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O Bolão

Como tudo que dá errado, ou certo, essa história também começou de forma inocente. Nas quintas, uns três caras da controladoria, no caminho pra tomar um chope no bar do Gaúcho depois do expediente, começaram a fazer uma fezinha da Megasena.

A princípio ninguém sabia o que estava rolando, ou, se sabia, preferia ignorar. Era aquele tipo de coisa que passava abaixo do radar da rádio corredor. O gerente deles, um estatístico frustrado, quando ficou sabendo, inclusive, quis dar lição de moral dizendo que loteria era imposto dos pobres e que a chance de ganhar era ridícula. Não deu outra. Logo após o pito do chefe, eles ganharam uma quadra.

Tá, o dinheiro foi pouco, mas deu pra um deles botar aparelho nos dentes e pra outro fazer um transplante capilar. A tentativa de embelezamento, mesmo mal-sucedida, chamou a atenção do resto da firma que começou a se interessar pela atividade pós expediente dos sortudos.

O primeiro que quis fazer parte do rateio foi o Zé Márcio, funcionário antigo e caprichoso que cuidava da Copa. Como quem não quer nada, ele começou a assuntar:

– Quadra, né?
– É.
– Legal. Foi jogo simples?
– Simples. 6 dezenas. Na bucha.
– Sorte, hein? Sabia que jogando mais dezenas tem mais chances?
– É?
– É. De quanto é a cota?
– Cota?
– É, quanto cada um coloca em cada aposta?
– Tem isso não. A gente aposta o que tiver de trocado.
– Pois devia ter. Se incomodam se eu organizar o Bolão?
– O Bolão?
– É. O Bolão. Deixa comigo. Eu mantenho vocês informados.

Sem ninguém para impedi-lo, Zé Márcio cumpriu sua promessa. Criou um grupo de whatsapp pros apostadores; escolheu a imagem de um trevo de quatro folhas em cima de uma pilha de dinheiro como avatar para dar sorte; estabeleceu um valor mínimo de cota, e um dia e horário pra encerrar os depósitos; compartilhou o seu pix para recolher as apostas; e decidiu, sozinho, que a partir de então apostariam nos dois sorteios semanais, tanto no de quarta quanto no de sábado.

Com essa “profissionalização”, o Zé Márcio acabou afastando os sortudos originais, que só queriam ter algo que os unisse pra conversar a respeito no chope de quinta, mas conseguiu até trazer mais alguns novos apostadores, na maioria os habitués da Copa que matavam as oito horas regulamentares de serviço se enchendo de café. Mesmo com o aumento de participantes, o bolo, ainda pequeno, não tinha virado o Bolão que ele esperava criar.

Tudo mudou com a entrada da Cláudia.

Cláudia era a nova coordenadora de comunicação digital. Nova de empresa e idade, costumava usar uns camisões xadrez compridos com umas bermudas cargo que lhe davam um ar ainda mais jovial. Além disso, adorava e sabia contar histórias. Quando ficou sabendo do Bolão já se adiantou pra apostar e, óbvio, tinha até um causo pra justificar a sua pressa.

– Cês lembram daquele restaurante onde todo mundo ganhou na Mega, menos um cara?
– Lembramos.
– Pois, é, esse cara foi ex-sogro da minha prima de consideração. Quando ele ficou sabendo que a galera tinha levado a bolada e ele não tinha sido incluído, até infartou.
– Sério? E morreu?
– Não, pior: melhorou e teve que voltar a trabalhar todo dia num lugar que o lembrava que ele podia nunca mais ter que trabalhar.

O povo chegou até a rebolar sentindo o frio percorrer as suas espinhas.

A história de terror de Cláudia pelo jeito deu resultado e logo o Bolão lotou. Era só a Mega acumular ou prometer um prêmio acima de 10 milhões que o povo todo corria pra participar. Ninguém queria ficar sozinho no trabalho enquanto o resto dos colegas estariam curtindo aposentadorias precoces na praia. Ninguém queria ter o funesto destino do ex-sogro da prima de Cláudia.

Na verdade, o que realmente motivava a maioria não era a vontade de ficar rica, mas o medo de ser abandonada eternamente num trabalho do qual precisavam, mas que preferiam não fazer. Essa sensação era tão explícita que no grupo do Whats a discussão pré sorteio não era sobre a compra de propriedades, carros ou viagens. Eles só conversavam sobre não ter que precisar ir pro serviço depois de ganharem a bolada.

Há um ano, não sei se vocês lembram, rolou aquela estiagem de prêmios da Mega quando ela ficou acumulando várias vezes até ao ponto de chegar no valor recorde do prêmio. Lembram? Pois, é. Nesse período, eles começaram apostando timidamente, porém, a cada novo sorteio sem ganhador, a excitação aumentava. Pra piorar, no terceiro ou quarto sorteio da série, eles levaram uma boa quadra que deu pra todo mundo recuperar o que já tinha apostado e ainda sobrou um troco pra custear novas apostas.

Quando chegou no décimo sorteio acumulado, o Zé Márcio sentindo que todos estavam começando a ficar nervosos demais convocou uma reunião para traçarem uma estratégia para escolher os jogos que com certeza seriam sorteados. O gerente da Controladoria achou uma besteira, mas, como parte do Bolão, acabou participando pra poder prestar a sua consultoria estatística.

No encontro que quase envolveu toda a empresa, discutiram se deviam repetir os números, excluir os últimos que já tinham saído, deixar eles serem escolhidos na surpresinha, ou pedir pra que os filhos dos funcionários marcassem os números pra dar mais sorte. Teve até um cara que ofereceu uma galinha do sítio da avó pra bicar uma tábua com os números da Mega e escolher pelo grupo. Quando questionado como isso iria ajudar, ele explicou:

– De todas as galinhas da minha avó, essa sempre escapou da panela. Sorte ela tem. Sorte ela tem.

A discussão não foi pra lugar nenhum e começou a gerar rusgas entre os funcionários que já estavam ansiosos esperando que os seus sonhos de nunca mais trabalhar se concretizassem logo. Quando o vozerio se tornou incompreensível e a confusão não conseguia mais ser desatada, Cláudia bateu na mesa e pediu a palavra:

– Aí, gente, e os sortudos originais? Eles estão apostando?

Zé Márcio foi até conferir a sua planilha, mas tinha certeza que não.

– O problema talvez esteja aí. Cadê a galera que começou o movimento? Tá faltando eles pra juntar as nossas sortes e fechar esse prêmio- Cláudia decretou.

Criaram um petit comitê pra convencer os sortudos originais a apostar com o restante da empresa. Dois não queriam alegando que o que importava era só o chope de quinta, e o terceiro, como tinha virado evangélico, não queria mais saber de bebida, nem de jogo. Apesar das negativas iniciais, Zé Márcio estava determinado e disse que não arredaria pé da controladoria até convencê-los a participar desse Bolão.

– Esse vai ser o último, eu prometo. Vamos ganhar dessa vez e nunca mais iremos precisar trabalhar ou apostar em loteria.

A verve, ou quem sabe, a aporrinhação funcionou e todos apostaram. Inclusive o convertido que pediu 10% do prêmio do Zé Márcio pra uma obra de caridade da qual ninguém tinha ouvido falar.

Bom, boletos finais gerados, apostas compartilhadas, a sorte estava lançada. Até os números da galinha entraram num dos cartões. Afinal, dessa vez valia tudo. Era vai ou racha. Ou eles venciam como grupo, ou morriam como empresa.

Deu o dia derradeiro e todos, de suas casas estavam acompanhando o sorteio, esperando que seus sonhos se tornassem realidade. Zé Márcio, Cláudia, os sortudos do chope, o sortudo convertido, e até o cara da galinha que, pra dar mais sorte, foi pro sítio da avó, assistir ao sorteio junto com a galinha. Todos vidrados na TV, acompanhando número a número a virada do destino.

O fim da história vocês lembram. Deu em todos os jornais. Não sei se foi sorte, ou se foi azar, ou, quem sabe, um misto dos dois. Mas, enfim, deu no que deu, e todos tiveram o que mereceram. Como normalmente acabam todas as histórias onde a gente confia na aleatoriedade do destino. E, cá entre nós, tem outra coisa na qual podemos confiar?

O quinto pé

Último pênalti
da grande final.
Você não pode vacilar

Habilidade você tem,
mas pênalti
também é sorte,
e é dela que vai precisar

Então você pede,
pela quinta vez,
na
sua vida,
ajuda à sorte.
Ela não vai lhe negar

Como não negou
da primeira vez
em que esfregou seu pé de coelho
para ser escolhido
pelo olheiro
do time mirim
para jogar

Como não negou
da segunda vez
em que esfregou seu pé de coelho
para o prêmio
de melhor jogador
poder
comemorar

Como não negou
da terceira vez
em que esfregou seu pé de coelho
para ser contratado
por um time rico
de uma outra
nação

Como não negou
da quarta vez
em que esfregou seu pé de coelho
para ser convocado
para fazer parte
da grande
seleção

Agora,
no último pênalti
da grande final,
você precisa da sorte,
mais uma vez,
mas não tem mais
pés de coelho
para esfregar

Para a sua surpresa,
surge um coelho
vivo e inteiro
no meio do campo
para lhe visitar

Antes que peça
ajuda à sorte
mais uma vez,
o coelho
se põe a falar:

“Quatro vezes me pediu
quatro vezes lhe atendi.
Agora é minha vez de cobrar

“Se antes teve sorte
foi às custas
das patas que uso
para saltitar

“Vá agora,
faça o gol,
e mostre a sorte
que parece lhe
privilegiar

“Vá agora,
sem demora,
faça o gol,
e me dê
seu sortudo
pé de humano
para esfregar”

Exercício inspirado pela imagem de Moni Port e realizado no curso LITERATURA INFANTIL: O QUE, POR QUE E COMO ESCREVER? do Instituto Estação das Letras? ministrado pelo genial Léo Cunha.

Um verdadeiro herói brasileiro

No início dos anos 40, meu pai tinha seus 20 e poucos anos e era um sujeito meio promíscuo. Tinha, entre vários hábitos abjetos, o de frequentar uns lugares chamados “dancings”, onde homens solteiros pagavam para dançar com mulheres desconhecidas. Funcionava mais ou menos assim: o cara chegava no salão e escolhia uma mulher numa fila; dançava com ela e marcava num cartãozinho quantas músicas dançaram; e, no final, acertava o custo das danças na saída. Óbvio que isso envolvia mais que dança, mas, na época, o pessoal fingia que era um troço normal. Fingia.

Calhou que meu pai começou a “dançar” bastante com uma mesma mulher num desses “dancings” e eles começaram a ter um relacionamento fora das pistas. O lance ficou tão sério que chegou a se tornar meio obsessivo, com ela perseguindo ele e tudo.

Meio sem saber como se livrar dela, meu pai aproveitou o bonde da segunda guerra, se alistou como voluntário e escapou para a Itália. Mas nem isso deu um jeito nela, que escrevia diariamente para ele e esperava respostas com a mesma frequência.

Sentindo-se acuado até nas trincheiras, ele resolveu que ia dar um jeito na situação de uma vez por todas e combinou com um amigo aqui do Brasil de forjar a sua própria morte. Isso mesmo, forjar a própria morte.

O lance rolou mais ou menos assim. Ele mandou um telegrama oficial, sabe-se lá como, informando pro tal amigo sobre a sua morte em combate. O amigo, que também frequentava o “dancing”, levou o telegrama pra dançarina e compartilhou as más notícias com ela. O meu pai esperava que isso fosse fazer ela se esquecer dele, e, quando voltasse, depois da guerra, estaria totalmente livre. Quase deu certo. Quase.

O que ele não esperava é que a tal mulher realmente gostasse dele. Se sentindo a viúva de um herói de guerra, a mulher não fez por menos e pagou uma missa de sétimo dia para homenageá-lo. Até o amigo envolvido na mutreta foi convidado pro evento e relatou depois pro meu pai que a Igreja de Santa Luzia, aquela igreja grande, ali no comecinho da Avenida Antônio Carlos, ficou coalhada de moças do “dancing”, todas de sóbrios vestidos pretos numa manhã de sábado. Além delas, ainda pintou uma boa quantidade de funcionários e clientes do “dancing”. Todos consternados e de luto pela perda do amigo herói de guerra.

Quando ficou sabendo da missa em sua homenagem, meu pai rolou de rir e, apesar do inusitado da situação, imaginou que pelo menos tinha se livrado da mulher. Imaginou errado.

Os anos passaram, a guerra acabou, meu pai voltou pro Brasil e nem lembrava mais da história da mulher. Até que um dia…

Ele estava num restaurante com uma outra dona quando viu entrar pela porta a mulher do “dancing” com seu atual consorte. Ele gelou. O tempo tinha passado, mas ele ainda poderia ser reconhecido por ela. Que tipo de reação maluca ela teria? Ele segurou a mão da sua acompanhante e disse:

– Olha, agora provavelmente vai acontecer um dos troços mais malucos da sua vida. Então, fica na sua e só concorda com tudo o que eu disser.

Deixa dada, não deu outra, a mulher do “dancing” bateu os olhos no meu pai e veio que nem uma bala em sua direção.

– Muito bonito… O senhor inventa que morreu e agora lhe encontro aí, vivinho da silva. Eu chorei horrores por você. Horrores. Cheguei a ficar de luto por você por três anos. Três anos. Canalha! Canalha!
– Desculpe, a senhora deve estar me confundindo com outra pessoa- ele respondeu placidamente.
– Deixa de história, seu Leonam. Eu sei muito bem que é o senhor mesmo.
– Leonam? Leonam era o nome do meu irmão que morreu na guerra.
– Ahn?
– É, meu irmão gêmeo, Leonam. Talvez por isso a confusão. Ele morreu em combate na Itália. Um verdadeiro herói brasileiro. A senhora o conhecia?

A dançarina desabou. Tascou a chorar e pedir desculpas. Meu pai até chorou emocionado com a reação dela. Acabou convidando ela e seu acompanhante para jantarem com eles e conversarem sobre as proezas do irmão morto na guerra. No fim da refeição se despediram com abraços apertados, típicos de pessoas que compartilharam uma grande tragédia na vida.

Na saída do restaurante, a acompanhante do meu pai, enfim, pôde confrontá-lo:

– Como você nunca me contou que tinha um irmão morto na guerra, Manoel?
– Desculpa, querida, esse é um assunto muito difícil pra mim- ele desconversou, feliz de, após a perseguição da dançarina, ter adquirido o hábito cretino de mentir o próprio nome pra toda biscate com a qual se envolvia.

O sofá, o cama

A cama não era tão grande, mas tomava praticamente todo o quarto. Entre a janela e a porta restava um pequeno espaço ao seu redor onde só cabiam as pernas finas de Arnaldo, o dono da cama, uma de cada vez, e que só servia para acumular coisas perdidas que ele achava que nunca mais iria recuperar.

Uma vez por mês, Arnaldo chamava a faxineira que, como mágica, fazia o impossível, e recuperava o que deveria ter ficado perdido. Uma calcinha vermelha; a carteira de motorista vencida da dona da calcinha; um poema escrito num guardanapo, para uma outra mulher; 62 reais em notas de 2; uma aposta na megasena, não premiada; uma raspadinha, premiada; um número de telefone de uma pessoa desconhecida; um soutien florido de uma conhecida.

– O fim de semana foi animado, seu Arnaldo- a faxineira resenhava a sua vida.
– Pois, é, Marilda. Pois, é- ele desconversava dando os 62 reais e a raspadinha para a faxineira.

Numa manhã de sábado, após uma costumeira noite de sexta, uma das conhecidas, que já foram desconhecidas, frustrada por ter perdido, como tantas antes, o soutien, lhe fez uma oferta:

– Você tem que se livrar dessa cama. Ela não é do tamanho da sua vida. Você precisa de um sofá cama. Sabe?, eu tenho uma amiga que é dona de uma loja de móveis usados e está vendendo um. Te interessa?
– Sofá cama? Como isso funciona?
– Vai dizer que nunca viu um sofá cama? É tipo uma cama que, quando você não estiver usando, vira um sofá.
– E é bom?
– É, eu acho. Quer ir ver?
– Quero.

E lá foi ele, na loja da amiga da conhecida, conhecer o sofá. Quer dizer, o sofá cama. A primeira impressão não foi boa. Era um móvel velho e feio, com uma estampa de casa de vó. Fechado, como sofá, era desconfortável e pouco convidativo. Aberto, como cama, era desconfortável e ainda menos convidativo.

A conhecida percebeu a sua hesitação e fez pressão:

– Deita. Vê se você gosta.

Deitou e continuou não gostando. Mentiu, prometendo que ia pensar, e voltou para casa. Olhou para a cama, que tomava todo o quarto, se deitou e suspirou feliz de não ter comprado o sofá, quer dizer, o sofá cama.

Numa noite de sexta, que antecederia mais uma manhã de sábado, chegou em casa com uma conhecida, outra, e, quando entrou no quarto, se espantou: no lugar da sua cama estava um sofá, o cama. Em cima dele apenas um envelope com uma mensagem da conhecida, a primeira, dizendo: “Espero que fique feliz com o meu presente”. Não ficou.

Acordou na manhã de sábado, com dor nas costas, e a conhecida, a outra, foi embora com rapidez.

– Não perdeu nada? – ele perguntou.
– Não, porquê?
– Por nada, por nada.

Naquela semana, a faxineira passou na sua casa e se espantou, tanto quanto ele, com o sofá, mas não disse nada. Na saída, ele perguntou:

– Não achou nada perdido dessa vez?
– Não, por quê?
– Por nada, por nada.

Pensou em ligar para a conhecida, a do sofá, o cama, mas não lembrava mais qual era seu nome, nem seu telefone. Queria saber para onde tinha ido a sua cama, mas pelo jeito ela tinha sido perdida dentro do sofá, quer dizer, do cama. Sem saída, tentou se acostumar com a tragédia que se alojara no seu quarto, enquanto esperava que a conhecida entrasse em contato com ele. Mas ela não entrou. Nem o sofá saiu.

Uma coisa ela não podia negar, sua vida ficou mais simples e chata. Quando acordava, fechava a cama. Quando chegava em casa, abria o sofá. As conhecidas, e as desconhecidas, parecendo prever que a cama tinha ido embora, começaram a sumir; e as coisas, antes perdidas, começaram a aparecer. A sua carteira da faculdade; o diploma que jurava não ter tirado; uma carteira de dinheiro, vazia; uma agenda cheia de telefones, mas sem nenhum nome; e até um cartão da loja de onde veio o sofá cama.

Ligou para a loja. A amiga da conhecida atendeu.

– Oi, não sei se lembra de mim, mas fui ver um sofá cama com uma amiga sua.
– Ah, sei, mas ela não é minha amiga. É só uma conhecida.
– Sei, sei. Por acaso, quando vocês trouxeram o sofá cama para minha casa, vocês sabem para onde foi a minha cama?
– Sei, está aqui. Foi a pior troca que fiz. Já levaram e devolveram essa cama duas vezes. Parece que ela não cabe em lugar nenhum.
– Sério? Querem trocar de volta?

Dois dias depois a cama voltou e o sofá, o cama, foi embora. Na sexta seguinte, a conhecida, a do sofá cama, ligou de surpresa e passou na sua casa.

– Pra onde foi o sofá cama?
– Que sofá cama?- ele se fez de bobo.

No sábado de manhã, ela foi embora, frustrada, sem a calcinha, engolida pela cama. Na semana seguinte a faxineira apareceu e achou a calcinha.

– O fim de semana foi animado, hein?, seu Arnaldo- a faxineira comentou como de costume.
– Pois, é, Marilda. Pois, é- ele respondeu satisfeito.
– Por falar nisso, pra onde foi o sofá cama?
– Que sofá cama, Marilda?- ele fingiu não saber que a cama o havia engolido.

A Biblioteca

Antes aqui não tinha nada. Agora tem tudo. Mas, pensando bem, isso tudo já existia antes, só nos faltava o tempo de esperar esse sonho florescer.

Lembro quando chegamos a esse terreno vazio, nessa pequena cidade costeira, e vimos, por cima do mato e do vazio insistente, tudo que há agora. Talvez não exatamente o que acabamos construindo com vidro, pedra, madeira e metal, mas o mesmo conceito espiritual está aqui.

Tudo começou com a casa central. Seguindo a inspiração dos diversos livros sobre lares japoneses que li durante anos para alimentar meus sonhos, montamos uma estrutura simples e transparente. Uma casa quadrada e expansível, com fortes pilares ligados por vidros, onde a nossa privacidade, garantida por diáfanas cortinas claras, podia ser aberta ou fechada ao nosso bel prazer. Quando queremos nos recolher, as fechamos; quando queremos receber nossos amigos ou conhecer novas pessoas, elas são descortinadas progressivamente, abrindo com vagar a visão do nosso lar e o espaço dentro dos nossos corações.

Aos poucos fomos nos despindo de muitas coisas físicas mantendo apenas o essencial, para abrir espaço para o que realmente importa: nossos afetos, nossas emoções e livros, milhares deles.

Uma hora, como já era esperado, os livros precisaram da sua própria casa e a construímos no mesmo modelo da casa central: um espaço acolhedor e seletivamente transparente. Para proteger a riqueza e o conhecimento que há dentro deles, criamos proteções contra a maresia e contra o sol, dentro dos limites necessários para que a sua segurança não impedisse a sua conexão com o mundo.

Quando ficou pronta, primeiro abrimos a biblioteca à cidade. Recebemos alunos de escolas, moradores interessados ou apenas curiosos. Aos poucos, pessoas de lugares, longe ou perto, começaram a aparecer para conhecê-la, e, dependendo do nosso humor e da empatia que sentíamos, deixamos elas entrarem. Dependendo do elo que formamos com elas, podem apenas circular pelas estantes, ou ler por breves ou longos momentos nos pufes convidativos e poltronas confortáveis, ou até mesmo levar uma das obras pelas quais tenham se apaixonado. Desde que, óbvio, deixem uma outra no lugar.

Com o passar dos anos, começamos a fazer pequenos eventos, encontros, reuniões, e a transformar a cidade que começou a abrigar cineclubes espontâneos e peças de teatro clássicas, influenciadas pelas palavras da biblioteca.

Essa transformação da comunidade, como não podia deixar de ser, aumentou a nossa responsabilidade e a nossa visibilidade. Por isso construímos também um lugar para receber mais pessoas que quisessem passar mais tempo perto dos nossos livros e, quem sabe, escrever os seus ao nosso lado.

Passamos, assim, a receber pessoas que ficavam pouco ou muito tempo, e podiam devorar, além dos livros, as minhas feijoadas de sexta feira, meu café gelado, meus mistos-quentes com ovos, e meus esporádicos chilis.

Chegamos a pensar em construir uma piscina no terreno, mas a proximidade do mar a tornou supérflua, e a obra encerrou onde devia: num deck onde podíamos nos reunir para conversar, e num chuveirão para refrescar nossos ânimos e nossos corpos.

O tempo passou, nossa filha cresceu junto com a biblioteca e se mudou para seguir a vida que ela mesma escolheu. Nós a apoiamos como podemos, e adoramos recebê-la nos fins de semana e férias para nos visitar e reencontrar a biblioteca que se tornou a sua irmã de papel, vidro e metal.

Imerso nessas memórias, percebo que o sol acabou de raiar. Enquanto leio e escrevo essas linhas, faço meu café, admirando você e velando o seu sono. Coloco um ponto final nesse texto e me levanto da minha escrivaninha para abrir mais uma vez as portas dessa biblioteca preguiçosa.

Em breve os convidados também irão acordar e nos encontrar entre livros e cervejas para falar de tudo e de nada. No meio da tarde passearemos na beira mar e voltaremos para um chuveirão antes do jantar. A lua aparecerá e colocarei a biblioteca para dormir, para que ela recupere suas forças e amanhã volte a receber aqueles que aprenderão com ela a escrever novos livros que farão parte do seu crescente conhecimento.

A obra não acabou. Nunca acaba, mas estamos chegando lá. Onde? Não sei, mas estamos sempre um dia mais próximos do que ambicionamos ser e criar. E isso é o suficiente. Não é?

Sono

Duas semanas após a mudança, o síndico bateu na porta do casal de novos moradores. Trouxe um vídeo mostrando o marido de pijama destruindo, no meio da madrugada, a antena coletiva do prédio. O marido chorou de vergonha e a mulher explicou. O marido era sonâmbulo e, vez ou outra, fazia, dormindo, coisas das quais não se lembrava. “Mas a senhora não o impede?”, o síndico perguntou. “Até tento, mas, vez ou outra, eu acabo dormindo”, respondeu a mulher cansada.

Na semana seguinte o síndico apareceu morto. Não havia um vídeo, como no caso da antena, mas as suspeitas recaíram sobre o marido sonâmbulo. Quando a polícia veio interrogar o casal, a mulher absolveu o marido e confessou o crime. Todos sabiam que era mentira, mas confissão é confissão, e ela foi presa preventivamente. Antes de se apresentar ao juiz, dormiu no xadrez. Muito bem, diga-se de passagem.

No dia seguinte, revigorada e descansada, declarou-se, mais uma vez, culpada.