Meritocracia é uma daquelas palavras engraçadas que, livres de julgamento moral, vão adquirindo um caráter positivo ou negativo com o seu uso. O mesmo aconteceu com qualidade. Se você for lá na sua origem, vai descobrir que qualidade é apenas aquilo que qualifica. O sentido de qualidade como um qualificativo de caráter positivo foi sendo criado, alguns diriam distorcido, pelo seu uso. E hoje, sempre que se fala em qualidade, pensamos em características positivas. Com meritocracia aconteceu a mesma coisa.
Meritocracia é um sistema de gestão onde aqueles que tem o poder (cracia) o recebem por conta de seus méritos. Hoje, seja nas campanhas políticas ou dentro das empresas, vemos os líderes bradando que irão instituir a meritocracia ou que suas instituições funcionam como uma. Quando eles dizem isso, procuram apenas dizer que as pessoas com méritos irão ser recompensadas com o poder. O problema nesse discurso é que é impossível instituir uma meritocracia, pois, cá entre nós, todas as instituições são meritocráticas.
Não!, você deve estar balançando a cabeça. E aquela vez em que eu fui preterido para uma promoção e aquele puxa saco ganhou o cargo no meu lugar? Ou aquela vez em que o funcionário mais produtivo foi demitido justamente por isso? Não, não, não, você se indigna, isso não é uma meritocracia.
Sim, é, e eu explico. Quando alguém fala em meritocracia não está falando de valores, mas de um método. Aqueles com méritos serão alçados ao poder e comandarão esse grupo humano. O problema é que quando ouvimos meritocracia presumimos que os méritos de que essa pessoa fala são os mesmos que consideramos méritos. E esse é o primeiro erro. Mérito não é algo positivo ou negativo, é apenas aquilo que faz com que uma pessoa seja digna de elogio, de recompensa e de merecimento. Enfim o mérito é a justificativa da recompensa. Portanto se a recompensa é o poder (cracia) qualquer coisa que lhe conceda é válida. O que torna, se pensarmos direito, a meritocracia uma espécie de tautologia: aqueles que forem dignos do poder o receberão.
E que méritos são esses que nos levam ao poder? Aí é que a porca torce o rabo. Depende. Do. Contexto. Em cada época e lugar eles são diferentes. Na época das monarquias o mérito era o seu berço. Em sociedades beligerantes, como os espartanos, tem mérito o melhor soldado. Numa sociedade pacifista, esse soldado estaria bem encrencado. O fato é que ingenuamente consideramos que existe uma qualidade universal (opa, olha a qualidade aí no seu sentido distorcido) que todos apreciam e aspiram a ter. Não existe. Algumas vezes querer o poder já é mérito suficiente para tê-lo, quando, muitas vezes, essa ambição deveria impedí-lo de exercê-lo. A questão não deve ser, então, para governos, empresas ou demais instituições, como se tornar uma meritocracia, já que todas já o são. A questão verdadeira é: o que esse grupo considera mérito?
Além das diferenças de opinião entre as camadas hierárquicas da instituição e entre pessoas de culturas diferentes sobre quais são esses méritos, ainda há um problema que é a aplicação da meritocracia. Mesmo quando existe uma regra clara, aqueles que são responsáveis por conceder os benefícios e aplicar punições podem fazê-lo ao seu bel prazer baseados nas suas próprias concepções do que é um mérito. Isso não ocorre sempre por uma questão de maldade ou ignorância; pode ser apenas por conveniência. O que para a instituição é mérito para aquele sujeito num canto isolado dessa cadeia de poder gera mais problemas que soluções. Para o seu contexto os méritos são outros. É um problema bem parecido com a questão da criminalidade primária e da criminalidade secundária.
A criminalidade primária é a instituída pelas leis, assim como os méritos organizacionais; já a criminalidade secundária é exercida na aplicação dessas leis. Em determinadas situações os que aplicam as leis não concordam com elas e criam seus próprios códigos de conduta, ou, em outros casos, aplicar a lei como é prejudica aquele que a aplica. Por isso as leis não “pegam” por aqui e, consequentemente, as meritocracias parecem não existir. Seja como for, meritocracia, bem ou mal feita, é o que há. Só é preciso saber o que é digno de mérito e como ela está sendo aplicada.
Deixo pra você um exercício de reflexão: olhe para o ambiente onde trabalha e pense naqueles que receberam o poder. Quais qualidades (no sentido estrito de qualificação) eles tem em comum? Esses, anote aí, são os méritos segundo a sua organização (sejam os declarados ou os aplicados). Cabe agora a você decidir se concorda com eles ou não. Afinal meritocracias são tão múltiplas quanto os méritos e o mais importante é estar dentro de uma que compartilhe os mesmos méritos que você. Fica a questão: a sua compartilha?