Arquivo da categoria: O Editor Invisível

[oei#29] A aparentemente inevitável escolha ontológica do uso da IA pelo mercado editorial

Outubro de 1989. A Nintendo coloca no mercado a Power Glove com a missão de mudar definitivamente a forma como interagimos com os videogames. Em vez de joysticks, usaríamos agora gestos para determinar como os nossos avatares iriam se comportar nos novos jogos digitais. O frenesi é tamanho que a Power Glove chega a ser a protagonista de seu próprio filme, “The Wizard”, com a maior estrela infantojuvenil da época: Fred Savage.

Dezembro de 2009. Um mês que a história do Cinema não iria esquecer. Em salas de todo o mundo, estreou Avatar, o filme que prometia marcar a passagem do cinema da era 2D para 3D. Na esteira do seu sucesso, até TVs foram lançadas onde, em nossos próprios lares, poderíamos acompanhar a inescapável revolução dimensional.

Outubro de 2021. No rastro do fim da pandemia da CoVid-19, apostando nas mudanças provocadas pelo “novo normal” nas relações sociais e de trabalho, o Facebook muda seu nome para Meta, mostrando o seu compromisso com o desenvolvimento de aplicações e tecnologias voltadas para a criação de uma realidade virtual compartilhada.

O que todas essas tecnologias têm em comum? Elas prometeram revolucionar suas mídias e mercados e não o fizeram. Pelo menos, ainda. Isso não quer dizer que elas não mudaram processos de produção, o formato de produtos, ou não promoveram a criação de novos nichos de consumo, mas elas com certeza não atingiram todo o hype que era prometido no seu lançamento.

Esse ciclo de adoção de tecnologias é descrito em quatro grandes fases pelo Gartner Hype Cycle:

  1. Gatilho de Inovação: O lançamento de uma tecnologia emergente gera muito interesse da mídia e do público, mas ela ainda não está consolidada, e há poucas aplicações práticas e muitas dúvidas sobre sua viabilidade comercial.
  2. Auge das Expectativas Infladas: Logo o entusiasmo pela tecnologia atinge o pico, prometendo benefícios (ou malefícios) e aplicações muitas vezes exageradas. Porém há um claro otimismo no mercado e a tecnologia ganha destaque na mídia, baseado em expectativas bastante irreais.
  3. Abismo da Desilusão: Eventualmente, as expectativas não se confirmam e o entusiasmo inicial diminui, pois a tecnologia não atende a todas as promessas que foram incensadas a seu respeito. Começam os questionamentos sobre a sua viabilidade e a sua utilidade prática.
  4. Rampa da Consolidação: Nesse momento, após a sensação de fracasso, as aplicações práticas da tecnologia começam a se tornar mais claras e o interesse se restabelece, com uma visão mais realista de seus benefícios. Há uma nova rodada de investimentos e testes mais concretos em diferentes áreas.
  5. Platô da Produtividade: Enfim, a tecnologia se consolida, com aplicações mais estáveis e amplamente aceitas, atingindo a sua maturidade pela adoção generalizada e pela sua incorporação nos processos de trabalho.

Segundo o último Gartner Hype Cycle, a IA está começando a descer a ladeira em direção ao Abismo da Desilusão, mas quando falamos do mercado editorial, que historicamente sempre foi mais lento na adoção de novas tecnologias, podemos dizer que estamos ainda no início do Auge das Expectativas Infladas. Porém, no nosso caso, as expectativas não são assim tão positivas.

Somos hoje assombrados por muitas ansiedades geradas pelas mudanças que a IA  tem promovido: a dificuldade de comprovar e cobrar pelo uso não autorizado de obras para treinar as IAs generativas; a substituição de profissionais experientes por IA em diversas etapas do processo de preparação das obras; e até a entrada agressiva de outros players, em especial da área de tecnologia, no mercado para competir pelos nossos cada vez mais minguados públicos.

Mas esse não é um medo novo. Toda mudança tecnológica gera ansiedades e provoca mudanças em processos e nas atividades profissionais, gerando insegurança e dúvidas num mercado cada dia mais desafiador. Qual será o papel do humano nos processos editoriais futuros? Qual será o impacto da Inteligência Artificial na produção das obras e na sua distribuição? Haverá um mercado quando a IA realmente fizer tudo o que ela diz se propor a fazer?

Em vez de ficarmos paralisados entre a negação dos impactos dessa tecnologia emergente e a fantasia de ruína, inspirada por Borges, sobre uma Biblioteca de Babel da IA, onde se gerariam automaticamente todas as possíveis versões de livros, por meio das combinações de exaustivas de letras até que, como acontece nos Nove Bilhões dos Nomes de Deus de Arthur C. Clarke, as estrelas comecem a apagar, há muito que podemos fazer.

Primeiro, precisamos entender que não existe apenas UM mercado editorial, mas múltiplos, e que cada um deles irá responder de forma diferente às mudanças que a tecnologia sugere. Por exemplo, apesar da já consolidada participação dos e-books no nosso mercado, uma área onde eles ainda podem crescer, mas ainda não têm muita aderência, é o nicho dos livros infantis. Isso se dá por uma demora na absorção da tecnologia ou pela natureza desse público?

Dois, é necessário nos debruçar sobre quais são os nossos reais diferenciais enquanto empresas e profissionais. Se o que torna nossos produtos ou serviços realmente diferentes for algo que a tecnologia faz melhor que nós, é preciso rever nossas propostas de valor. Ou, em alguns casos, isso inclusive pode nos fazer entender melhor quais atividades são merecedoras dos nossos tempo e atenção e geram valor para nossos públicos.

E, finalmente, podemos aproveitar essa sacudida no mercado para rever nossos propósitos, lembrando que nós usamos a tecnologia e não somos usados por ela. A nossa maior defesa e força nesse processo de adaptação está na clareza da nossa identidade e dos nossos valores.

Sim, o futuro já chegou, mas, como disse William Gibson, ele não está igualmente nem igualitariamente distribuído. E, dependendo de quem somos no mercado e da nossa relação com nossos parceiros e clientes, podemos escolher quais tecnologias iremos implementar e como elas irão nos mudar. A adoção abrangente de IA, apesar de todo Hype, não é um imperativo, mas uma escolha consciente a se fazer. Assim, como na clássica cena final de Jogos de Guerra, incorporar a IA em nossos processos, dependendo da proposta de valor e dos modelos dos nossos negócios, pode ser um jogo que se ganha escolhendo não jogar.

Mas, para isso, precisamos saber quem realmente somos.

E você? Quem é você no mercado editorial?

A IA em breve irá lhe perguntar.

[oei#28] A delicada simbiose entre o texto e o que o ilustra

O primeiro contato da criança com o livro é sempre através da ilustração. É a imagem, sozinha, ou acompanhando um texto, que atrai e mostra ao jovem projeto de leitora que numa folha pode-se guardar um som, um sentido, uma história à qual ela pode sempre voltar para se acalentar, se emocionar, se lembrar, e sonhar.

Com a evolução da capacidade de leitura e da maturidade da leitora, diz o senso comum, sempre tão comum e tantas vezes tão errado, que o texto puro deve começar a tomar conta da página. Ele deverá, sozinho, permitir que a leitora faça o salto de entendimento das palavras escritas, muitas vezes tão ou mais gráficas que uma imagem, para a ilustração que se formará na sua própria cabeça.

Porém, a ilustração nunca some. Ela apenas se transforma. Se exibe na capa, na escolha das fontes, nos detalhes paratextuais, na formatação dos capítulos, nos gráficos, e nos diversos elementos visuais que facilitam que a leitora se transporte para a realidade, real ou inventada, que o livro lhe propõe.

É nesse momento que o trabalho de ilustração e do design se confundem. Em que ponto o projeto gráfico termina e a ilustração começa? Afinal o próprio texto já não é uma forma de educar, explicar, demonstrar, mostrar, e, enfim, ilustrar?

Se olharmos para o livro em si como uma ilustração de um texto composto por toda uma gama de elementos potenciais gráficos, o momento da sua transposição para uma obra reproduzível para o alcance de um público será sempre um exercício de ilustração, seja ele apenas em palavras ou se valendo dos tão valiosos artifícios do desenho, da tipografia, do design, da fotografia, ou da colagem.

Dessa forma, o pretenso conflito entre a ilustração e o texto não se mostra real, pois a ilustradora não compete com a autora na construção do sentido da obra, mas oferece, sim, um suporte para a leitora entrar com mais concretude no mundo do livro e dialogar com uma nova interpretação e representação, em forma de imagem, do que o texto sugere.

A ilustração, que acompanha a leitora desde a infância, continuará sempre ao seu lado, conferindo novos sentidos e novas interpretações ao texto, o que aumenta a pluralidade do já rico trabalho da autora. Assim, compraremos os livros pelas capas, os leremos pelas suas imagens, e arte-finalizaremos suas ilustrações com a nossa imaginação devidamente estimulada pelas palavras do seu texto. Desenharemos, enfim, junto com as suas ilustradoras, a vivência do livro na tela da nossa mente. Afinal, podemos até entender o que o livro nos conta, mas sempre será melhor que alguém também o desenhe para nós.

[oei#27] O assustador risco do livro enquanto um ativo cultural e financeiro das editoras

Um livro pode ser muitas coisas. Quanto ao seu formato, ele pode ser físico, em áudio, ou digital. Em relação ao seu objetivo, ele pode ser uma fonte de informação, uma ferramenta de aprendizado, um parceiro de diálogo e reflexão, ou uma porta para uma outra realidade, que nos promete diversão ou entretenimento. Se considerarmos o seu papel dentro do mercado editorial ele pode ser um projeto, um produto de um projeto, ou mesmo um investimento dentro de um catálogo, com o qual buscamos atingir resultados financeiros, artísticos, culturais ou sociais. Mas, em todas essas suas encarnações e pluralidades, uma coisa todos os livros serão: arriscados.

O livro, seja como produto, como projeto, ou como investimento, é arriscado. Ele é uma ideia que, ao ser planejada, executada, e distribuída ao seu público, por toda uma complexa cadeia de valor, toma concretude, mesmo quando digital, e corre diversos riscos que podem impedi-lo, ou não, de atingir os objetivos aos quais ele se propõe em sua concepção. Ser arriscado não quer dizer que ele é mais afeito ao fracasso ou ao sucesso, mas que há pouca certeza quanto aos eventos que irão ocorrer ao seu redor que poderão impactar positiva ou negativamente os seus resultados. E, dadas as informações do mercado, ele não é só sujeito a muitos riscos, ele é arriscadíssimo.

Quando olhamos para as pesquisas sobre o mercado editorial, tanto no Brasil como no exterior, as notícias nunca parecem boas. Sempre temos sinais de retração, com o fechamento de pontos de vendas, concentração de resultados em poucos livros, gêneros, editoras e vendedores, e, inclusive, dados, nem sempre confiáveis, que indicam que a grande maioria dos títulos não consegue passar a barreira de mil volumes vendidos. Isso faz com que o faturamento das editoras se concentre em alguns títulos de destaque e no retorno contínuo de alguns livros de catálogo que financiam toda uma operação que aparenta sempre estar só um pouco acima do que a constituiria como um investimento de retorno baixo demais para valer a pena. Tudo isso constitui o livro como um investimento arriscado, tanto nos critérios “artísticos” ou culturais, quanto nos financeiros e econômicos. Assim, viveríamos, como bem colocado por Ênio Silveira, fundador da editora Civilização Brasileira, entre o feijão e o sonho:

O editor, que se preze como tal, vive sempre oscilando entre dois polos, bem caracterizados pelo livro de Orígenes Lessa, O Feijão e o Sonho. Se ele se dedica só ao feijão, ele não é bom editor. E se ele se dedica só ao sonho, ele quebra a cara muito rapidamente, numa sociedade capitalista ele está fadado ao insucesso. O contraponto feijão/sonho é que dá a justa medida da qualidade de um editor – (da Coleção Editando o editor, n.3)

Porém, mesmo com esses flagrantes riscos envolvidos na nossa atividade, quando vamos nos debruçar sobre como os livros, enquanto projetos ou produtos, são geridos, ou mesmo sobre o retorno do investimento realizado por todos os integrantes dessa cadeia de valor, os dados disponíveis são poucos, pouco claros, pouco conclusivos, e, em alguns casos, completamente inexistentes.

Se o mercado do livro é um mercado tão arriscado por que razão não temos estratégias ou ferramentas específicas para lidar com esses riscos? Será que o livro enquanto uma “não-commodity” impede que tenhamos estratégias genéricas ou comuns que se apliquem a todos os lançamentos ou produtos de catálogo? Ou será que o baixo retorno esperado do livro enquanto investimento não compensa o gasto com estratégias mais robustas de gestão de risco que, além de poderem ter pouco impacto, irão encarecer ainda mais o produto final?

Mesmo que o mercado editorial se apresente como uma indústria de baixo retorno sobre o investimento, sempre vítima de um conflito entre o atingimento dos seus nobres objetivos de promoção cultural e intelectual, e sua sustentabilidade financeira, a importância do livro como símbolo e ponto central do nosso processo civilizatório pede insistentemente que a gestão dos seus riscos seja aprimorada a fim de aumentar as possibilidades de sucesso dos seus empreendimentos individuais e do próprio setor como um todo.

Para começar a endereçar esse dilema, é preciso estabelecer uma conversa com os diversos setores envolvidos com o livro, para buscar entender como os seus riscos, enquanto produto, projeto e investimento, são considerados, gerenciados, mitigados, eliminados, absorvidos e remediados no processo de gestão editorial. Só a partir do entendimento do conceito de risco para aqueles que fazem do livro a nossa profissão, poderemos encontrar, através de uma adequada gestão dos riscos, o equilíbrio entre o capital simbólico e financeiro do livro, e permitir que de alguma forma possamos fazer as pazes entre o feijão e o sonho que alimentam e sustentam o nosso propósito de vida.

[oei#26] O falso conflito entre leitura e escuta nos inescapáveis livros de som

Leia essa frase: No Princípio era o texto.

Ouça essa frase:

 

Quando vejo booktubers ou booktokers discutindo os méritos de considerar a audição de audiobooks como leitura por simples questões de contabilidade, sempre me pego lembrando: no princípio era o texto. Mas no princípio, esse texto, para o futuro leitor, e mesmo também para o autor que o concebeu era fala. Uma fala, muitas vezes, interna e íntima, mas uma fala.

E é essa fala que a escrita reproduz na história humana e na história pessoal de todos nós leitores. Não é à toa que o primeiro contato de todo o leitor, atual e futuro, com o texto é, ou foi, através da voz de outro. O texto então nos surge através da história contada pelos pais, pelas professoras, ou, hoje, pelas ferramentas online que distribuem vozes digitais, reais ou artificiais, transportando histórias dos mais distantes rincões do mundo até os computadores de mão que carregamos em nossos bolsos.

Essa fala, essa história, pode até ser contada na tradicional transmissão oral da cultura, mas quando ela é feita a partir do livro, é ali que o futuro leitor percebe que aquele objeto, físico ou digital, carrega, escondido nos sinais gráficos que representam palavras, um som. Um som estável e permanente, que se repete independendo de quem as lê. É nessa vocalização do texto que descobrimos a permanência da leitura.

Assim, após a aquisição da habilidade de decodificar as letras e as palavras, o leitor se torna, ele mesmo, o narrador do texto que se coloca à sua frente. Então a sua voz se sobrepõe à voz dos pais, dos professores, e dos mediadores de leitura. Ler, óbvio, é um dos primeiros sinais de independência do indivíduo, lhe permitindo ter discussões internas sobre as ideias dos outros, e lhe ensinando a processar a experiência alheia através da sua própria voz.

Por isso, a discussão sobre a validade do audiobook como leitura sempre me parece vã. O audiobook não é novo. Desde a possibilidade de registro sonoro, já esteve em todas as suas formas de reprodução, do vinil, passando pelo cassete e pelo CD, até o inescapável formato digital.

Mas tendemos a esquecer que o livro, que como uma forma de reprodução gráfica de massa também tem pouco tempo, foi concebido como uma forma de transmitir a voz de oradores, de poetas, de dramaturgos, de contadores de história. Enfim, o primeiro audiobook, o primeiro livro de som, foi o escrito.

Seja ele gráfico ou em áudio, o livro estará sempre cumprindo a sua missão de transmitir a fala do outro para as nossas mentes, da forma que for mais adequada ou conveniente às condições que tenhamos para participar dessa conversa, e de acordo com as nossas preferências de leitura ou audição. Pois o livro sempre será uma interface com a fala do outro com quem queremos nos relacionar. E a fala é a origem e o final de toda essa relação.

Leia essa frase: No Princípio era a fala.
Ouça essa frase:

[oei#25] A viagem no tempo do processo de inovação editorial

Colegas editores do passado, saudações.

Desde que comecei a visitar o início do século XXI para estudar o impacto das origens da Internet e da Inteligência Artificial no ciclo de vida dos produtos do mercado editorial, uma das coisas que mais me surpreendeu pelo seu primitivismo, além, óbvio, das guerras, da fome, da desigualdade social, e da existência de redes sociais virtuais, é o quanto vocês ainda falam de inovação. Sério, no futuro essa é uma palavra que quase ninguém usa. Hoje em dia, pelo contrário, parece que a inovação é a coisa mais inovadora que existe.

Mas, tranquilo, eu entendo vocês. O seu ambiente ainda não é o mais propício para a inovação. Sua ciência da administração ainda é muito focada em resultados de curto prazo, em geração de lucro e não em geração de valor. Pra piorar, não sei como, mas vocês ainda acham que são as pessoas que são inovadoras.

Apesar do Brian Eno já ter cantado a pedra desde 2009 de que não existe Gênio, mas Scênio- uma cena que promove a inovação no lugar do mito do desbravador individual-, vocês ainda têm essa mania de colocar os louros das mudanças de paradigmas, e, também, o estigma do erro em pessoas específicas. Besteira, é tudo parte de um mesmo processo coletivo. É preciso errar para inovar, pois, na vida, só temos duas opções: acertar ou aprender.

Outro problema taí. Quando a gente só quer acertar, a tendência é não inovar. Por exemplo, se o que está vendendo é autoficção e livro de colorir, fazer um livro para pintar fotos da Annie Ernaux não é bem inovação. Tá mais pra um golpe publicitário que tem tudo pra naufragar.

Assim, pra o tal Scênio acontecer, além de ter tolerância ao erro e aprender com ele, é preciso ter confiança nos outros atores do processo editorial, e saber que nem todo mundo precisa ser protagonista da inovação, mas que podemos ser excelentes coadjuvantes. Quando uma nova tecnologia chega, como foi com o livro digital, e agora com a inteligência artificial, é preciso criar cadeias de relacionamento que gerem e fortaleçam os ecossistemas de inovação. Em alguns momentos seremos nós na linha de frente das mudanças de paradigma, em outros seremos nós que precisaremos nos adaptar a elas. Tudo depende do foco da sua editora e dos interesses do seu público.

E essas inovações, é importante repetir, não surgem como uma lâmpada na cabeça de um iluminado, mas sim de um trabalho cuidadoso de recontextualizar os problemas, e se debruçar sobre as necessidades de todos os elos dessa cadeia. Só assim poderemos dar os saltos necessários nos nossos patamares, como fizemos no século XX nas mudanças de cadeias de distribuição, no desenvolvimento de novos pontos de venda, na digitalização dos processos de produção, e na criação de formatos físicos e digitais que atendiam a diferentes mercados. Quando chegamos nesses novos patamares, pode até parecer que os problemas antigos foram “resolvidos”, mas o que ocorreu, na verdade, foi que criamos um novo cenário onde novos desafios surgirão. O segredo aqui é ter a tranquilidade de olhar para esse processo como uma evolução contínua, e não como uma infindável e frustrante busca de soluções.

Essa evolução pode ser de todos os tamanhos e com maiores ou menores áreas de impacto. Desde melhorias de processos, com benefícios localizados na cadeia de produção de uma só editora, até as disruptivas, criando novos paradigmas para todo o mercado do livro, passando pelas inovações colaborativas, que promovem avanços para todo o setor e aumentam o público leitor. O somatório de todas essas inovações acumulativas é que vai construir o futuro de onde eu vim.

Um futuro em que saberemos aprender, reaprender e, principalmente, desaprender. Afinal, a única coisa que falta para criarmos esse ambiente, onde a inovação seja tão usual que nem precisemos falar dela, é justamente nos darmos a liberdade de olhar os problemas como simples provocações, e nos libertarmos das fórmulas do passado e dos nossos egos inflados.

Ops, espero não ter criado de novo, com a minha boca grande, nenhuma nova linha temporal onde adiantamos a disseminação da inovação no mercado editorial. Já não sei mais se errei ou inovei, mas uma certeza eu tenho: algo novo eu aprendi. E vocês? Aprenderam?

[oei#24] A bizarra intencionalidade casamenteira das inefáveis categorias dos livros

Quando você entrava na finada livraria Gracilianos do Ramo, situada entre a Djalma Urich e a Almirante Gonçalves, na Nossa Senhora de Copacabana, a primeira prateleira que lhe chamava a atenção era a de Bizarros. Não era exatamente uma categoria oficial de livros, pois nenhuma editora classificaria, em sã consciência e de forma não irônica, suas obras dessa forma, mas era, sim, uma espécie de declaração de identidade da loja e uma armadilha de relacionamentos.

Nela você encontrava Caminho das Borboletas, com as memórias de Adriane Galisteu sobre Airton Senna; Ai, que Loucura, autobiografia da diva mor de Copacabana, Narcisa Tamborindeguy; e até o faux pas de Fernando Sabino, Zélia, uma paixão. O próprio Fernando, cliente da loja, não questionava a inclusão da biografia romântica da ministra do confisco na estante de Bizarros, só pedia mais destaques para suas demais obras.

O fato é que essa prateleira notorizou a loja e atraiu uma certa qualidade de clientes para ela: os que gostavam tanto de livros que até os bizarros lhes encantavam. Assim, era fácil encontrar pessoas reunidas em volta da prateleira rindo ou discutindo a pertinência da inclusão das obras na categoria. Aquele metadado concreto, representado por uma discreta prateleira de menos de meio metro, atingiu seu objetivo: proporcionou o encontro mágico entre as obras e seus leitores, e formou uma comunidade.

Na livraria Baratos da Ribeiro o mesmo aconteceu com a ultrajante prateleira de eróticos, ornada por um nude fake de Sandy & Junior que motivou diversas ameaças de processo por fãs da dupla infantil. Hoje, os momentos do Zeitgeist Catalográfico continuam a ser sentidos nas prateleiras de livros de clubes de assinatura, comprados, recebidos, e nunca abertos, que você encontra na Beta de Aquarius, e da, ainda conceitual, de Autores Cancelados na livraria Jacaré.

A maneira de classificar os livros, o que hoje chamamos de metadados, é coisa antiga. Apolônio de Rodes já devia sofrer com o conflito eterno de encontrar a prateleira certa na Biblioteca de Alexandria para seus livros e seus leitores. Desde aquela época, o objetivo da classificação é possibilitar o resgate e a descoberta da obra certa para o leitor certo, e isso não depende somente de uma característica do livro, mas, principalmente, do que vai atrair o olhar e o desejo do leitor para ele.

Assim, livros sambam de uma categoria para outra dependendo dos contextos culturais e políticos; outros nunca parecem estar no lugar certo, como as obras de Nabokov que às vezes figuram em Literatura Russa, de Língua Inglesa, ou, até mesmo, pasme, na de Eróticos; e novas categorias surgem como a de Autoficção, que, dizem os mais maldosos, não passa de autobiografia bagaceira de celebridades para intelectuais.

Hoje, graças às tecnologias de informação, é cada vez mais fácil resgatar dados sobre os livros e sobre a forma como os leitores se relacionam com eles. Com todas essas evidências, os metadados acabam transcendendo as próprias obras e começam a ser qualificativos dos relacionamentos que esses encontros literários sugerem. Afinal, o que torna um livro reconhecível a um público é a sua condição de espelho, o que o leitor encontra de si mesmo na obra que criará uma ligação cognitiva e emocional entre os dois. Pois, se pensarmos bem, todos os livros do mundo, dependendo do público, poderiam estar na prateleira de Bizarros.