Ficção

A luz

Remamos. Remávamos. Não esperávamos mais nada quando, com os braços já cansados de tanto remar no escuro, sem saber exatamente se todo o nosso esforço verdadeiramente levava o barco, se não ao nosso destino, a alguma costa, ela brilhou. No meio da noite sem estrelas, uma luz, enorme, mas discreta, resoluta, mas fugidia, nos fez lembrar que íamos para algum lugar, que havia alguém a nos esperar, e que algo desejava que chegássemos lá. A…

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Ficção

Dança da chuva

Pediu uma água no balcão da boate e foi recebida com incredulidade: -Água? -É, água. -De que tipo? -Normal. -Do filtro ou mineral? -Se tiver do filtro… é de graça, né? -É, mas não tem. -Então, por que ofereceu? -Sei lá, não estou acostumada a servir água. Pegou a garrafa da mão relutante da bartender e se encaminhou para a pista. No caminho, foi parada algumas vezes: -Água?! -É. -Tá tudo bem? -Tá, por que…

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O Editor Invisível

[oei#09] Os (des)enobrecimentos gráficos que tornam o livro (m)eu

Na minha infância, quando pintava uma grana extra em casa, comprávamos livros. Enciclopédias, coleções, livros grandes em capa dura com letras douradas e fitilhos. A coisa era tão séria que, mesmo não sendo religiosos, tínhamos uma enorme bíblia, de capa dura imitando couro, com douração trilateral, sobre um suporte de leitura no meio da sala. Minha mãe, ateia convicta, se explicava: – É pelas ilustrações do Doré. E fazia suas críticas: – Se bem que…

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Ficção

Boca de Urna

O Brasil pode ter mais de 150 milhões de eleitores, mas para a família Campos Pinto quem decide as eleições mesmo é o primo Gui. Desde a primeira eleição pra presidente pós ditadura, quando a família se digladiava entre o plantel de candidatos afoitos pra ser o primeiro presidente eleito de forma direta depois de décadas, ele, do alto dos seus 16 anos, desvirginou seu título e acertou na mosca quem ia ser eleito: -Sei…

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Ficção

Medalha de ouro

Depois de três dias firmes na promessa de não fumar, recaiu. Ou quase. Acordou agitado, no meio da noite, com a garganta coçando e a língua dormente por um cigarro; de um sonho sobre um bar de jazz com buffet de café da manhã em que todos ainda podiam fumar em espaços públicos e fechados. Bons tempos, bons tempos. Foi nos esconderijos tradicionais, onde guardava maços para descumprir suas próprias resoluções de não mais fumar,…

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Ficção

Livre. Nunca. Mais.

Acordou resoluto. Já não tinha mais nada a perder. Faria o que lhe desse na telha. Consequências, boas ou ruins, nada significavam ; não eram ganhos, nem perdas; eram apenas experiências. Mal levantou da calçada, foi interpelado por um policial. Não lhe deixou terminar a sua cantilena agressiva. Não tinha culpa, nem medo para lhe orientar as ações, então lhe deu um beijo no rosto e um abraço fraterno. Deixou o policial boquiaberto, para embarcar…

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