Outubro de 1989. A Nintendo coloca no mercado a Power Glove com a missão de mudar definitivamente a forma como interagimos com os videogames. Em vez de joysticks, usaríamos agora gestos para determinar como os nossos avatares iriam se comportar nos novos jogos digitais. O frenesi é tamanho que a Power Glove chega a ser a protagonista de seu próprio filme, “The Wizard”, com a maior estrela infantojuvenil da época: Fred Savage.
Dezembro de 2009. Um mês que a história do Cinema não iria esquecer. Em salas de todo o mundo, estreou Avatar, o filme que prometia marcar a passagem do cinema da era 2D para 3D. Na esteira do seu sucesso, até TVs foram lançadas onde, em nossos próprios lares, poderíamos acompanhar a inescapável revolução dimensional.
Outubro de 2021. No rastro do fim da pandemia da CoVid-19, apostando nas mudanças provocadas pelo “novo normal” nas relações sociais e de trabalho, o Facebook muda seu nome para Meta, mostrando o seu compromisso com o desenvolvimento de aplicações e tecnologias voltadas para a criação de uma realidade virtual compartilhada.
O que todas essas tecnologias têm em comum? Elas prometeram revolucionar suas mídias e mercados e não o fizeram. Pelo menos, ainda. Isso não quer dizer que elas não mudaram processos de produção, o formato de produtos, ou não promoveram a criação de novos nichos de consumo, mas elas com certeza não atingiram todo o hype que era prometido no seu lançamento.
Esse ciclo de adoção de tecnologias é descrito em quatro grandes fases pelo Gartner Hype Cycle:
- Gatilho de Inovação: O lançamento de uma tecnologia emergente gera muito interesse da mídia e do público, mas ela ainda não está consolidada, e há poucas aplicações práticas e muitas dúvidas sobre sua viabilidade comercial.
- Auge das Expectativas Infladas: Logo o entusiasmo pela tecnologia atinge o pico, prometendo benefícios (ou malefícios) e aplicações muitas vezes exageradas. Porém há um claro otimismo no mercado e a tecnologia ganha destaque na mídia, baseado em expectativas bastante irreais.
- Abismo da Desilusão: Eventualmente, as expectativas não se confirmam e o entusiasmo inicial diminui, pois a tecnologia não atende a todas as promessas que foram incensadas a seu respeito. Começam os questionamentos sobre a sua viabilidade e a sua utilidade prática.
- Rampa da Consolidação: Nesse momento, após a sensação de fracasso, as aplicações práticas da tecnologia começam a se tornar mais claras e o interesse se restabelece, com uma visão mais realista de seus benefícios. Há uma nova rodada de investimentos e testes mais concretos em diferentes áreas.
- Platô da Produtividade: Enfim, a tecnologia se consolida, com aplicações mais estáveis e amplamente aceitas, atingindo a sua maturidade pela adoção generalizada e pela sua incorporação nos processos de trabalho.
Segundo o último Gartner Hype Cycle, a IA está começando a descer a ladeira em direção ao Abismo da Desilusão, mas quando falamos do mercado editorial, que historicamente sempre foi mais lento na adoção de novas tecnologias, podemos dizer que estamos ainda no início do Auge das Expectativas Infladas. Porém, no nosso caso, as expectativas não são assim tão positivas.
Somos hoje assombrados por muitas ansiedades geradas pelas mudanças que a IA tem promovido: a dificuldade de comprovar e cobrar pelo uso não autorizado de obras para treinar as IAs generativas; a substituição de profissionais experientes por IA em diversas etapas do processo de preparação das obras; e até a entrada agressiva de outros players, em especial da área de tecnologia, no mercado para competir pelos nossos cada vez mais minguados públicos.
Mas esse não é um medo novo. Toda mudança tecnológica gera ansiedades e provoca mudanças em processos e nas atividades profissionais, gerando insegurança e dúvidas num mercado cada dia mais desafiador. Qual será o papel do humano nos processos editoriais futuros? Qual será o impacto da Inteligência Artificial na produção das obras e na sua distribuição? Haverá um mercado quando a IA realmente fizer tudo o que ela diz se propor a fazer?
Em vez de ficarmos paralisados entre a negação dos impactos dessa tecnologia emergente e a fantasia de ruína, inspirada por Borges, sobre uma Biblioteca de Babel da IA, onde se gerariam automaticamente todas as possíveis versões de livros, por meio das combinações de exaustivas de letras até que, como acontece nos Nove Bilhões dos Nomes de Deus de Arthur C. Clarke, as estrelas comecem a apagar, há muito que podemos fazer.
Primeiro, precisamos entender que não existe apenas UM mercado editorial, mas múltiplos, e que cada um deles irá responder de forma diferente às mudanças que a tecnologia sugere. Por exemplo, apesar da já consolidada participação dos e-books no nosso mercado, uma área onde eles ainda podem crescer, mas ainda não têm muita aderência, é o nicho dos livros infantis. Isso se dá por uma demora na absorção da tecnologia ou pela natureza desse público?
Dois, é necessário nos debruçar sobre quais são os nossos reais diferenciais enquanto empresas e profissionais. Se o que torna nossos produtos ou serviços realmente diferentes for algo que a tecnologia faz melhor que nós, é preciso rever nossas propostas de valor. Ou, em alguns casos, isso inclusive pode nos fazer entender melhor quais atividades são merecedoras dos nossos tempo e atenção e geram valor para nossos públicos.
E, finalmente, podemos aproveitar essa sacudida no mercado para rever nossos propósitos, lembrando que nós usamos a tecnologia e não somos usados por ela. A nossa maior defesa e força nesse processo de adaptação está na clareza da nossa identidade e dos nossos valores.
Sim, o futuro já chegou, mas, como disse William Gibson, ele não está igualmente nem igualitariamente distribuído. E, dependendo de quem somos no mercado e da nossa relação com nossos parceiros e clientes, podemos escolher quais tecnologias iremos implementar e como elas irão nos mudar. A adoção abrangente de IA, apesar de todo Hype, não é um imperativo, mas uma escolha consciente a se fazer. Assim, como na clássica cena final de Jogos de Guerra, incorporar a IA em nossos processos, dependendo da proposta de valor e dos modelos dos nossos negócios, pode ser um jogo que se ganha escolhendo não jogar.
Mas, para isso, precisamos saber quem realmente somos.
E você? Quem é você no mercado editorial?
A IA em breve irá lhe perguntar.