Ficção

Bate e Volta

O ninho não fica vazio de uma hora pra outra. O abandono acontece, como uma falência, paulatinamente e de repente. Ele, acostumado a ser abandonado, já antevia o de repente no paulatinamente que vive todos os dias.

Hoje é um desses dias, mas é noite.

Dá dez horas e o celular vibra. Mensagem dela:

PODE VIR ME BUSCAR.

Ele vai. Sem pressa. Tem tempo de se banhar, se arrumar e, inclusive, ir a pé. Se chegar rápido, sabe, ela vai reclamar. E se chegar tarde também. Fazer o quê?

Pega a Esteves Junior e encara a rua escura, protegida da luz dos postes pelas grossas copas das árvores baixas. Passa em frente aos barbeiros, onde a essa hora ainda tem gente cortando o cabelo; para na Marlene, toma uma água tônica e conversa com quem estava lá sobre assuntos que não tomarão o menor espaço na sua memória; dá um oi pra Naná e promete passar, no dia seguinte, pra comprar aquele novo queijo que chegou hoje. Na Upa Pet, com uma fila de pets doentes, tadinhos!, na porta, dobra a direita e pega a Paissandu.

Sob as sombras das palmeiras imperiais, adornando o caminho do palácio Laranjeiras até o mar, esbarra na princesa Isabel a caminho da praia do Flamengo indo desafiar a moral do segundo império para dar um mergulho e tentar, sem sucesso, acabar com a escravidão no Brasil.

Licença, princesa.

Toda, plebeu.

É uma graça essa menina. O orgulho do pai.

Na esquina da Ypiranga, espera ver o Paulinho sentado em seu banco, na portaria do prédio do Ouro distribuindo seus doces para as crianças. Mas ele não está lá, mas ao mesmo tempo está. Na memória, sente o gosto da maizena e do dia, em que o viu sem as chagas que carrega no rosto, depois de ser liberado do hospital sob massivas doses de analgésicos.

Antes de chegar ao Colégio Excelência, ele atravessa a rua para ser não ser atacado pelos piolhos, criados no sangue fresco do maternal, que ostensivamente se escondem nos rejuntes dos tijolos do muro que lhes serve de tocaia para surpreender os pedestres que querem atacar.

Chega na Pinheiro Machado e espera o eterno sinal da Coelho Neto fechar. Olha para suas mãos e sente elas se enrugarem e decaírem como se o relógio estivesse contra si. Na esquina paralisada pelo vermelho do sinal, meninos de rua cospem fogo e fazem malabares preparando a procissão de um rei proscrito que o povo não abraçou, mas votou.

Finalmente o sinal fecha e ele atravessa. Na fronteira entre o Estádio do Fluminense e o Palácio das Laranjeiras os ratos que nos governam saem de suas tocas com escoltas policiais, parando o trânsito e esmagando a nossa liberdade, enquanto os ratos do clube amistosamente se banqueteiam com o lixo refinado dos sócios do pó de arroz.

Atravessa o contra fluxo vindo da Tijuca e sente através do Túnel Santa Bárbara o eco dos gritos dos sambistas fantasmas da Marquês de Sapucaí em busca de paz de espírito, consolo e conselho que nunca terão.

Entra finalmente na Álvaro Chaves e, para chegar na porta do Clube onde a buscará, precisa desviar de hordas atemporais de debutantes endividadoras de pais que flanam faceiras em direção à inescapável maturidade que tentam evitar com sete saias de filó. Infelizmente, antes que elas consigam dobrar a Soares Cabral, viram as mentirosas baratas que, segundo as cantigas que cantavam na infância, usavam apenas uma saia de filó.

E, enfim, a vê. Nem criança, nem adolescente, nem adulta, batendo o pé na porta do clube enquanto olha pro celular. Ainda sem saias de filó, ou anáguas, mas uma promessa não concretizada de abandono do ninho.

Oi, filha.

Oi, pai. Você demorou.

Pois, é. Você não imagina quanto.

E fazem mais uma vez o caminho de volta em direção ao ninho. Não será dessa vez que ele ficará abandonado de vez. Não dessa vez. Em vez.

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