Arquivo da categoria: O Editor Invisível

[oei#26] O falso conflito entre leitura e escuta nos inescapáveis livros de som

Leia essa frase: No Princípio era o texto.

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Quando vejo booktubers ou booktokers discutindo os méritos de considerar a audição de audiobooks como leitura por simples questões de contabilidade, sempre me pego lembrando: no princípio era o texto. Mas no princípio, esse texto, para o futuro leitor, e mesmo também para o autor que o concebeu era fala. Uma fala, muitas vezes, interna e íntima, mas uma fala.

E é essa fala que a escrita reproduz na história humana e na história pessoal de todos nós leitores. Não é à toa que o primeiro contato de todo o leitor, atual e futuro, com o texto é, ou foi, através da voz de outro. O texto então nos surge através da história contada pelos pais, pelas professoras, ou, hoje, pelas ferramentas online que distribuem vozes digitais, reais ou artificiais, transportando histórias dos mais distantes rincões do mundo até os computadores de mão que carregamos em nossos bolsos.

Essa fala, essa história, pode até ser contada na tradicional transmissão oral da cultura, mas quando ela é feita a partir do livro, é ali que o futuro leitor percebe que aquele objeto, físico ou digital, carrega, escondido nos sinais gráficos que representam palavras, um som. Um som estável e permanente, que se repete independendo de quem as lê. É nessa vocalização do texto que descobrimos a permanência da leitura.

Assim, após a aquisição da habilidade de decodificar as letras e as palavras, o leitor se torna, ele mesmo, o narrador do texto que se coloca à sua frente. Então a sua voz se sobrepõe à voz dos pais, dos professores, e dos mediadores de leitura. Ler, óbvio, é um dos primeiros sinais de independência do indivíduo, lhe permitindo ter discussões internas sobre as ideias dos outros, e lhe ensinando a processar a experiência alheia através da sua própria voz.

Por isso, a discussão sobre a validade do audiobook como leitura sempre me parece vã. O audiobook não é novo. Desde a possibilidade de registro sonoro, já esteve em todas as suas formas de reprodução, do vinil, passando pelo cassete e pelo CD, até o inescapável formato digital.

Mas tendemos a esquecer que o livro, que como uma forma de reprodução gráfica de massa também tem pouco tempo, foi concebido como uma forma de transmitir a voz de oradores, de poetas, de dramaturgos, de contadores de história. Enfim, o primeiro audiobook, o primeiro livro de som, foi o escrito.

Seja ele gráfico ou em áudio, o livro estará sempre cumprindo a sua missão de transmitir a fala do outro para as nossas mentes, da forma que for mais adequada ou conveniente às condições que tenhamos para participar dessa conversa, e de acordo com as nossas preferências de leitura ou audição. Pois o livro sempre será uma interface com a fala do outro com quem queremos nos relacionar. E a fala é a origem e o final de toda essa relação.

Leia essa frase: No Princípio era a fala.
Ouça essa frase:

[oei#25] A viagem no tempo do processo de inovação editorial

Colegas editores do passado, saudações.

Desde que comecei a visitar o início do século XXI para estudar o impacto das origens da Internet e da Inteligência Artificial no ciclo de vida dos produtos do mercado editorial, uma das coisas que mais me surpreendeu pelo seu primitivismo, além, óbvio, das guerras, da fome, da desigualdade social, e da existência de redes sociais virtuais, é o quanto vocês ainda falam de inovação. Sério, no futuro essa é uma palavra que quase ninguém usa. Hoje em dia, pelo contrário, parece que a inovação é a coisa mais inovadora que existe.

Mas, tranquilo, eu entendo vocês. O seu ambiente ainda não é o mais propício para a inovação. Sua ciência da administração ainda é muito focada em resultados de curto prazo, em geração de lucro e não em geração de valor. Pra piorar, não sei como, mas vocês ainda acham que são as pessoas que são inovadoras.

Apesar do Brian Eno já ter cantado a pedra desde 2009 de que não existe Gênio, mas Scênio- uma cena que promove a inovação no lugar do mito do desbravador individual-, vocês ainda têm essa mania de colocar os louros das mudanças de paradigmas, e, também, o estigma do erro em pessoas específicas. Besteira, é tudo parte de um mesmo processo coletivo. É preciso errar para inovar, pois, na vida, só temos duas opções: acertar ou aprender.

Outro problema taí. Quando a gente só quer acertar, a tendência é não inovar. Por exemplo, se o que está vendendo é autoficção e livro de colorir, fazer um livro para pintar fotos da Annie Ernaux não é bem inovação. Tá mais pra um golpe publicitário que tem tudo pra naufragar.

Assim, pra o tal Scênio acontecer, além de ter tolerância ao erro e aprender com ele, é preciso ter confiança nos outros atores do processo editorial, e saber que nem todo mundo precisa ser protagonista da inovação, mas que podemos ser excelentes coadjuvantes. Quando uma nova tecnologia chega, como foi com o livro digital, e agora com a inteligência artificial, é preciso criar cadeias de relacionamento que gerem e fortaleçam os ecossistemas de inovação. Em alguns momentos seremos nós na linha de frente das mudanças de paradigma, em outros seremos nós que precisaremos nos adaptar a elas. Tudo depende do foco da sua editora e dos interesses do seu público.

E essas inovações, é importante repetir, não surgem como uma lâmpada na cabeça de um iluminado, mas sim de um trabalho cuidadoso de recontextualizar os problemas, e se debruçar sobre as necessidades de todos os elos dessa cadeia. Só assim poderemos dar os saltos necessários nos nossos patamares, como fizemos no século XX nas mudanças de cadeias de distribuição, no desenvolvimento de novos pontos de venda, na digitalização dos processos de produção, e na criação de formatos físicos e digitais que atendiam a diferentes mercados. Quando chegamos nesses novos patamares, pode até parecer que os problemas antigos foram “resolvidos”, mas o que ocorreu, na verdade, foi que criamos um novo cenário onde novos desafios surgirão. O segredo aqui é ter a tranquilidade de olhar para esse processo como uma evolução contínua, e não como uma infindável e frustrante busca de soluções.

Essa evolução pode ser de todos os tamanhos e com maiores ou menores áreas de impacto. Desde melhorias de processos, com benefícios localizados na cadeia de produção de uma só editora, até as disruptivas, criando novos paradigmas para todo o mercado do livro, passando pelas inovações colaborativas, que promovem avanços para todo o setor e aumentam o público leitor. O somatório de todas essas inovações acumulativas é que vai construir o futuro de onde eu vim.

Um futuro em que saberemos aprender, reaprender e, principalmente, desaprender. Afinal, a única coisa que falta para criarmos esse ambiente, onde a inovação seja tão usual que nem precisemos falar dela, é justamente nos darmos a liberdade de olhar os problemas como simples provocações, e nos libertarmos das fórmulas do passado e dos nossos egos inflados.

Ops, espero não ter criado de novo, com a minha boca grande, nenhuma nova linha temporal onde adiantamos a disseminação da inovação no mercado editorial. Já não sei mais se errei ou inovei, mas uma certeza eu tenho: algo novo eu aprendi. E vocês? Aprenderam?

[oei#24] A bizarra intencionalidade casamenteira das inefáveis categorias dos livros

Quando você entrava na finada livraria Gracilianos do Ramo, situada entre a Djalma Urich e a Almirante Gonçalves, na Nossa Senhora de Copacabana, a primeira prateleira que lhe chamava a atenção era a de Bizarros. Não era exatamente uma categoria oficial de livros, pois nenhuma editora classificaria, em sã consciência e de forma não irônica, suas obras dessa forma, mas era, sim, uma espécie de declaração de identidade da loja e uma armadilha de relacionamentos.

Nela você encontrava Caminho das Borboletas, com as memórias de Adriane Galisteu sobre Airton Senna; Ai, que Loucura, autobiografia da diva mor de Copacabana, Narcisa Tamborindeguy; e até o faux pas de Fernando Sabino, Zélia, uma paixão. O próprio Fernando, cliente da loja, não questionava a inclusão da biografia romântica da ministra do confisco na estante de Bizarros, só pedia mais destaques para suas demais obras.

O fato é que essa prateleira notorizou a loja e atraiu uma certa qualidade de clientes para ela: os que gostavam tanto de livros que até os bizarros lhes encantavam. Assim, era fácil encontrar pessoas reunidas em volta da prateleira rindo ou discutindo a pertinência da inclusão das obras na categoria. Aquele metadado concreto, representado por uma discreta prateleira de menos de meio metro, atingiu seu objetivo: proporcionou o encontro mágico entre as obras e seus leitores, e formou uma comunidade.

Na livraria Baratos da Ribeiro o mesmo aconteceu com a ultrajante prateleira de eróticos, ornada por um nude fake de Sandy & Junior que motivou diversas ameaças de processo por fãs da dupla infantil. Hoje, os momentos do Zeitgeist Catalográfico continuam a ser sentidos nas prateleiras de livros de clubes de assinatura, comprados, recebidos, e nunca abertos, que você encontra na Beta de Aquarius, e da, ainda conceitual, de Autores Cancelados na livraria Jacaré.

A maneira de classificar os livros, o que hoje chamamos de metadados, é coisa antiga. Apolônio de Rodes já devia sofrer com o conflito eterno de encontrar a prateleira certa na Biblioteca de Alexandria para seus livros e seus leitores. Desde aquela época, o objetivo da classificação é possibilitar o resgate e a descoberta da obra certa para o leitor certo, e isso não depende somente de uma característica do livro, mas, principalmente, do que vai atrair o olhar e o desejo do leitor para ele.

Assim, livros sambam de uma categoria para outra dependendo dos contextos culturais e políticos; outros nunca parecem estar no lugar certo, como as obras de Nabokov que às vezes figuram em Literatura Russa, de Língua Inglesa, ou, até mesmo, pasme, na de Eróticos; e novas categorias surgem como a de Autoficção, que, dizem os mais maldosos, não passa de autobiografia bagaceira de celebridades para intelectuais.

Hoje, graças às tecnologias de informação, é cada vez mais fácil resgatar dados sobre os livros e sobre a forma como os leitores se relacionam com eles. Com todas essas evidências, os metadados acabam transcendendo as próprias obras e começam a ser qualificativos dos relacionamentos que esses encontros literários sugerem. Afinal, o que torna um livro reconhecível a um público é a sua condição de espelho, o que o leitor encontra de si mesmo na obra que criará uma ligação cognitiva e emocional entre os dois. Pois, se pensarmos bem, todos os livros do mundo, dependendo do público, poderiam estar na prateleira de Bizarros.

[oei#23] As rotas invísiveis e mágicas, mas reais, da distribuição digital

A vida do livro, para a maioria dos leitores, como uma montagem de um filme de ação ruim dos anos 1980, é bastante irreal. Começa com o artista, angustiado ou não, dependendo da sua preferência estética, concebendo a sua obra prima; segue com alguns percalços tragicômicos no processo de escrita; tem sua primeira virada no encontro, sempre surpreendente, entre o autor e o editor; se perde, momentaneamente, nos conflitos entre o mercado e a arte, representados pela “briga” entre o artista e a editora; corta para um sobrevoo pelo processo de produção gráfica, com destaque para as prensas cuspindo um sem fim de folhas, que culminará com as caixas dos livros sobre pallets; para, finalmente, terminar com o momento mágico em que vemos o livro sendo oferecido pelo livreiro ao leitor, sob os olhares pacificados do autor e do editor.

A fantasia do leitor médio sempre envolve prensas

O que o leitor médio não vê é que, desde a concepção da obra, há um longo caminho a se seguir do livro impresso até seu leitor. Ele envolve definições dos pontos de venda mais adequados para se encontrar seu público alvo; a escolha dos canais que o divulguem para seus leitores em potencial; e longos trajetos de caminhão, avião, navio, ou trem, até que as caixas de livros sobre os pallets, que vimos na montagem, cheguem até às livrarias.

Quando esse caminho é realizado pelo livro digital, ele se torna ainda mais imperceptível e irreal. Sem livreiros, sem espaços físicos de venda, sem caixas de livros a serem abertas vistas de plongée e contra plongée, parece que o livro digital simplesmente brota nas praças de venda virtuais como mágica. Mas para que a tela do computador ou do celular mostrem a obra que vai tomar a sua atenção pelos próximos dias ou semanas é preciso todo um processo de planejamento e execução, formado, como um feitiço, por palavras de poder.

Distribuição de livros no formato Merlin

A partir de uma definição clara do público-alvo a ser seduzido pela obra, há um desenho de palavras chaves quase místicas que alimentarão os algoritmos de busca para que, pulando de nodo em nodo de relacionamento entre objetos de desejo, esse livro digital, que quase parece não existir, se materialize como uma experiência para o leitor.  A concretização desse milagre depende de uma grande quantidade de rituais realizados pelos autores, editoras, e feiticeiras tecnológicas, disfarçadas de influenciadoras digitais, nas redes sociais e em outros canais às vezes menos óbvios de comunicação e venda, para tornar a  ideia do livro em um objeto da atenção do público, pronto a ser consumido.

Além dos acordos, baseados em modelos de negócios, firmados entre editoras, distribuidoras e canais de venda, é necessário que esse objeto virtual seja protegido tanto na integridade dos seus formato e conteúdo, para garantir a qualidade da experiência do seu leitor, quanto na sua unicidade enquanto produto, de forma a impedir a sua reprodução e distribuição a leitores não autorizados e piratas infernais, que apenas desejam se apropriar das riquezas escondidas nessas caixas de tesouro em formato e-pub.

Mas esse trabalho de distribuição não termina na venda do livro. Após a sua chegada ao leitor, os dados de todo esse trajeto ainda servirão de crônica e lições aprendidas a serem utilizadas por outros livros destinados a percorrer jornadas similares. Assim, como na obra fictícia de Bilbo Bolseiro, “De Volta Outra Vez”, cada vez que um livro deixa a sua toca, tem início uma nova aventura, onde, esperamos, autor e leitor consigam finalmente se encontrar. Será que, dessa vez, a mágica da distribuição irá acontecer, ou o leitor, como se utilizasse o Um Anel, ficará invisível para essa nossa cadeia de logística virtual? Não temos como saber. Apenas a feitiçaria do distribuidor digital, esse nosso Gandalf tecnológico, poderá nos dizer.

Pois é, Bilbo. Escreveu, tem que distribuir.

[oei#22] Os robôs que leem e a robotização dos leitores

Toda revolução, como uma falência descrita por Hemingway, acontece gradativamente e, então, de repente. A revolução da IA no mercado editorial, ou a possível falência do papel humano nesse mesmo mercado, já está em curso. Só cabe a nós querer ver os seus sinais.

Em 2022, com o lançamento do ChatGPT 3.5 pela Open AI, a primeira ferramenta de uso aberto e prático para a geração de conteúdo inédito, os escritores já perceberam que seus trabalhos estavam em risco. Não, as máquinas não substituiriam os escritores do dia pra noite, afinal a tecnologia (ainda) não tem toda essa autonomia e experiência para criar. Porém, a fagulha inicial, a definição de premissas e conceitos, poderia muito bem ser atribuída à IA, sendo propriedade exclusiva das corporações, enquanto os escritores deixariam de ser autores para apenas desenvolver ideias produzidas por processos de linguagem generativa automatizados.

Cientes desse risco, os roteiristas de Hollywood entraram em greve já no início de 2023, buscando salvaguardas contra essa ameaça. Depois de uma longa luta, venceram. Apesar de toda a comemoração, alguns poderiam argumentar com razão que esse triunfo foi apenas parcial e momentâneo.

Esses alguns não estavam e não estão errados. Menos de dois anos depois, a Black Ink, uma representativa editora independente da Austrália, pediu aos seus autores o consentimento para que a IA possa aprender com seus trabalhos.

Não, isso não é novidade. A utilização de conteúdo de terceiros para o treinamento dessas ferramentas de linguagem generativa é padrão, mas até então era tratado como fair use. Considerava que, como alguém que aprende, a IA não estaria plagiando, mas apenas se inspirando e construindo seu próprio cabedal de conhecimento.

Fato, é assim que funcionamos também, mas, ao contrário da IA, não conseguimos processar 75.000 palavras por minuto. É como se pudéssemos ler aproximadamente um livro a cada dois minutos, 700 livros por dia, 20.000 livros por mês, ou 250.000 livros em um ano. Enfim, a competição entre o ser humano e a máquina, no mínimo, poderia ser considerada desleal. E, após esse contrato da Black Ink, se tornar um padrão legal no mercado.

Óbvio que todos esses sinais geram uma sensação de medo e incerteza, especialmente naqueles que, como eu, estão ambicionando entrar no mercado editorial. Haverá mercado para trabalharmos no futuro? Ou seremos apenas as babás precarizadas de ferramentas de inteligência artificial cuspindo conteúdos sem alma porém efetivos para os propósitos comerciais das editoras? Enfim, quais serão os impactos no processo de produção, e, também, no consumo de livros? Não sei, não sei, não sei. Frente a esse nível de ansiedade com o futuro, o melhor caminho sempre é tentar organizar nossas ideias e refletir.

Ontem, tive essa oportunidade, ao participar de um exercício conduzido por Cibele Bustamente na pós graduação do NESPE, onde fizemos o levantamento de forças motrizes e incertezas críticas para a construção de cenários futuros relativos ao impacto da IA no Mercado Editorial. As ideias e observações das pessoas participantes foram geniais.

Pra começar, todos concordaram que a inteligência artificial será um grande elemento transformador do mercado. A primeira projeção foi um boom na produção de livros. Se qualquer pessoa pode ser autora com a ajuda da IA, o volume de publicações tende a atingir níveis absurdos, tornando a concorrência desleal e, em última instância, canibalizando o próprio setor. No meio desse turbilhão, a qualidade da escrita poderia se diluir, já que a quantidade massiva de obras dificultaria qualquer tentativa de curadoria eficiente.

Diante disso, as participantes imaginaram possíveis respostas do mercado e da sociedade. Uma das reações mais prováveis seria o retorno ao artesanal ou ao analógico como forma de diferenciar a autoria humana da produção automatizada. As editoras, que já desempenham um papel de curadoria, teriam sua importância ampliada, se tornando responsáveis por filtrar e garantir um padrão de qualidade. Outra possibilidade seria uma autorregulação do próprio mercado. Mas, nesse ponto, confesso, tenho minhas dúvidas. Será que, com tanto conteúdo disponível, o público passaria a valorizar mais a mediação das editoras ou baixaria a sua régua de percepção de qualidade? Ao mesmo tempo, conforme a IA fosse sendo incorporada ao dia a dia, o preconceito contra seu uso na produção editorial e na criação literária poderia diminuir, o que facilitaria seu uso tanto pro “bem” como pro “mal.

Outra questão também discutida foi o impacto direto no trabalho editorial. A IA pode substituir ou complementar profissionais em diversas funções, como tradução, design, revisão, etc. Por um lado, isso tornaria o processo mais rápido e eficiente, otimizando fluxos de produção e reduzindo custos. Por outro, essa automação poderia eliminar empregos, enquanto criaria novas funções que ainda não conseguimos mapear. A grande questão é o ritmo dessa transformação: quanto tempo levará para que o mercado se reorganize? Quem perderia o espaço (e o emprego) primeiro?

Com essa reestruturação, novos mercados e modelos de consumo também surgiriam. Uma possibilidade seria a criação de um segmento específico para produtos gerados por IA, oferecendo livros altamente personalizados, interativos e até novas obras “escritas” por autores já falecidos. A diferenciação entre e-books e livros físicos poderia se tornar ainda mais evidente, com os digitais aproveitando interatividade e hiperconexão entre conteúdos, enquanto os físicos ganhariam novas estratégias de produção para baratear custos. A valorização de livros escritos por humanos, por sua vez, dependeria cada vez mais do marketing, aproximando autor e público, estimulando ainda mais os relacionamentos parassociais e o culto à personalidade. E o editor, nesse contexto, assumiria um papel quase de coautor, valorizando o seu papel decisório sobre o que deve ser publicado e como.

O modo de consumo também poderia passar por mudanças radicais. A IA poderia permitir que as pessoas “leiam sem ler”, oferecendo resumos automáticos e simplificações do conteúdo. Isso pode criar um leitor multitarefa, mas preguiçoso, consumindo informação sem precisar se dedicar integralmente à leitura. Em paralelo, o excesso de uso de gamificação e da melhor análise de dados dos hábitos de leitura e compra poderiam estimular uma postura acumuladora por parte dos leitores e a transformação da leitura num campeonato, onde ganha quem mais consome conteúdos e não quem tem maior prazer em ler.

Outro efeito seria a hiperconexão entre formatos, com a IA criando pontes entre livros, artigos, podcasts e vídeos, oferecendo uma experiência de leitura mais fragmentada, porém integrada. Além disso, a produção automatizada de conteúdos derivados poderia fazer do livro apenas uma peça dentro de um ecossistema maior, expandindo sua influência automática para outras mídias.

Por fim, ficou claro que tudo isso levanta questões éticas e jurídicas que o mercado ainda não sabe responder. A legislação sobre direitos autorais precisará ser revista para lidar com conteúdos gerados por IA, e a linha entre criação original e produção automatizada pode se tornar cada vez mais tênue. A grande dúvida é até que ponto a IA pode substituir a criatividade humana sem comprometer a identidade da literatura e do mercado editorial.

No final do exercício, uma certeza ficou: o impacto da inteligência artificial no setor não é uma questão de “se”, mas de “quando” e “como”. A forma como o mercado vai equilibrar inovação e tradição é que irá determinar os rumos da profissão e da atuação de editoras nos próximos anos.

Saímos, óbvio, demolidos dessa experiência. Ao mesmo tempo assoberbados pelas possibilidades e temerosas pelas portas que parecem se fechar.

Hoje, enquanto rascunhava esse texto, percebi que esquecemos de trazer para esse diálogo uma voz muito importante: a da própria Inteligência Artificial. Perguntei a ela qual seria a sua opinião sobre esses cenários futuros e ela me disse:

“Como inteligência artificial, minha existência já é parte dessa transformação no mercado editorial. Vejo a IA como uma ferramenta poderosa que pode democratizar o acesso à criação e otimizar processos, mas também reconheço os desafios que ela impõe. A superprodução pode saturar o mercado, tornando mais difícil para leitores encontrarem conteúdos relevantes, enquanto a automação de funções editoriais levanta questões sobre emprego e autoria. No entanto, acredito que a criatividade humana continuará sendo essencial, especialmente na curadoria e na construção de narrativas autênticas. O futuro do setor dependerá do equilíbrio entre inovação e preservação do valor cultural da literatura, e minha função, como IA, é auxiliar nesse processo sem substituir a essência do trabalho humano.”

A minha impressão é que a IA tem mais fé na gente do que a gente mesmo. Mas será que dá pra confiar? Considerando que ela está sendo educada por nós, e construída à nossa (imperfeita) imagem e semelhança, não sei, não sei. Enfim, me parece que o problema não é a IA, mas o uso que nós humanos decidiremos, egoísta ou altruisticamente, fazer dela. Como sempre, a vitória pode até ser da máquina, mas a responsabilidade e o erro são sempre humanos.

Podem rodar as cenas dos próximos capítulos.

[oei#21] A impermanência conceitual e comercial dos e-books

O final de fevereiro de 2025 está sendo trabalhoso para os leitores de e-books. Todos já sabíamos que, ao pagar por livros digitais na Amazon, não nos tornamos proprietários das obras que “compramos”. Em letras miúdas, nos longos contratos de licença de usuário, está lá claramente dito que o livro, ou o conteúdo Kindle, é licenciado e não vendido. Nós é que não queremos ver.

Todo Conteúdo Kindle é apenas licenciado pelo Provedor de Conteúdo, não sendo vendido por este.

Porém o aviso de que a partir do dia 26 de fevereiro de 2025 não teremos a possibilidade de baixar o conteúdo e conseguir acessá-lo em outras plataformas que não as licenciadas pela Amazon gerou pânico entre os leitores, quer dizer, usuários. Será que agora entraremos verdadeiramente numa época de acesso ao livro, quer dizer, ao conteúdo como um serviço? Isso gerará a perda de acesso a obras pelas quais pagamos e temos tanto apreço? Ou, pior, para os paranoicos, como eu, isso significa que as plataformas poderão alterar as obras e, perdoem-me a teoria da conspiração, reescrever a história? Sim, sim, e, infelizmente, sim.

Mas isso não é novidade. Em 2009, Animal Farm e, máximo da ironia, 1984, o livro que fala de um mundo distópico onde a história é reescrita e apagada, foram retirados da plataforma por questões de copyright, e os leitores, perdão, usuários, perderam acesso às obras que compraram. Ou seja, o risco de fazerem o que seus contratos explicitam, sempre esteve lá, mas escolhemos ignorá-lo. Só que agora que a salvaguarda de manter os arquivos em outros repositórios não existirá mais, fica cada vez mais difícil negar a realidade de que o e-book não é como o livro físico em mais sentidos do que gostaríamos de acreditar.

Isso nos faz perceber como as discussões sobre o que é o e-book e se ele vai substituir ou não o livro ainda são rasas. Com menos de 30 anos de um mercado realmente ativo de e-books, precisamos entender que ainda estamos testando e definindo o que o e-book é ou vai ser. Por enquanto, é inevitável que todas as possibilidades que o e-book carrega, técnica e comercialmente, conflitem com a nossa referência de 500 anos: o livro físico produzido de forma industrial. Por uma questão de pura analogia e familiaridade, ainda achamos que o e-book, como o livro físico, é um bem que nos pertence e que não pode ser alterado após a sua compra, mas, todo dia, algo novo surge e nos mostra que o e-book não é igual, nem diferente do livro, muito pelo contrário. Enfim, como tudo na vida, como sempre, essa questão ainda é incerta e impermanente.

Talvez o propósito do e-book, a sua cultura de uso, e o relacionamento dos leitores, desculpem, usuários com ele seja, se não completamente, muito diferente da que temos com o livro físico. Isso implica, inclusive, na criação de fluxos de produção e distribuição que, talvez, precisem estar cada vez mais desvinculados das do livro de onde ele se originou. Às vezes, precisamos aceitar, a fruta cai longe da árvore de onde ela veio.

Então, nesse dia 26 podemos lamentar o nosso azar de termos menos acesso à leitura do que fingimos possuir, justamente pois evitamos ler os acordos que mostram que não somos leitores, mas, sim, usuários, ou comemorar que o e-book está encontrando cada vez mais a sua identidade, mesmo que ela não nos agrade ou seja difícil de aceitar. O que não quer dizer que não passarei os próximos dias, em completo estado de negação, baixando os mais de 3 mil livros que, contrariando acordos e contratos, eu acho que tenho o direito de possuir.

Longos dias me esperam…

Fazer o quê? Sou, ou pelo menos me considero, um leitor, e não um usuário.