Arquivo da categoria: O Editor Invisível

[oei#32] A taxonomia dos menosprezados padrões e aprendizados do processo editorial

Quando algum “romântico” quer defender a impossibilidade de se gerir projetos editoriais, sempre evoca o famoso adágio: “livros não são commodities”. Por essa razão declaram que as atividades e estratégias da produção editorial são não só impadronizáveis, mas também incontroláveis.

Tiro meu chapéu para essa estratégia de convencimento, afinal é impossível discordar dessa afirmação. Sim, livros não são commodities; cada livro tem uma trajetória específica, atende a públicos sempre nichados, e tem particularidades e peculiaridades que o distingue dos demais. Porém isso não é justificativa para não podermos padronizar parte dos seus processos, e muito menos para não podermos utilizar os aprendizados de um projeto para otimizar outro.

O fato é que os produtos e empreendimentos editoriais, como qualquer projeto, são sempre únicos e não têm relações de identidade, mas têm de semelhança. Portanto, podemos caracterizar seus padrões e as lições aprendidas por uma série de características que permitem a sua reprodução em outros que as compartilham. E esses conhecimentos terão aplicações tanto em fases específicas dos projetos quanto em suas áreas de conhecimento.

Parte dessas características estão relacionadas aos seus públicos-alvo. Livros de mesmo gênero ou voltados a públicos similares podem compartilhar mesmos processos, desde a seleção de obras e preparação, até o marketing e distribuição. É possível também aprender com erros e acertos de projetos anteriores desde que as experiências sejam similares. Assim, por exemplo, as atividades na produção de livros didáticos, manuais de RPG, ou publicações de luxo de traduções de obras clássicas russas vão ter características próprias que podem gerar de procedimentos até check lists padronizados onde incorporaremos a experiência e a especialidade de profissionais que já passaram por “sortes”, que tentarão repetir, e “azares”, que buscarão evitar.

Isso também se aplica às especificidades dos livros enquanto produtos, sejam eles físicos ou digitais. Características relacionadas a tamanho, formato, tipo de papel, interatividade e aprimoramentos, carregarão similaridades em riscos e atividades tanto no design quanto na produção gráfica que podem se repetir de um projeto para outro.

Outro fator de semelhança entre projetos e produtos são os profissionais e partes interessadas envolvidas. Mesmas faixas etárias ou formações acadêmicas,  mesmas instituições ou agendas comerciais, ou mesmas empresas e fornecedores terão similaridades nos seus comportamentos e interesses, que podem ser cadastradas em ferramentas de CRM (Customer Relationship Management) e servir de referência para processos decisórios e criações de estratégias de relacionamento e comunicação.

Óbvio que, se não temos a cultura ou a prática de padronizar e levantar aprendizados de projetos, haverá um processo inicialmente demorado para mapear e modelar procedimentos, coletar lições aprendidas e categorizar todos esses conhecimentos para usos futuros. Porém, é sempre possível começar com pequenos passos. O mais importante deles é abandonar a fantasia do “romântico” que diz ser impossível profissionalizar a atividade editorial, mas que, secretamente, acha que tudo sabe. Ao invés de alimentar essa postura, devemos assumir com muita humildade que sabemos que não sabemos o que não sabemos. Afinal de contas, o primeiro passo para aprender qualquer coisa é ter orgulho de dizer “eu não sei”.

[oei#31] A gestão de projetos editoriais e seus múltiplos produtos experienciais

Mais do que gerar atrasos e prejuízos a todo o setor, a resistência do mercado editorial em implementar uma cultura de gestão de processos e projetos também estimula a falsa ideia de que o livro é o único ou principal produto dos seus projetos de publicação. Não é à toa que quando vemos pesquisas, análises, cenários, e outlooks sobre o Mercado Editorial, elas sempre recebem uma alcunha que reforça estarem falando do “Mercado do Livro”.

O mercado editorial, como o conhecemos, nasceu, sim, do livro, mas hoje, convenhamos, não se limita a ele. O próprio livro se tornou um objeto de difícil definição, e suas múltiplas variações (digital, áudio, jogo etc.) falam com tantos públicos, e dependem de tantas atividades e fluxos diferentes, que, muitas vezes, uma das poucas coisas que têm em comum é serem produzidos, ou financiados por editoras.

Essa ambiguidade do conceito do livro acaba nos paralisando conceitualmente numa busca infrutífera pela sua essência. Em vez disso, ela deveria nos libertar da ideia de que ele é o produto único ou principal dos projetos editoriais. Assim poderíamos encarar o valor que sua compra, seus diversos usos, e eventual leitura realmente geram. O livro, não podemos esquecer, é um meio, nunca um fim.

O comprador do livro, que, atentem, nem sempre é um leitor, não se satisfaz apenas com o produto, mas com o que ele traz para ele. Mesmo os bibliófilos compulsivos, como eu, que os compram como esporte, têm uma satisfação com a “caça” para o qual o livro também é simplesmente um meio.

Por isso, quando vamos falar da gestão dos projetos de publicação, precisamos, antes de tudo, entender qual é o público e o que ele espera que venha a surgir do seu encontro com o livro. Se atender a essa expectativa for o principal objetivo do projeto, o livro ainda será um produto importantíssimo, mas não o único, numa cadeia de experiências que se complementarão para entregar o valor esperado pelo seu público-alvo.

Essa compreensão é condição sine qua non para uma melhor definição das especificações do livro, das suas estratégias de comunicação e marketing, e, inclusive, para definir quais serão as metodologias mais adequadas para gerir os processos e o projeto que o concretizarão.

Por exemplo, um livro com o propósito de promover uma agenda política não precisa ser um best-seller, mas deve impactar os leitores certos. A sua lucratividade não será o único critério de sucesso, seja para o autor ou para a sua editora. Já um livro de caráter experimental será bem-sucedido pelo seu impacto em futuras publicações, o que o tornará, a longo prazo, um sleeper hit, ou um clássico cult, que terá um retorno financeiro menos imediato, porém mais duradouro, e carregado de capital social e de imagem. E cada projeto precisa de uma metodologia adequada para facilitar o atingimento de seus objetivos específicos.

Enquanto continuarmos a olhar para o mercado editorial simplesmente como o mercado do livro, só a implementação de uma cultura de projetos não nos permitirá ter melhores resultados. Precisamos também nos libertar dos objetivos monotemáticos que todos os fluxos editoriais parecem ter: maior volume de vendas e maximização do lucro.

Apesar de compartilhar uma série de atividades padrão, cada processo editorial é único; os livros dos quais eles derivam são únicos; seus produtos relacionados são únicos; e, somente ao considerar isso junto aos valores e à responsabilidade social da indústria, conseguiremos definir objetivos e metodologias de gestão alinhadas às suas características particulares. Só com esse match entre a prática de gestão de projetos e o modelo de negócios, as editoras atingirão os resultados que realmente as farão descobrir e desenvolver suas identidades e funções únicas, tanto comerciais, quanto sociais.

Para começar essa jornada, o primeiro passo é superar nossas ideias pré-concebidas sobre nossos clientes, sobre nossos objetivos, e até a compreensão do que fazemos. Talvez assim finalmente aceitaremos que, enquanto gestores de projetos, somos mais do que “simples” criadores e comercializadores de livros; somos verdadeiramente designers e produtores de experiências.

[oei#30] As ilusivas tendências no processo de inovação das identidades no mercado editorial

Toda vez que ouço alguém falar em inovação, eu lembro de 2001. Não do filme, do ano. O mundo vivia na antessala de uma utopia. A Internet ainda trazia mais promessas do que ameaças; tínhamos passado incólumes pelo primeiro quase apocalipse digital, o Bug do Milênio; e a agenda política mundial era de inclusão e equalidade, acordos comerciais equilibrados, sustentabilidade ambiental e social, e paz. Era quase uma revolução francesa futurista em que os cidadãos conquistaram Liberdade, Igualdade e Fraternidade se desarmando ao invés de se armarem.

Enquanto isso, na Barata Ribeiro, entre a Siqueira Campos e a Hilário de Gouveia, eu participava também de uma pequena revolução. Junto com uma galera jovem e esperta inauguramos a Baratos da Ribeiro, a segunda loja do grupo Livreiros Associados. Diferente dos demais sebos, a Livreiros Associados tinha o seu acervo, dividido entre a Baratos, a Gracilianos do Ramo, e o depósito, totalmente digitalizado e atualizado, graças a um zip drive que circulava na abertura e fechamento das lojas na mão de um menino numa bicicleta. Além disso, a Baratos ganhava os jornais e as ainda nascentes redes pelo seu jeitão de sebo megastore, e seu estilo despojado e jocoso, enquanto se firmava como um ponto de encontro da música e da literatura alternativas.

Livros em revolução permanente

Essa identidade que, para o lado de fora parecia harmoniosa, era objeto de muitos conflitos. Esse tripé de experiência de compra, tecnologia, e hub cultural tinha interfaces e interseções nem sempre pacíficas, o que fazia os sócios discutirem intensamente sobre o que diabos era a Baratos da Ribeiro. Inclusive, nos comentários de um texto sobre a loja escrito por Rafael Lima para o Digestivo Cultural, o sócio majoritário da empreitada, o saudoso Marcelo Lachter, confessou a sua incapacidade de entender que negócio era aquele que gerenciávamos.

Hoje, eu sei. Éramos apenas inovadores demais para nós mesmos, mas pelo menos estávamos nos perguntando “quem queremos ser?”.

Engraçado que no mesmo quarteirão havia uma loja que fazia o movimento exatamente oposto. Ninguém sabia qual foi o negócio inicial de onde ela surgiu, mas, quando chegamos, ela era uma LAN house, papelaria e videolocadora. A impressão é que, na ânsia de parecer original e diferente, a cada nova tendência que surgia, ela buscava encaixar o que estava na moda no seu rol de serviços e produtos. Naquele mesmo ano, por exemplo, passaram a vender um sanduíche, bem gostoso por sinal, de lombo canadense que o dono da loja afirmava:

– É o sanduíche mais inovador do Rio! Duvido já ter comido algo igual por aí.

E era verdade. Não havia sanduíche igual em lugar algum, mas isso não o tornava nada inovador.

Por isso, toda vez que ouço alguém falar em inovação eu lembro de 2001, da Baratos da Ribeiro e da Papelaria/LAN House/Videolocadora/Sanduicheria. E lembro que inovação não é um atributo de produtos, serviços, ou de pessoas, mas da ressignificação consciente das relações que se estabelecem entre as identidades dos negócios e dos seus clientes.

As inovações da Baratos, por menos espetaculares que possam parecer hoje, tiveram impacto significativo justamente por falarem a um público novo e/ou jovem, bem parecido com a equipe da livraria, que precisava de um espaço despojado, organizado, e fervilhante para interagir entre si e com uma série de manifestações culturais. Criamos uma alternativa engajada e bem informada que se contrapunha aos sebos antigos e às megastores que dominavam os shoppings. A identidade do negócio era maximizada e permitia ao mesmo tempo que os clientes exercessem as suas num ambiente seguro que espelhava seus valores e crenças. O que chamavam de inovação, muitas já testadas em outros ambientes, mas não juntas, era exatamente o que diferenciava a loja de tudo mais o que havia por aí.

Já as “inovações” da outra loja do quarteirão não emplacaram pois não falavam a ninguém. Tentavam responder a tendências ou apostas de diferenciação, sem olhar para quem fazia a loja e quem consumia na loja. Assim, em pouco tempo, a loja sucumbiu por deficiência, não de inovação, mas de identidade.

A Baratos, por outro lado, saiu de Copacabana, perdeu, assim, o da Ribeiro, deixou de lado o acervo digital, e se posicionou definitivamente como um espaço de movimentação política e cultural, evoluindo a sua identidade num constante diálogo com seu contexto, com as mudanças da sociedade, e com a transformação do seu público.

Inovação é identidade e longevidade

Enfim, toda vez que ouço alguém falar em inovação eu lembro que saber quem você é, ou, como disse sabiamente Marcelo Lachter, estar pronto a testar novas identidades e relações com o respeito devido ao seu público e à sua equipe, é o que vai lhe tornar verdadeiramente inovador. As tendências vem e vão, as tecnologias brilham e se apagam, sanduíches de lombo canadense entram e saem de moda, mas o desejo de ser cada vez mais um novo você é o que vai manter o seu coração sempre inovador.

[oei#29] A aparentemente inevitável escolha ontológica do uso da IA pelo mercado editorial

Outubro de 1989. A Nintendo coloca no mercado a Power Glove com a missão de mudar definitivamente a forma como interagimos com os videogames. Em vez de joysticks, usaríamos agora gestos para determinar como os nossos avatares iriam se comportar nos novos jogos digitais. O frenesi é tamanho que a Power Glove chega a ser a protagonista de seu próprio filme, “The Wizard”, com a maior estrela infantojuvenil da época: Fred Savage.

Dezembro de 2009. Um mês que a história do Cinema não iria esquecer. Em salas de todo o mundo, estreou Avatar, o filme que prometia marcar a passagem do cinema da era 2D para 3D. Na esteira do seu sucesso, até TVs foram lançadas onde, em nossos próprios lares, poderíamos acompanhar a inescapável revolução dimensional.

Outubro de 2021. No rastro do fim da pandemia da CoVid-19, apostando nas mudanças provocadas pelo “novo normal” nas relações sociais e de trabalho, o Facebook muda seu nome para Meta, mostrando o seu compromisso com o desenvolvimento de aplicações e tecnologias voltadas para a criação de uma realidade virtual compartilhada.

O que todas essas tecnologias têm em comum? Elas prometeram revolucionar suas mídias e mercados e não o fizeram. Pelo menos, ainda. Isso não quer dizer que elas não mudaram processos de produção, o formato de produtos, ou não promoveram a criação de novos nichos de consumo, mas elas com certeza não atingiram todo o hype que era prometido no seu lançamento.

Esse ciclo de adoção de tecnologias é descrito em quatro grandes fases pelo Gartner Hype Cycle:

  1. Gatilho de Inovação: O lançamento de uma tecnologia emergente gera muito interesse da mídia e do público, mas ela ainda não está consolidada, e há poucas aplicações práticas e muitas dúvidas sobre sua viabilidade comercial.
  2. Auge das Expectativas Infladas: Logo o entusiasmo pela tecnologia atinge o pico, prometendo benefícios (ou malefícios) e aplicações muitas vezes exageradas. Porém há um claro otimismo no mercado e a tecnologia ganha destaque na mídia, baseado em expectativas bastante irreais.
  3. Abismo da Desilusão: Eventualmente, as expectativas não se confirmam e o entusiasmo inicial diminui, pois a tecnologia não atende a todas as promessas que foram incensadas a seu respeito. Começam os questionamentos sobre a sua viabilidade e a sua utilidade prática.
  4. Rampa da Consolidação: Nesse momento, após a sensação de fracasso, as aplicações práticas da tecnologia começam a se tornar mais claras e o interesse se restabelece, com uma visão mais realista de seus benefícios. Há uma nova rodada de investimentos e testes mais concretos em diferentes áreas.
  5. Platô da Produtividade: Enfim, a tecnologia se consolida, com aplicações mais estáveis e amplamente aceitas, atingindo a sua maturidade pela adoção generalizada e pela sua incorporação nos processos de trabalho.

Segundo o último Gartner Hype Cycle, a IA está começando a descer a ladeira em direção ao Abismo da Desilusão, mas quando falamos do mercado editorial, que historicamente sempre foi mais lento na adoção de novas tecnologias, podemos dizer que estamos ainda no início do Auge das Expectativas Infladas. Porém, no nosso caso, as expectativas não são assim tão positivas.

Somos hoje assombrados por muitas ansiedades geradas pelas mudanças que a IA  tem promovido: a dificuldade de comprovar e cobrar pelo uso não autorizado de obras para treinar as IAs generativas; a substituição de profissionais experientes por IA em diversas etapas do processo de preparação das obras; e até a entrada agressiva de outros players, em especial da área de tecnologia, no mercado para competir pelos nossos cada vez mais minguados públicos.

Mas esse não é um medo novo. Toda mudança tecnológica gera ansiedades e provoca mudanças em processos e nas atividades profissionais, gerando insegurança e dúvidas num mercado cada dia mais desafiador. Qual será o papel do humano nos processos editoriais futuros? Qual será o impacto da Inteligência Artificial na produção das obras e na sua distribuição? Haverá um mercado quando a IA realmente fizer tudo o que ela diz se propor a fazer?

Em vez de ficarmos paralisados entre a negação dos impactos dessa tecnologia emergente e a fantasia de ruína, inspirada por Borges, sobre uma Biblioteca de Babel da IA, onde se gerariam automaticamente todas as possíveis versões de livros, por meio das combinações de exaustivas de letras até que, como acontece nos Nove Bilhões dos Nomes de Deus de Arthur C. Clarke, as estrelas comecem a apagar, há muito que podemos fazer.

Primeiro, precisamos entender que não existe apenas UM mercado editorial, mas múltiplos, e que cada um deles irá responder de forma diferente às mudanças que a tecnologia sugere. Por exemplo, apesar da já consolidada participação dos e-books no nosso mercado, uma área onde eles ainda podem crescer, mas ainda não têm muita aderência, é o nicho dos livros infantis. Isso se dá por uma demora na absorção da tecnologia ou pela natureza desse público?

Dois, é necessário nos debruçar sobre quais são os nossos reais diferenciais enquanto empresas e profissionais. Se o que torna nossos produtos ou serviços realmente diferentes for algo que a tecnologia faz melhor que nós, é preciso rever nossas propostas de valor. Ou, em alguns casos, isso inclusive pode nos fazer entender melhor quais atividades são merecedoras dos nossos tempo e atenção e geram valor para nossos públicos.

E, finalmente, podemos aproveitar essa sacudida no mercado para rever nossos propósitos, lembrando que nós usamos a tecnologia e não somos usados por ela. A nossa maior defesa e força nesse processo de adaptação está na clareza da nossa identidade e dos nossos valores.

Sim, o futuro já chegou, mas, como disse William Gibson, ele não está igualmente nem igualitariamente distribuído. E, dependendo de quem somos no mercado e da nossa relação com nossos parceiros e clientes, podemos escolher quais tecnologias iremos implementar e como elas irão nos mudar. A adoção abrangente de IA, apesar de todo Hype, não é um imperativo, mas uma escolha consciente a se fazer. Assim, como na clássica cena final de Jogos de Guerra, incorporar a IA em nossos processos, dependendo da proposta de valor e dos modelos dos nossos negócios, pode ser um jogo que se ganha escolhendo não jogar.

Mas, para isso, precisamos saber quem realmente somos.

E você? Quem é você no mercado editorial?

A IA em breve irá lhe perguntar.

[oei#28] A delicada simbiose entre o texto e o que o ilustra

O primeiro contato da criança com o livro é sempre através da ilustração. É a imagem, sozinha, ou acompanhando um texto, que atrai e mostra ao jovem projeto de leitora que numa folha pode-se guardar um som, um sentido, uma história à qual ela pode sempre voltar para se acalentar, se emocionar, se lembrar, e sonhar.

Com a evolução da capacidade de leitura e da maturidade da leitora, diz o senso comum, sempre tão comum e tantas vezes tão errado, que o texto puro deve começar a tomar conta da página. Ele deverá, sozinho, permitir que a leitora faça o salto de entendimento das palavras escritas, muitas vezes tão ou mais gráficas que uma imagem, para a ilustração que se formará na sua própria cabeça.

Porém, a ilustração nunca some. Ela apenas se transforma. Se exibe na capa, na escolha das fontes, nos detalhes paratextuais, na formatação dos capítulos, nos gráficos, e nos diversos elementos visuais que facilitam que a leitora se transporte para a realidade, real ou inventada, que o livro lhe propõe.

É nesse momento que o trabalho de ilustração e do design se confundem. Em que ponto o projeto gráfico termina e a ilustração começa? Afinal o próprio texto já não é uma forma de educar, explicar, demonstrar, mostrar, e, enfim, ilustrar?

Se olharmos para o livro em si como uma ilustração de um texto composto por toda uma gama de elementos potenciais gráficos, o momento da sua transposição para uma obra reproduzível para o alcance de um público será sempre um exercício de ilustração, seja ele apenas em palavras ou se valendo dos tão valiosos artifícios do desenho, da tipografia, do design, da fotografia, ou da colagem.

Dessa forma, o pretenso conflito entre a ilustração e o texto não se mostra real, pois a ilustradora não compete com a autora na construção do sentido da obra, mas oferece, sim, um suporte para a leitora entrar com mais concretude no mundo do livro e dialogar com uma nova interpretação e representação, em forma de imagem, do que o texto sugere.

A ilustração, que acompanha a leitora desde a infância, continuará sempre ao seu lado, conferindo novos sentidos e novas interpretações ao texto, o que aumenta a pluralidade do já rico trabalho da autora. Assim, compraremos os livros pelas capas, os leremos pelas suas imagens, e arte-finalizaremos suas ilustrações com a nossa imaginação devidamente estimulada pelas palavras do seu texto. Desenharemos, enfim, junto com as suas ilustradoras, a vivência do livro na tela da nossa mente. Afinal, podemos até entender o que o livro nos conta, mas sempre será melhor que alguém também o desenhe para nós.

[oei#27] O assustador risco do livro enquanto um ativo cultural e financeiro das editoras

Um livro pode ser muitas coisas. Quanto ao seu formato, ele pode ser físico, em áudio, ou digital. Em relação ao seu objetivo, ele pode ser uma fonte de informação, uma ferramenta de aprendizado, um parceiro de diálogo e reflexão, ou uma porta para uma outra realidade, que nos promete diversão ou entretenimento. Se considerarmos o seu papel dentro do mercado editorial ele pode ser um projeto, um produto de um projeto, ou mesmo um investimento dentro de um catálogo, com o qual buscamos atingir resultados financeiros, artísticos, culturais ou sociais. Mas, em todas essas suas encarnações e pluralidades, uma coisa todos os livros serão: arriscados.

O livro, seja como produto, como projeto, ou como investimento, é arriscado. Ele é uma ideia que, ao ser planejada, executada, e distribuída ao seu público, por toda uma complexa cadeia de valor, toma concretude, mesmo quando digital, e corre diversos riscos que podem impedi-lo, ou não, de atingir os objetivos aos quais ele se propõe em sua concepção. Ser arriscado não quer dizer que ele é mais afeito ao fracasso ou ao sucesso, mas que há pouca certeza quanto aos eventos que irão ocorrer ao seu redor que poderão impactar positiva ou negativamente os seus resultados. E, dadas as informações do mercado, ele não é só sujeito a muitos riscos, ele é arriscadíssimo.

Quando olhamos para as pesquisas sobre o mercado editorial, tanto no Brasil como no exterior, as notícias nunca parecem boas. Sempre temos sinais de retração, com o fechamento de pontos de vendas, concentração de resultados em poucos livros, gêneros, editoras e vendedores, e, inclusive, dados, nem sempre confiáveis, que indicam que a grande maioria dos títulos não consegue passar a barreira de mil volumes vendidos. Isso faz com que o faturamento das editoras se concentre em alguns títulos de destaque e no retorno contínuo de alguns livros de catálogo que financiam toda uma operação que aparenta sempre estar só um pouco acima do que a constituiria como um investimento de retorno baixo demais para valer a pena. Tudo isso constitui o livro como um investimento arriscado, tanto nos critérios “artísticos” ou culturais, quanto nos financeiros e econômicos. Assim, viveríamos, como bem colocado por Ênio Silveira, fundador da editora Civilização Brasileira, entre o feijão e o sonho:

O editor, que se preze como tal, vive sempre oscilando entre dois polos, bem caracterizados pelo livro de Orígenes Lessa, O Feijão e o Sonho. Se ele se dedica só ao feijão, ele não é bom editor. E se ele se dedica só ao sonho, ele quebra a cara muito rapidamente, numa sociedade capitalista ele está fadado ao insucesso. O contraponto feijão/sonho é que dá a justa medida da qualidade de um editor – (da Coleção Editando o editor, n.3)

Porém, mesmo com esses flagrantes riscos envolvidos na nossa atividade, quando vamos nos debruçar sobre como os livros, enquanto projetos ou produtos, são geridos, ou mesmo sobre o retorno do investimento realizado por todos os integrantes dessa cadeia de valor, os dados disponíveis são poucos, pouco claros, pouco conclusivos, e, em alguns casos, completamente inexistentes.

Se o mercado do livro é um mercado tão arriscado por que razão não temos estratégias ou ferramentas específicas para lidar com esses riscos? Será que o livro enquanto uma “não-commodity” impede que tenhamos estratégias genéricas ou comuns que se apliquem a todos os lançamentos ou produtos de catálogo? Ou será que o baixo retorno esperado do livro enquanto investimento não compensa o gasto com estratégias mais robustas de gestão de risco que, além de poderem ter pouco impacto, irão encarecer ainda mais o produto final?

Mesmo que o mercado editorial se apresente como uma indústria de baixo retorno sobre o investimento, sempre vítima de um conflito entre o atingimento dos seus nobres objetivos de promoção cultural e intelectual, e sua sustentabilidade financeira, a importância do livro como símbolo e ponto central do nosso processo civilizatório pede insistentemente que a gestão dos seus riscos seja aprimorada a fim de aumentar as possibilidades de sucesso dos seus empreendimentos individuais e do próprio setor como um todo.

Para começar a endereçar esse dilema, é preciso estabelecer uma conversa com os diversos setores envolvidos com o livro, para buscar entender como os seus riscos, enquanto produto, projeto e investimento, são considerados, gerenciados, mitigados, eliminados, absorvidos e remediados no processo de gestão editorial. Só a partir do entendimento do conceito de risco para aqueles que fazem do livro a nossa profissão, poderemos encontrar, através de uma adequada gestão dos riscos, o equilíbrio entre o capital simbólico e financeiro do livro, e permitir que de alguma forma possamos fazer as pazes entre o feijão e o sonho que alimentam e sustentam o nosso propósito de vida.