Ensaios

A arte que não se ensina

Popular, mas repetido como farsa
Popular, mas repetido até se tornar uma farsa

É impossível ir a uma exposição hoje em dia sem vê-los. Alí, em frente aos quadros, falando alto, correndo entre as obras, crianças, todas de uniforme, orbitam em volta das guias educativas dos museus.

– Tia, o que quer dizer esse quadro?
– Vamos ver se você adivinha.

Você espera. As crianças chutam, falam diversas loucuras, algumas bastante interessantes, até que uma delas dá parte da resposta que estava no livro de instruções da guia.

– Bingo! Você acertou. Parabéns.
– U-HU!- as crianças congratulam àquela que “entendeu” a arte.

Com a tarefa cumprida, eles se movem para o próximo quadro. Mas não lhe deixam em paz. Aos gritos, a guia tenta organizar o caos primordial que elas representam.

– Ei. Ei! EI! Vamos ver se vocês descobrem o que está escondido nesse quadro.

As crianças, estranhamente respeitosas, se aproximam da tela, no limite das linhas vermelhas marcadas no chão, e apertam os olhos como míopes tentando encontrar o que aparentemente só a guia vê.

– Vamos lá! É fácil. Alí. No canto direito. Alguém viu?

Seus corpos se torcem num só movimento como uma naja dançando em frente a um flautista. Nada. A guia tenta ajudar:

– É um biiiiii…. biiiii….biiii…..gooo….
– …gode? Bigode? – uma das crianças chuta mesmo sem ver.
– Isso. Parabéns! Um bigode. Todo muito viu?

Ninguém viu, mas todas espremem os olhos como podem e soltam falsos suspiros de alívio como se tivessem encontrado. “AAAAh”, “AAh”, “Ah”, “Ah, tá…”. Elas continuam seu caminho educativo. Nós ficamos. Tentamos curtir o quadro, mas agora só vemos o maldito bigode da guia dependurado no canto direito do quadro. Ah, é, lá está ele. O importantíssimo bigode. As crianças continuam nos cercando. Entre um quadro e outro, elas discutem entre si:

– Eu vi o bigode antes.
– Viu, nada!
– Vi, sim! Até ganhei dois parabéns da Tia.
– Eu ganhei três.
– Hum, mas eu entendi a arte e você, não.
– Eu entendi, sim!
– Não entendeu nada.

A discussão continua sem sinal de término e elas correm para a próxima parte da exposição. O artista aparece em um vídeo. Todas se sentam no chão em reverência à tela que se move. Isso, elas conhecem bem. Fazem cara de entender o que se passa. Mão no queixo. Cabeça levemente inclinada para esquerda. Olhos semi-abertos. A guia ensinou direitinho. O vídeo acaba. A algazarra volta ao clique de um botão de mute.

– Ei. Silêncio! Então, o que vocês acham que o artista quis dizer?

Ninguém sabe. Alguns resmungam. A guia tenta aproveitar os sons como começos de respostas.

– Quase. Quase. Isso! Nesse vídeo o artista mostra que era bem maluquinho.

Todas riem. Elas correm procurando o próximo teste, mas finalmente chegou o fim da exposição. As crianças dispersam e você percebe que não aproveitou nada. Entre bigodes, artistas maluquinhos e buscar o signficado racional do que deveria ser sentido e experienciado, não sobrou nada. Você pensa em voltar para tentar resgatar a beleza e as sensações, mas sabe que o momento educacional da arte já os maculou. A arte, com tanta explicação e tentativas de popularização, perdeu a força e se tornou apenas mais uma tarefa no seu currículo anual de atividades. Mesmo sabendo que não vai adiantar nada, você dá meia volta pra tentar o impossível, e quase esbarra com um casal casualmente arrumado com roupas rasgadas e óculos sem lentes de pesada armação.

– Eu te disse que fui no museu dele na Espanha?
– Sim, sim. Eu também. E fui no daquele outro cara também.
– Como é o nome mesmo dele?
– Aquele. O que não tem bigode.
-Ah, nesse eu também fui.
– Droga- o outro resmunga baixinho.

Enfim, você desiste. No dia em que resolveram popularizar a arte, tiraram de você o prazer de experiênciá-la. Se ainda eles tivessem sido bem sucedidos, eu poderia dizer que o sacrifício foi válido, mas, infelizmente, foi um fracasso completo. Ou não. Sabe-se lá qual era o objetivo deles com essa dessacralização.

Por falar nisso, você viu o bigode escondido do artista maluquinho?

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