Arquivo da categoria: Ficção

É a vovozinha

No bar do Beto Palavrão rolava de tudo. Da missa de 7o. dia do Frei Eduardo, o padre mais velho, mulherengo e cachaceiro de Nova Rolândia, até o nascimento de netinho, filho de Junior, e bisneto da fundadora da cidade Dona Rolândia. O bar do Beto Palavrão era o único e último espaço democrático de uma cidade controlada por coronéis, majores e capitães. Um risca faca onde bandidos, polícia nem milícia ousavam entrar. Um templo maior que qualquer Igreja Matriz de novela de Dias Gomes.

Mas pra não desfazer a mística, um espaço tão livre tinha regras. Quer dizer, uma regra. Uma regra inusitada que contradizia o nome e o propósito do próprio bar. Uma regra que juram ter sido estipulada pela própria dona Rolândia quando ela apartou a primeira briga do risca faca na sua noite de lançamento 7 dias após a fundação da cidade. Essa regra, que quase ninguém proferia nem entendia o porquê mas todos guardavam no coração, ficava estampada num pequeno quadro ao lado da caixa registradora logo em cima do livro do fiado. E dizia: “ Aqui pode tudo. Só não pode xingar a avó”.

Assim, quando os ânimos se exaltavam e faltavam maneiras de insultar os outros, seja por chifre, política, sinuca ou novela das 9, o povo se calava pois ninguém podia recorrer ao famoso expediente “É a vovozinha”. E as brigas que pareciam inevitáveis se encerravam como que por mágica.

Mas pra não desfazer a mística, a regra foi quebrada. Uma vez que eu me lembre. E foi justamente com Netinho, o bisneto de dona Rolândia, a mulher que criou o mandamento. Logo depois da morte de dona Rolândia aos 116 anos, após uma briga com o próprio bisneto, Netinho entrou numa fase de dar gosto a psicanalista endividado. Ele foi enganado nos negócios e perdeu sua herança pro coronel Passarinho; a sua vaca premiada virou churrasco na mão do capitão Tenório; e a sua noiva, a virginal e bela Rosalva, quem diria?, fugiu num jipe com um cabo e um soldado na véspera do casamento. Era demais prum homem só.

Netinho, que era não dessas coisas, começou a beber. De quando o sol raiava até quando a madrugada pedia pra dormir. Como não era acostumado como o Frei Eduardo, vez ou outra ele perdia a linha e vinha pro Beto Palavrão puxar briga. O povo sabia o que ele estava passando e aguentava o que podia. Mas chegava uma hora em que o sangue esquentava e os impropérios começavam a voar de um lado pro outro até que Netinho encurralava seus interlocutores de uma forma que eles não pudessem dizer mais nada pois só restava o famoso “é a vovozinha”, e ele saía do bar feliz. Feliz de ter ganho alguma coisa em sua vida desgraçada. Pra espezinhar ainda falava:

– Em briga de moral aqui não tem pra mim.

Calhou que a Sudene foi fazer uma obra na região, daquelas pra acabar com a seca que nunca saiam do papel e só enchiam a carteira dos políticos, e o engenheiro Ricardo, vindo do sul, começou a viver em nova Rolândia e a frequentar o Beto Palavrão. Era um sujeito manso, mas macho, que tinha bom coração mas não conhecia a regra de dona Rolândia. Um dia Netinho chegou no bar com sangue no olho e escolheu o engenheiro Ricardo como seu alvo.

A turma do deixa disso pediu calma, e o engenheiro segurou o quanto pode, mas quando Netinho falou mal do seu time do coração, ele não fugiu da briga. Começou a xingação e Netinho, pela primeira vez, sentiu que ia perder. Engenheiro Ricardo, além dos palavrões comuns, trazia uns que só se falam abaixo da Bahia e a situação complicou. Mas Netinho, que não era bobo nem nada, conseguiu dar a voltaa por cima  e encurralou o sulista que, desconhecendo o mandamento do bar, como último recurso disparou:

– É a vovozinha!

Os clientes de Beto Palavrão se calaram e esperaram Netinho partir pras vias de fato, mas ele não fez nada disso. Ele sorriu, se aproximou de Engenheiro Ricardo, o abraçou e disse:

– Muito obrigado. Muito obrigado.

Nem engenheiro Ricardo e nem ninguém entendeu nada. Em choque viram Netinho partir assobiando em direção ao Cabaré da Jô Outdoor do outro lado da ponte do Rio Seco. Curiosos, o seguiram.

Após a curta caminhada, na barulhenta casa de tolerância e iluminado por aquela luz vermelha e irritante, os clientes de Beto Palavrão viram Netinho ajoelhado em frente a uma senhora que fumava de piteira, tomando um conhaque barato, vestida de corpete e meia arrastão. Uma senhora gorda, velha como tempo, e que, não podia ser, mas era; era a cara da dona Rolândia. Mas não era só a cara; era dona Rolândia, invocada dos infernos pela ofensa à sua honra. Netinho, aliviado e aos prantos, dizia:

– Saudades, vovó. Me perdoa, por favor. Me perdoa.

– Tá perdoado, meu netinho. Tá perdoado- a velha Rolândia respondeu, o abraçou e desapareceu num bafo de fumo.

O povo saiu do cabaré e nunca mais ninguém tocou no assunto. O fato é que a vida de Netinho deu uma reviravolta depois daquilo. Com a ajuda do Engenheiro Ricardo, ele descobriu diamantes nas terras que lhe sobraram; coronel Passarinho e capitão Tenório foram mortos na enchente causada pela explosão da barragem da Sudene; e Netinho acabou constituindo família com Verônica Pá de Cal, a desguarnecida filha do coveiro, que, quem diria?, era secretamente muito bonita. Tiveram apenas uma filha a quem deram o nome de Rolândia bisneta. Em merecida homenagem.

Com o dinheiro que ganhou Netinho comprou um outdoor eterno pra colocar na frente da cidade e anunciar o caminho do cabaré onde fez as pazes com o passado. Em letras miúdas, no canto direito, logo acima do neon dourado, se lia:

“ Bem vindo a nova Rolândia, aqui pode tudo. Só não pode xingar a avó. Seja bem vindo”.

Infiltração

Antes de invadir um novo território, é preciso espioná-lo; entrar nele como um fantasma que não vai mais voltar. Comece com um café da manhã na padaria local. Faça um pedido comum, mas com uma pequena diferença que fará com que seja lembrado depois. Ouça as conversas, aprenda os nomes da pessoas e suas relações. Não fale com ninguém a não ser que falem você. Coma, agradeça e pague a conta. Em dinheiro.

Passeie pelas cercanias. Visite a banca de jornal, compre um cigarro varejo e peça um isqueiro emprestado. Seja chato, mas só um pouco. Sente na praça e curta o movimento. Veja as mães brincando com as crianças, os velhos jogando damas, os desocupados deixando o diabo fazer suas cabeças de oficina. Esteja lá, mas não seja um deles. Pelo menos por enquanto.

Dê um tempo até almoçar. Circule pelo supermercado e pelo comércio local. Compre uma coisa ou outra, mas nada que chame a atenção. Crie uma pequena confusão durante o pagamento. Erre a senha do cartão, confira o troco errado. Depois de tudo resolvido, peça desculpa e pergunte onde é bom de almoçar. Siga a sugestão.

Sente, peça uma cerveja e o cardápio. Leia as opções com calma mesmo se já souber o que vai pedir. Chame o garçom e faça algumas perguntas tolas, mas não pareça idiota, apenas distraído. Escolha o mesmo que outra pessoa estiver comendo perto de você e peça apontando para o prato dela. Quando o garçom estiver indo embora faça um sinal pedindo outra cerveja.

Quando o prato vier, pergunte se tem pimenta. Da boa. Regue o prato com ela e coma com voracidade entre goles de cerveja. Quando terminar peça umas cervejas para viagem e ao pagar a conta faça uma piada sem graça. Sorria constrangido junto com o garçom e vá embora.

Vá para casa e volte alguns dias depois. Refaça o ritual, variando a padaria, o comércio e o restaurante. Dessa vez pergunte o nome das pessoas, mas só fale o seu se perguntado.

Faça disso uma rotina, aumentando o grau de cumplicidade a cada visita. Quando a mudança chegar, já será tarde mais para eles. Eles saberão seu nome, seus gostos e lhe dirão ao vê-lo “O de sempre, doutor?”. Pronto. Missão cumprida. Você já será da área. Não se tornará apenas local, será O LOCAL.

Parabéns pela infiltração bem sucedida, agente.

Lembra?

Você se lembra?

Lembra quando acordávamos nos domingos de manhã na casa de pessoas estranhas após horas de bebedeira e outros abusos? Lembra dos corpos estendidos em camas, sofás, poltronas e até no chão? Lembra de escrevermos de batom na cara dos que caíam bêbados mais cedo? Lembra das filas para usar o banheiro? Lembra de olhar pelas janelas em busca de algo que sabíamos não estar lá?

Lembra quando íamos em padarias estranhas comprar refrigerante, pão e mortadela para o nosso tradicional RPM de café da manhã? Lembra de nos perdermos e conversar com gente esquisita que sai de casa nos domingos de manhã? Lembra dessa gente? Dessa gente como a gente? Lembra dos porteiros que sabiam tudo que tínhamos feito mas sorriam pois queriam estar lá?

Lembra da mesa posta? Lembra de tomarmos café juntos? Lembra dos risos, dos papos e dos constrangimentos causados pelos beijos e pelas brigas do dia anterior? Lembra como tudo era ao mesmo tempo recordado e esquecido em prol da nossa unidade “familiar”? Lembra que achávamos que nunca iríamos nos separar? Lembra que éramos falsos? Lembra que queríamos ser sinceros? Lembra?

Lembra de assistirmos TV aberta? Lembra dos programas de umbanda, pesca, caminhões, variedades e sorteios que assistíamos em busca de assunto para termos o que falar? Lembra de assistirmos filmes velhos em VHS? Lembra de sabermos diálogos inteiros? Lembra de encenarmos os filmes que íamos assistir? Lembra de acharmos tudo muito chato?

Lembra de ficarmos em silêncio nos acarinhando e fingindo não sentirmos nada uns pelos outros?

Lembra de lermos os jornais? Lembra de lermos os cadernos de empregos, imóveis e carros projetando o que seríamos no futuro? Lembra que podíamos tudo? Lembra que fizemos nada? Lembra dos planos que fazíamos para a segunda feira? Lembra que sabíamos que nunca iríamos realizá-los?

Lembra dos risos e dos delírios que a ressaca e o rebate da mesma nos provocavam? Lembra daquilo que achávamos tão engraçado que nunca iríamos esquecer? Lembra de não lembramos exatamente o que foi? Lembra que esquecemos? Lembra?

Lembra de decidirmos corajosamente ir às ruas? Lembra do nosso destino? Lembra que as horas de discussão e indefinição sempre davam no mesmo caminho? Lembra de irmos no Sindicato do Chopp?

Lembra do caldo de feijão com cachaça? Da picanha fatiada na manteiga? Do chopp Brahma geladinho que na época achávamos genial? Lembra da fome? Lembra da sede? Lembra? Lembra?

Lembra de nos despedirmos em pontos de ônibus, táxis e trens? Do metrô, não. Do metrô, você não lembra, pois naquela época, como dizia o saudoso João Saldanha, o metrô era como o restaurante que fecha pro almoço e não abria aos domingos. Lembra que reclamávamos disso? Lembra que sempre citávamos o João Saldanha? Lembra de rirmos disso mesmo sem achar graça? Lembra?

Lembra que sentíamos saudades mesmo antes de irmos embora? Lembra que nos abraçávamos e fingíamos que a lágrima furtiva era apenas causada pelo sono? Lembra de abraçar nunca mais querendo soltar? Lembra dos beijos nos rostos que eram pra ser nas bocas? Lembra do amor que sentíamos? Lembra? Lembra?

Lembra de chegar em casa e nossos pais perguntarem: “Como foi a festa?” Lembra de mentir? Lembra de dizer: “Normal, normal”? Lembra de ir pro seu quarto, deitar na cama e lembrar? Isso, lembrar. Lembrar de tudo, como se fosse ontem, pois foi ontem. Lembra? Lembra?

Eu lembro? E você?

Você se lembra?

Já te contei por que amo Copacabana?

Deixa eu te falar…

A briga começa como a maioria delas começa. O cansaço pesando pelo tardar da noite ou pelo despontar da madrugada; os ânimos exaltados pelo álcool e pelos resultados do futebol de meio de semana; a depressão inescapável de ter que conciliar, no dia seguinte, a ressaca iminente com um trabalho que não nos valoriza. Junte a isso um engano, um tropeço, uma palavra mal entendida, ou, até mesmo, um pequeno esbarrão e está pronta a confusão.

Os envolvidos se estranham. Olhares tortos, palavras tortas. O primeiro empurrão. Dessa vez, intencional. Se abre espaço no meio do bar e, em uma dança orquestrada, os brigões se afastam e se aproximam, mostrando o quanto querem lutar por sua honra e o quanto acham que o outro deve desistir.

As tentativas de intimidação surgem furiosas de um lado e do outro. Os outros clientes do bar, movidos pela demonstração de agressividade gratuita, começam a se sentir obrigados a tomar partido. Primeiro os amigos e conhecidos se posicionam. Depois as lealdades. Pelo time de coração. Pelas posições políticas. Por afinidades que ninguém consegue explicar. O que era uma briga entre duas pessoas vira uma inimizade ancestral entre facções.

Nisso entra em jogo o terceiro time. O time do deixa disso. Desmoralizado, sem entender bem o que se passa e sem argumentos para convencer a turba enfurecida, eles tentam impedir o inevitável com palavras de ordem e chavões inúteis:

– Pô, pessoal!
– Onde já se viu…
– Vocês são tão amigos.
– Vamos lá! Vamos fazer as pazes?
– Vamos parar com isso? POR FAVOR?!

Nesse balé desengonçado, o dono do bar, como o tocador de pratos de uma orquestra caótica, espera o momento certo de chamar a polícia. Objetivo: resguardar a integridade do seu empreendimento perdendo o mínimo de clientes. Sabe que, infelizmente, nunca agirá no momento certo. Na confusão, alguém esbarra numa garrafa que cai no chão gongando o início da luta.

Os ânimos se acirram. Os iniciadores da confusão aproximam seus rostos e respiram bufando um na cara do outro. Falta pouco para tudo degringolar. Apenas um tapa. Um cuspe. Um olhar mais feio. Então…

– Olhem lá!- alguém grita da porta do bar.

Alertas pela adrenalina gerada nas preliminares da briga, todos se viram. Caminhando onde os carros deveriam passar, cinco mulheres, para dizer a verdade, meninas, lindas, no primor da sua juventude, tomam a rua numa passeata misteriosa. Rindo e languidamente apressadas, elas caminham pelo meio da avenida com destino e origem ignorados. Apenas um detalhe: todas estão vestidas de havaianas. É. Havaianas. Com colares de flores de papel crepom; tops imitando cocos; arranjos exagerados nos cabelos; e saias de palha plástica colorida. E, para completar, de pés inexplicavelmente descalços. Alheias à briga, elas flanam faceiras, se dando empurrões e cutucos assim como os brigões. Só que, no caso delas, sem agressividade, apenas com cumplicidade.

No bar, homens e mulheres, inebriados por sua presença, respiram fundo tentando sentir o seu perfume. Sentem. Ou imaginam que sentem. Não faz diferença. E sorriem. Verdadeiramente.

As teorias começam a surgir. Assim como as dúvidas. Quem são elas? De onde vem? Para onde vão? O que diabos estão fazendo aqui? À essa hora?! As dúvidas e curiosidades são muitas e suficientes para distrair todos do conflito que parecia ser tão necessário resolver.

As meninas dobram a rua e somem a caminho da praia. Como um perfume marcante, seu riso ecoa nas paredes dos prédios nos lembrando da sua existência, até que some num silêncio ensurdecedor. De um momento para o outro, aquilo que parecia tão real e tão correto deixa de existir de fato.

Todos baixam as cabeças. Não sabem mais o que fazer. Alguns se sentam, aturdidos. Outros aproveitam para pagar a conta e escapar à francesa da confusão. Alguns, magoados pelo sumiço das meninas, lembram da briga e transformam a sua frustração em agressividade, retomando o conflito. Os brigões, mesmo sem clima, voltam às suas posições iniciais. Podem até apanhar mas nunca desistirão daquilo em que acreditam. Se perguntam sem resposta: qual era mesmo a razão da briga? Voltamos ao começo.

Os envolvidos se estranham. Olhares tortos, palavras tortas. Antes do novo primeiro empurrão, uma surpresa.

Despontando no início da rua, uma sexta havaiana, não tão bonita, mas infinitamente mais charmosa, corre esbaforida atrás de suas amigas, deixando seu colar cair pelo caminho.

– Me esperem. ME ESPEREM!

O bar inteiro é obrigado a cair na gargalhada. Os brigões, envergonhados com a sua postura, se abraçam e oferecem, mesmo sem dinheiro suficiente, pagar a conta um do outro. O dono do bar suspira por ter escapado por pouco da decisão entre proteger a estrutura do bar e manter a clientela. Os outros clientes agora dão razão à turma do deixa disso e os parabenizam por tentar manter a paz.

– Paz. Amor. Beleza. Assim não é melhor de se viver?- sentenciam e fecham o caso.

As saideiras são pedidas e o mais empolgado dos clientes, sempre há um deles, sai correndo pelo meio da rua atrás das meninas com o colar abandonado na mão. Depois da meia noite, busca por sua Cinderela havaiana.

– Ei, espere por mim também. ESPERE POR MIM!

Já te contei por que amo Copacabana? Deixa eu te falar…

A briga começa…

Tesouradas

Oi, doutor, tudo bem? Ainda não abrimos, mas pro senhor claro que dá pra fazer uma exceção. Sente aí. Vai ser só o cabelo? Tudo bem. Vai querer ver aquela revistinha? Chegou uma ótima! Um filé! Ah, tá com livrinho? Eh, eh, eh. Desculpe a piada. Eu entendo, entendo. Vai que a patroa te pega aí, né? Com aquela revista na mão? A coisa não vai ficar boa pro seu lado, né? Mas vamos começar… Continue lendo

O armário que me pariu

Natália e Alfredo caminhavam pelo pólo moveleiro da cidade, em busca de móveis para o quarto do bebê que chegaria em breve, quando, pela terceira ou quarta vez, Alfredo se tremeu todo. Natália parou, largou a mão do marido, apoiou as mãos nos quadris, empurrando a barriga da gravidez pra frente, e lhe mandou aquele olhar que ele já conhecia bem.
Continue lendo