Li hoje pela amanhã “A Teoria da Bolsa de Ficção” da Ursula Le Guin. A sugestão do ensaio principal do livro, acrescido de dois ensaios complementares de outras autoras sobre o texto inicial, é que o modelo narrativo do “Herói” carrega em si uma ideologia baseada na morte, no conflito, algo quase (ou totalmente) belicista. Em contraposição a esse modelo patriarcal, ela sugere o modelo da bolsa que, ao contrário da seta apontando ameaçadoramente em direção ao futuro, recolhe as histórias e personagens num espaço de acolhimento focado no presente.

É um belo e provocador pensamento, mas os milênios de costume com a opressão do plot que encaminha a história sempre para a resolução de uma contenda, normalmente em busca do retorno a um estado normal, que de normal não tem quase nada, tornam esse exercício de re ou desconstrução muito desafiador.
Fiquei me perguntando onde poderíamos encontrar sinais desse modelo e logo me veio à mente Jacques Tati com seu Monsieur Hulot, cujas férias eu estava curtindo ontem.

Aos moldes do que Le Guin sugere, nas obras de Tati as histórias apenas se acumulam, sem conflito, propósito ou contenda a se resolver. São justamente apanhados temáticos de experiências, filmadas a uma média distância, que lhe permitem escolher para onde olhar e no que fixar a sua atenção. Pode não haver um propósito norteador, mas essa experiência estética, como a vida, está carregada de sentidos a se abraçar, como itens espalhados randomicamente dentro de uma bolsa mágica. Extrapolando, ainda dentro do cinema, parece que o mesmo pode se aplicar ao neorrealismo italiano, à Nouvelle Vague, e a outros movimentos de cinema independentes. A escolha pela contemplação e reflexão parece ser bastante natural quando não ficam cerceando nosso campo de visão com cores berrantes, explosões ou super close-ups.
No caso da literatura, um outro exemplo, lido esse ano, do qual me lembrei, foi Esboço da Rachel Cusk. Nesse livro rola a mesma sensação de observar a vida e caminhar por entre histórias nas quais podemos nos aprofundar mais ou menos, ao nosso bel prazer, sem a ansiedade de um fato ou trajeto narrativo conclusivo que estabeleça um lado “vencedor”. Se formos buscar formatos mais alternativos, seja entre Burroughs, Borges, Burgess, Calvino, ou mesmo entre os Beatniks, ou o povo da Oulipo, encontraremos ainda mais belas bolsas a vasculhar.
A verdade é que, escondidas em toda essa balbúrdia sem sentido de som e fúria, talvez estejamos cercados de mais bolsas que imaginávamos. Só precisamos (re)aprender a reconhecê-las e intencionalmente sair à sua busca ou mesmo a criá-las.
