Ensaios

A noite em que (quase) transgredi a quarentena

Tô sendo bem estrito nessa quarentena. Passo quase todo tempo dentro de casa e só saio pro essencial: levar a menina na escola, um supermercado ocasional e dar uma caminhada às 5:30 da matina. Sempre de máscara e com um banho de dar inveja a Silkwood na volta. Mesmo assim me sinto culpado. Deveria estar mais isolado. Todos que podem deveriam.

Já cheguei a desfazer amizades com gente que insistia em fazer pouco da pandemia. Tenho uma mãe triplamente no grupo de risco, vi pais de amigos queridos falecerem, e não estou alheio às notícias. O troço é e está brabo. Se o sujeito leu a orelha de um pocket do John Stuart Mills e vem discutir liberdade comigo pra defender seu direito de ir aglomerar ou não usar máscara pois não combina com seu uniforme de integralista, já fico com ranço. Sou desses.

Na minha opinião, o grande desafio dessa pandemia não é descobrir se você conseguiu se proteger, mas saber até onde você foi para proteger os outros. Ah, a máscara tem baixa eficácia… Mano, a máscara não é só pra proteger você, é pra você não passar pros outros. Se todo mundo usar, o lance funciona. Essa é a ideia. Não é valorizar o egoísmo mas, sim, o seu senso de comunidade. Pelo que me consta, isso aqui não é (ainda) filme de zumbi, mas, pelo menos deveria ser, uma coletividade.

Mesmo assim tem um bando de gente inconsequente que insiste em deliberada e continuamente afrontar a quarentena citando os dois textos xerocados que leu na matéria de economia do primeiro semestre de faculdade. Mas ninguém é perfeito e às vezes até o sujeito mais caxias anda no fio da navalha ou cai mesmo do outro lado. Meu dia de pecar foi ontem.

Ontem, depois do “rome-ofisse”, resolvemos tomar uma cerveja enquanto fazíamos o jantar. Eram poucas, acabaram rápido e ficou aquela vontade de quero mais, pero no mucho que sugere só mais uma. Pedir delivery ia demorar e aí a vontade ia passar. A saída seria descer e comprar uma gelada, mas já eram 7 da noite e os bares estavam fechados. Porém talvez no supermercado tivesse. Fui conferir. Máscara, chinelo da rua, tudo preparado para fazer um bate volta rápido.

Pra não perder tempo, resolvi ir logo ao supermercado de autoatendimento. Chegando lá, surpresa: o freezer não tinha uma só cerveja. Perguntei a uma atendente e ela explicou:

– Depois das 5 a gente tem ordem de não vender mais gelada.

Confesso que entendi. Já vi muita gente na praça bebendo cerveja que compraram gelada nos supermercados pra escapar do fechamento dos bares. Entendo a razão e apoio. Mas não tem uma gelada nem pra levar pra casa?

– Nem pra levar pra casa.

Óbvio que nessa hora a vontade aumentou. O que eu podia fazer pra saciá-la? A banca! Na banca de jornal teria uma gelada. Rumei pra lá e tinha. Quando ia pegar no freezer, o jornaleiro, ainda usamos esse termo?, me impediu:

– Desculpa, amigo. Depois das 5 a gente não vende mais cerveja.

Achei que ele ia dar a mesma explicação do supermercado, mas dessa vez foi diferente:

– A guarda municipal quase multou a gente ontem por conta disso.

Essa eu não sabia. Eu sabia que era proibido ficar de bobeira na rua das 11 da noite às 5 da matina, mas comprar cerveja pra levar? Que eu lembre isso não era crime. Como da outra vez, eu entendi, mas a cada “não” a vontade só aumentava.

Sem saída, achei melhor dar a triste notícia logo, antes de chegar em casa de mãos vazias. Minha companheira de copo estranhou e sugeriu uma última tentativa: “e a mercearia?”. E lá fui eu pra mercearia.

A essa altura eu já estava me sentindo um contraventor, um viciado na fila do pó. A vontade de cerveja já tinha até passado, mas encontrar uma gelada tinha virado uma questão de honra. Aí que, no caminho da mercearia, passei por um hortifruti e vi um freezer cheio de garrafas. Não titubeei.

Entrei no hortifruti e fui direto pro freezer para pegar as cervejas. Estavam lá. Todas elas. Não todas, não tinha, por exemplo, a que estávamos tomando, mas tinha umas outras boas opções. Sem pensar peguei logo seis long neck, apesar de que a gente só queria tomar duas, e passei pelo caixa tenso esperando que a qualquer momento alguém fosse interromper minha compra. Não interromperam.

Fui pra casa em passo rápido, com medo, como se alguém estivesse me vigiando. E estava. Era eu mesmo. Eu e a minha consciência.

Por que diabos eu não fiquei em casa ao invés de me arriscar nessa aventura inconsequente só porque o jantar não ficou pronto antes da cerveja acabar? Me sentia como um daqueles caras que ficam aglomerando na Dias Ferreira ou um dos convidados da festa da Pugliesi gritando “Foda-se a vida”. Quer dizer, se eles tivessem consciência.

Meu passo ficou mais lento e cheguei em casa me arrastando. Eu tinha me tornado um daqueles que eu tanto odiava. Como me liberar dessa culpa? Será que eu podia me auto cancelar? Ou eu precisaria fazer um vídeo de desculpas pra mim mesmo dizendo que aprendi muito com a experiência, sou uma nova pessoa, e nunca mais farei isso?

O jantar ainda estava no fogo e dava pra tomar uma antes. Já que tinha cometido o crime, melhor aproveitar os seus frutos malditos. Abri uma pra mim e uma pra ela. Na primeira golada, senti algo estranho. Ela também. Olhamos o rótulo: era sem álcool. Uma bela punição para o meu deslize.

Esse erro ficou me atormentando a noite inteira. Cheguei a ler e reler o decreto de medidas emergenciais para ver se tinha cometido alguma infração- não tinha-, mas não fazia diferença: crime ou não crime, a culpa estava lá. Veja como por uma coisa tão banal eu botei todo mundo em risco. Bom, nem tanto assim: tava de máscara, distante das pessoas e não fiquei confraternizando com ninguém. Mas é como se fosse. Era como me senti e como me sinto.

Agora, acordado de madrugada, espero que esse meu erro, esse momento de ceder a um capricho, não traga consciências. Tá, eu sei, sou exagerado, mas não estou errado. Afinal, se errei pequeno, posso um dia errar grande. E não tem nada mais fácil que inventar justificativa furada pra fazer o que queremos. Por isso é importante nos mantermos sempre alertas pra continuar protegendo os outros e a nós mesmos. Nesse caso, a eterna vigilância, que um dia nos tornará livres, é sobre nós mesmos.

Enquanto isso, o que me resta é tratar essa culpa com muito isolamento, álcool gel e psicanálise. Afinal não há desejo ou idiossincrasia, ou, como chamam hoje, saúde mental, que valha colocar aqueles que a gente ama em risco. E quando esse risco se realiza não tem vídeo pedindo desculpas do fundo do coração, de camiseta branca e sem maquiagem, que dê jeito.

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