu intestino. Arnaldo recebeu a notícia estoicamente, mas Flávia, na vésperas da cirurgia, vez ou outra o via acariciando a barriga e murmurando:

– Saudades dos nossos rolês, amigo. Saudades.

Ele foi operado. O câncer parecia controlado, mas a rotina da bolsa de colostomia foi demais pra ele e Arnaldo entrou numa puta depressão. Apesar de aparentemente curado, ele foi definhando lentamente e de repente seu coração simplesmente parou. Quase como se a vontade de viver tivesse lhe abandonado.

No velório, todos confortamos Flávia, mas ela estava estranhamente de bom humor compartilhando várias histórias de idas clássicas de Arnaldo ao banheiro.

– Viver com Arnaldo era ótimo, mas todas as suas histórias eram de merda. Literalmente- ela encerrava mais um causo e ria.

Enquanto todos processávamos o luto de Arnaldo, o pudor que ele tinha foi totalmente pro espaço. Sua vida privada, na privada, tinha se tornado pública e tudo em que conseguíamos pensar era nele, no Arnaldo, cagando.

É a vida tem dessas coisas. Às vezes as coisas que mais te dão prazer são aquelas que acabam te
levando pra cova. Fazer o que? Nem todas as histórias que vivemos tem finais edificantes ou, mesmo, cheiram bem. Saudades das merdas do Arnaldo. Saudades.

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