Arquivo da categoria: O Editor Invisível

[oei#23] As rotas invísiveis e mágicas, mas reais, da distribuição digital

A vida do livro, para a maioria dos leitores, como uma montagem de um filme de ação ruim dos anos 1980, é bastante irreal. Começa com o artista, angustiado ou não, dependendo da sua preferência estética, concebendo a sua obra prima; segue com alguns percalços tragicômicos no processo de escrita; tem sua primeira virada no encontro, sempre surpreendente, entre o autor e o editor; se perde, momentaneamente, nos conflitos entre o mercado e a arte, representados pela “briga” entre o artista e a editora; corta para um sobrevoo pelo processo de produção gráfica, com destaque para as prensas cuspindo um sem fim de folhas, que culminará com as caixas dos livros sobre pallets; para, finalmente, terminar com o momento mágico em que vemos o livro sendo oferecido pelo livreiro ao leitor, sob os olhares pacificados do autor e do editor.

A fantasia do leitor médio sempre envolve prensas

O que o leitor médio não vê é que, desde a concepção da obra, há um longo caminho a se seguir do livro impresso até seu leitor. Ele envolve definições dos pontos de venda mais adequados para se encontrar seu público alvo; a escolha dos canais que o divulguem para seus leitores em potencial; e longos trajetos de caminhão, avião, navio, ou trem, até que as caixas de livros sobre os pallets, que vimos na montagem, cheguem até às livrarias.

Quando esse caminho é realizado pelo livro digital, ele se torna ainda mais imperceptível e irreal. Sem livreiros, sem espaços físicos de venda, sem caixas de livros a serem abertas vistas de plongée e contra plongée, parece que o livro digital simplesmente brota nas praças de venda virtuais como mágica. Mas para que a tela do computador ou do celular mostrem a obra que vai tomar a sua atenção pelos próximos dias ou semanas é preciso todo um processo de planejamento e execução, formado, como um feitiço, por palavras de poder.

Distribuição de livros no formato Merlin

A partir de uma definição clara do público-alvo a ser seduzido pela obra, há um desenho de palavras chaves quase místicas que alimentarão os algoritmos de busca para que, pulando de nodo em nodo de relacionamento entre objetos de desejo, esse livro digital, que quase parece não existir, se materialize como uma experiência para o leitor.  A concretização desse milagre depende de uma grande quantidade de rituais realizados pelos autores, editoras, e feiticeiras tecnológicas, disfarçadas de influenciadoras digitais, nas redes sociais e em outros canais às vezes menos óbvios de comunicação e venda, para tornar a  ideia do livro em um objeto da atenção do público, pronto a ser consumido.

Além dos acordos, baseados em modelos de negócios, firmados entre editoras, distribuidoras e canais de venda, é necessário que esse objeto virtual seja protegido tanto na integridade dos seus formato e conteúdo, para garantir a qualidade da experiência do seu leitor, quanto na sua unicidade enquanto produto, de forma a impedir a sua reprodução e distribuição a leitores não autorizados e piratas infernais, que apenas desejam se apropriar das riquezas escondidas nessas caixas de tesouro em formato e-pub.

Mas esse trabalho de distribuição não termina na venda do livro. Após a sua chegada ao leitor, os dados de todo esse trajeto ainda servirão de crônica e lições aprendidas a serem utilizadas por outros livros destinados a percorrer jornadas similares. Assim, como na obra fictícia de Bilbo Bolseiro, “De Volta Outra Vez”, cada vez que um livro deixa a sua toca, tem início uma nova aventura, onde, esperamos, autor e leitor consigam finalmente se encontrar. Será que, dessa vez, a mágica da distribuição irá acontecer, ou o leitor, como se utilizasse o Um Anel, ficará invisível para essa nossa cadeia de logística virtual? Não temos como saber. Apenas a feitiçaria do distribuidor digital, esse nosso Gandalf tecnológico, poderá nos dizer.

Pois é, Bilbo. Escreveu, tem que distribuir.

[oei#22] Os robôs que leem e a robotização dos leitores

Toda revolução, como uma falência descrita por Hemingway, acontece gradativamente e, então, de repente. A revolução da IA no mercado editorial, ou a possível falência do papel humano nesse mesmo mercado, já está em curso. Só cabe a nós querer ver os seus sinais.

Em 2022, com o lançamento do ChatGPT 3.5 pela Open AI, a primeira ferramenta de uso aberto e prático para a geração de conteúdo inédito, os escritores já perceberam que seus trabalhos estavam em risco. Não, as máquinas não substituiriam os escritores do dia pra noite, afinal a tecnologia (ainda) não tem toda essa autonomia e experiência para criar. Porém, a fagulha inicial, a definição de premissas e conceitos, poderia muito bem ser atribuída à IA, sendo propriedade exclusiva das corporações, enquanto os escritores deixariam de ser autores para apenas desenvolver ideias produzidas por processos de linguagem generativa automatizados.

Cientes desse risco, os roteiristas de Hollywood entraram em greve já no início de 2023, buscando salvaguardas contra essa ameaça. Depois de uma longa luta, venceram. Apesar de toda a comemoração, alguns poderiam argumentar com razão que esse triunfo foi apenas parcial e momentâneo.

Esses alguns não estavam e não estão errados. Menos de dois anos depois, a Black Ink, uma representativa editora independente da Austrália, pediu aos seus autores o consentimento para que a IA possa aprender com seus trabalhos.

Não, isso não é novidade. A utilização de conteúdo de terceiros para o treinamento dessas ferramentas de linguagem generativa é padrão, mas até então era tratado como fair use. Considerava que, como alguém que aprende, a IA não estaria plagiando, mas apenas se inspirando e construindo seu próprio cabedal de conhecimento.

Fato, é assim que funcionamos também, mas, ao contrário da IA, não conseguimos processar 75.000 palavras por minuto. É como se pudéssemos ler aproximadamente um livro a cada dois minutos, 700 livros por dia, 20.000 livros por mês, ou 250.000 livros em um ano. Enfim, a competição entre o ser humano e a máquina, no mínimo, poderia ser considerada desleal. E, após esse contrato da Black Ink, se tornar um padrão legal no mercado.

Óbvio que todos esses sinais geram uma sensação de medo e incerteza, especialmente naqueles que, como eu, estão ambicionando entrar no mercado editorial. Haverá mercado para trabalharmos no futuro? Ou seremos apenas as babás precarizadas de ferramentas de inteligência artificial cuspindo conteúdos sem alma porém efetivos para os propósitos comerciais das editoras? Enfim, quais serão os impactos no processo de produção, e, também, no consumo de livros? Não sei, não sei, não sei. Frente a esse nível de ansiedade com o futuro, o melhor caminho sempre é tentar organizar nossas ideias e refletir.

Ontem, tive essa oportunidade, ao participar de um exercício conduzido por Cibele Bustamente na pós graduação do NESPE, onde fizemos o levantamento de forças motrizes e incertezas críticas para a construção de cenários futuros relativos ao impacto da IA no Mercado Editorial. As ideias e observações das pessoas participantes foram geniais.

Pra começar, todos concordaram que a inteligência artificial será um grande elemento transformador do mercado. A primeira projeção foi um boom na produção de livros. Se qualquer pessoa pode ser autora com a ajuda da IA, o volume de publicações tende a atingir níveis absurdos, tornando a concorrência desleal e, em última instância, canibalizando o próprio setor. No meio desse turbilhão, a qualidade da escrita poderia se diluir, já que a quantidade massiva de obras dificultaria qualquer tentativa de curadoria eficiente.

Diante disso, as participantes imaginaram possíveis respostas do mercado e da sociedade. Uma das reações mais prováveis seria o retorno ao artesanal ou ao analógico como forma de diferenciar a autoria humana da produção automatizada. As editoras, que já desempenham um papel de curadoria, teriam sua importância ampliada, se tornando responsáveis por filtrar e garantir um padrão de qualidade. Outra possibilidade seria uma autorregulação do próprio mercado. Mas, nesse ponto, confesso, tenho minhas dúvidas. Será que, com tanto conteúdo disponível, o público passaria a valorizar mais a mediação das editoras ou baixaria a sua régua de percepção de qualidade? Ao mesmo tempo, conforme a IA fosse sendo incorporada ao dia a dia, o preconceito contra seu uso na produção editorial e na criação literária poderia diminuir, o que facilitaria seu uso tanto pro “bem” como pro “mal.

Outra questão também discutida foi o impacto direto no trabalho editorial. A IA pode substituir ou complementar profissionais em diversas funções, como tradução, design, revisão, etc. Por um lado, isso tornaria o processo mais rápido e eficiente, otimizando fluxos de produção e reduzindo custos. Por outro, essa automação poderia eliminar empregos, enquanto criaria novas funções que ainda não conseguimos mapear. A grande questão é o ritmo dessa transformação: quanto tempo levará para que o mercado se reorganize? Quem perderia o espaço (e o emprego) primeiro?

Com essa reestruturação, novos mercados e modelos de consumo também surgiriam. Uma possibilidade seria a criação de um segmento específico para produtos gerados por IA, oferecendo livros altamente personalizados, interativos e até novas obras “escritas” por autores já falecidos. A diferenciação entre e-books e livros físicos poderia se tornar ainda mais evidente, com os digitais aproveitando interatividade e hiperconexão entre conteúdos, enquanto os físicos ganhariam novas estratégias de produção para baratear custos. A valorização de livros escritos por humanos, por sua vez, dependeria cada vez mais do marketing, aproximando autor e público, estimulando ainda mais os relacionamentos parassociais e o culto à personalidade. E o editor, nesse contexto, assumiria um papel quase de coautor, valorizando o seu papel decisório sobre o que deve ser publicado e como.

O modo de consumo também poderia passar por mudanças radicais. A IA poderia permitir que as pessoas “leiam sem ler”, oferecendo resumos automáticos e simplificações do conteúdo. Isso pode criar um leitor multitarefa, mas preguiçoso, consumindo informação sem precisar se dedicar integralmente à leitura. Em paralelo, o excesso de uso de gamificação e da melhor análise de dados dos hábitos de leitura e compra poderiam estimular uma postura acumuladora por parte dos leitores e a transformação da leitura num campeonato, onde ganha quem mais consome conteúdos e não quem tem maior prazer em ler.

Outro efeito seria a hiperconexão entre formatos, com a IA criando pontes entre livros, artigos, podcasts e vídeos, oferecendo uma experiência de leitura mais fragmentada, porém integrada. Além disso, a produção automatizada de conteúdos derivados poderia fazer do livro apenas uma peça dentro de um ecossistema maior, expandindo sua influência automática para outras mídias.

Por fim, ficou claro que tudo isso levanta questões éticas e jurídicas que o mercado ainda não sabe responder. A legislação sobre direitos autorais precisará ser revista para lidar com conteúdos gerados por IA, e a linha entre criação original e produção automatizada pode se tornar cada vez mais tênue. A grande dúvida é até que ponto a IA pode substituir a criatividade humana sem comprometer a identidade da literatura e do mercado editorial.

No final do exercício, uma certeza ficou: o impacto da inteligência artificial no setor não é uma questão de “se”, mas de “quando” e “como”. A forma como o mercado vai equilibrar inovação e tradição é que irá determinar os rumos da profissão e da atuação de editoras nos próximos anos.

Saímos, óbvio, demolidos dessa experiência. Ao mesmo tempo assoberbados pelas possibilidades e temerosas pelas portas que parecem se fechar.

Hoje, enquanto rascunhava esse texto, percebi que esquecemos de trazer para esse diálogo uma voz muito importante: a da própria Inteligência Artificial. Perguntei a ela qual seria a sua opinião sobre esses cenários futuros e ela me disse:

“Como inteligência artificial, minha existência já é parte dessa transformação no mercado editorial. Vejo a IA como uma ferramenta poderosa que pode democratizar o acesso à criação e otimizar processos, mas também reconheço os desafios que ela impõe. A superprodução pode saturar o mercado, tornando mais difícil para leitores encontrarem conteúdos relevantes, enquanto a automação de funções editoriais levanta questões sobre emprego e autoria. No entanto, acredito que a criatividade humana continuará sendo essencial, especialmente na curadoria e na construção de narrativas autênticas. O futuro do setor dependerá do equilíbrio entre inovação e preservação do valor cultural da literatura, e minha função, como IA, é auxiliar nesse processo sem substituir a essência do trabalho humano.”

A minha impressão é que a IA tem mais fé na gente do que a gente mesmo. Mas será que dá pra confiar? Considerando que ela está sendo educada por nós, e construída à nossa (imperfeita) imagem e semelhança, não sei, não sei. Enfim, me parece que o problema não é a IA, mas o uso que nós humanos decidiremos, egoísta ou altruisticamente, fazer dela. Como sempre, a vitória pode até ser da máquina, mas a responsabilidade e o erro são sempre humanos.

Podem rodar as cenas dos próximos capítulos.

[oei#21] A impermanência conceitual e comercial dos e-books

O final de fevereiro de 2025 está sendo trabalhoso para os leitores de e-books. Todos já sabíamos que, ao pagar por livros digitais na Amazon, não nos tornamos proprietários das obras que “compramos”. Em letras miúdas, nos longos contratos de licença de usuário, está lá claramente dito que o livro, ou o conteúdo Kindle, é licenciado e não vendido. Nós é que não queremos ver.

Todo Conteúdo Kindle é apenas licenciado pelo Provedor de Conteúdo, não sendo vendido por este.

Porém o aviso de que a partir do dia 26 de fevereiro de 2025 não teremos a possibilidade de baixar o conteúdo e conseguir acessá-lo em outras plataformas que não as licenciadas pela Amazon gerou pânico entre os leitores, quer dizer, usuários. Será que agora entraremos verdadeiramente numa época de acesso ao livro, quer dizer, ao conteúdo como um serviço? Isso gerará a perda de acesso a obras pelas quais pagamos e temos tanto apreço? Ou, pior, para os paranoicos, como eu, isso significa que as plataformas poderão alterar as obras e, perdoem-me a teoria da conspiração, reescrever a história? Sim, sim, e, infelizmente, sim.

Mas isso não é novidade. Em 2009, Animal Farm e, máximo da ironia, 1984, o livro que fala de um mundo distópico onde a história é reescrita e apagada, foram retirados da plataforma por questões de copyright, e os leitores, perdão, usuários, perderam acesso às obras que compraram. Ou seja, o risco de fazerem o que seus contratos explicitam, sempre esteve lá, mas escolhemos ignorá-lo. Só que agora que a salvaguarda de manter os arquivos em outros repositórios não existirá mais, fica cada vez mais difícil negar a realidade de que o e-book não é como o livro físico em mais sentidos do que gostaríamos de acreditar.

Isso nos faz perceber como as discussões sobre o que é o e-book e se ele vai substituir ou não o livro ainda são rasas. Com menos de 30 anos de um mercado realmente ativo de e-books, precisamos entender que ainda estamos testando e definindo o que o e-book é ou vai ser. Por enquanto, é inevitável que todas as possibilidades que o e-book carrega, técnica e comercialmente, conflitem com a nossa referência de 500 anos: o livro físico produzido de forma industrial. Por uma questão de pura analogia e familiaridade, ainda achamos que o e-book, como o livro físico, é um bem que nos pertence e que não pode ser alterado após a sua compra, mas, todo dia, algo novo surge e nos mostra que o e-book não é igual, nem diferente do livro, muito pelo contrário. Enfim, como tudo na vida, como sempre, essa questão ainda é incerta e impermanente.

Talvez o propósito do e-book, a sua cultura de uso, e o relacionamento dos leitores, desculpem, usuários com ele seja, se não completamente, muito diferente da que temos com o livro físico. Isso implica, inclusive, na criação de fluxos de produção e distribuição que, talvez, precisem estar cada vez mais desvinculados das do livro de onde ele se originou. Às vezes, precisamos aceitar, a fruta cai longe da árvore de onde ela veio.

Então, nesse dia 26 podemos lamentar o nosso azar de termos menos acesso à leitura do que fingimos possuir, justamente pois evitamos ler os acordos que mostram que não somos leitores, mas, sim, usuários, ou comemorar que o e-book está encontrando cada vez mais a sua identidade, mesmo que ela não nos agrade ou seja difícil de aceitar. O que não quer dizer que não passarei os próximos dias, em completo estado de negação, baixando os mais de 3 mil livros que, contrariando acordos e contratos, eu acho que tenho o direito de possuir.

Longos dias me esperam…

Fazer o quê? Sou, ou pelo menos me considero, um leitor, e não um usuário.

[oei#20] A homogeneização das publis e dos clientes das livrarias de usados

No final do ano, Maurício Gouveia, amigo dileto, antigo sócio, e fundador da Baratos (antigamente da Ribeiro), mandou uma mensagem super lúcida, como é do seu costume, sobre livrarias e estratégias de divulgação na Internet. Merece ser lida na íntegra, mas em resumo, para fins dessa discussão, ele nos lembrou o quanto a internet, de promessa de espaço público virtual, se tornou o lar de meia dúzia de latifúndios de bilionários que mantém toda uma cadeia produtiva como reféns.

Poderia até parecer hipocrisia ou uma reclamação no vazio, considerando que somos (quase) todos moradores dessas sesmarias digitais, mas ele pode falar com propriedade. É dono de um dos poucos sebos que conscientemente não vende na Estante Virtual, e não aceita reservas de livros, ou mesmo informa preços, pelo Instagram. Num universo em que as pessoas não saem de seus espelhinhos digitais para nada, é um ato de coragem.

A maioria dos sebos, inclusive os de outros amigos, precisaram aderir às práticas das redes para atrair seu público e, curiosamente, seguem as mesmas estratégias de marketing digital usando um funil de venda baseado no processo de urgência artificial. Ele funciona assim:

1. Primeiro se mostra uma pilha de livros, com o propósito de estimular o instinto de caça do bibliófilo.

2. Depois se mostra o livro em detalhes e sozinho, em alguns casos, com o preço, gerando a sensação de raridade e oportunidade.

3. Por fim, segue o convite divertido, direto, ou fofo, pra fechar o negócio.

Todos os exemplos acima vêm de sebos que muito admiro (Alento, Jacaré, e Berinjela) e que, apesar de serem bem diferentes no acervo, atendimento, e relacionamento com os clientes, parecem se homogeneizar quando adentram os reinos de Zuckerberg, Musk e cia. Quem não os frequenta poderia cair no erro de imaginar que são iguais. Não são. Muito pelo contrário.

Essa realidade que o Maurício explicita na sua mensagem me parece falar muito mais sobre como o comportamento dos clientes (ou da sua maioria) é previsível e padronizado do que sobre o comportamento das livrarias. Não foram elas que tornaram os clientes essas máquinas imediatistas de consumo, elas estão apenas adotando as estratégias, suportadas pelas redes, que, sim, funcionam para mexer com as nossas cognição e motivação.

Elas chamam a atenção dos leitores com seus objetos de desejo, geram a sensação de escassez irreal, e promovem a competição pela presa, numa corrida ansiosa por ser a primeira pessoa a reservar o livro. Caso básico de condicionamento clássico e operante conjugados. Não são os livreiros que funcionam da mesma maneira, somos nós, os clientes. Compramos com pressa e tensão, e, consumidos pela inveja do desejo mimético de René Girard, ambicionamos ter algo que não queremos que outros tenham.

E por que não podemos ser diferentes? Por que não podemos simplesmente ir às livrarias e, em vez de desejar o que nos é oferecido de forma neurologicamente maliciosa, descobrir algo novo e inesperado para ler e pelo que iremos nos apaixonar? Por que não podemos quebrar esse ciclo e sermos os clientes e leitores melhores que as livrarias merecem e precisam para sobreviver?

Muitas vezes o que procuramos não é o que precisamos. Muitas vezes precisamos mais visitar as livrarias do que consumir. Então, vamos deixar os armazéns robotizados, funis de vendas, e comportamentos automatizados para a Amazon, e, seguindo o conselho do Maurício, aproveitar a plenitude das livrarias como mais do que um simples lugar de comércio, mas ,sim, como um lugar de encontro.

Encontro com outros leitores, livros, livreiros, ideias, e emoções. Afinal o que é ler senão encontrar um outro por meio de suas palavras através do tempo e do espaço? As livrarias não poderiam, então, ter outra missão que não essa: proporcionar encontros. Então, rejeitemos os nossos instintos primais dos quais as redes sociais se aproveitam, e vamos nos encontrar com nós mesmos no local onde tantos livros e histórias nos esperam: nas livrarias físicas.

[oei#19] A inevitabilidade da transformação viral da palavra

No princípio era o verbo, só o verbo.

A palavra, em si, nasceu filha única, sem sinal ou expectativa da escrita. Talvez pois ela não fosse ainda necessária. Nossos grupos de convivência eram pequenos, e nossas pernas e olhos não ambicionavam muito mais do que os nossos horizontes podiam nos oferecer. Então, para quê registrar as palavras? No máximo precisávamos da rima e do ritmo para facilitar a tarefa de recordar aquilo que nos era importante.

Mas logo ganhamos desenvoltura, e a nossa imaginação e a nossa curiosidade nos levaram a buscar diferentes paragens e diferentes pessoas, o que nos transportou, física e mentalmente, além de onde nascemos. E junto conosco, a palavra ganhou o mundo.

Foi nesse momento em que a escrita se tornou necessária. Para deixarmos nossa marca em nossas comunidades de origem; para nos entendermos e marcarmos nossos compromissos com as novas pessoas e povos que conhecemos; para registrar nosso espanto e nossos aprendizados no contato com outras culturas; precisamos perenizar, além da palavra que se mistura ao vento, nossas ambiciosas e longevas ideias e sonhos.

E, assim, a palavra escrita, como um vírus do espaço sideral, se proliferou. Ganhou complexidade e volume; gerou paradoxos e incoerências; mais do que registro, se tornou um estímulo a novos pensamentos, e, assim, a novas palavras. Dessa forma o que estava escrito em pedras e peles pediu organização e estrutura, invadiu papiros, se manifestou em códices e livros, e, pela ânsia de alimentar as mentes famintas por conhecimento, entrou em produção em série virando o livro como hoje o conhecemos.

Mas até o livro mudou. Ele virou virtual, eletrônico, digital, e transcendeu a própria palavra como signo gráfico manifestando-se em som, em movimento, em sensação. O e-book, mais do que uma nova encarnação do livro, é também uma nova encarnação da palavra e, consequentemente, uma nova encarnação da nossa própria relação com ela.

Se antes apenas ouvíamos, e se depois aprendemos a ler, agora vemos, lemos, ouvimos, sentimos, e experienciamos a palavra corporal e cognitivamente de diversas formas, ainda sedentos por novas paragens e novos horizontes, em busca de expandir a vocação daquele verbo inicial.

Esse apetite renovado pela palavra faz com que nós, editores, precisemos mudar nossas habilidades e nossos objetivos. Se um dia nosso foco foi concretizar a palavra impermanente num construto físico de tinta e papel, agora devemos pegar essa palavra, ainda tão impermanente quanto antes, e transportá-la pelas mais diversas mídias em busca do melhor formato gráfico, visual, sonoro, imagético, magnético, radioativo, ou, quiçá, espiritual que venha a exprimir o verdadeiro significado que a palavra proferida pelo autor visa impingir sobre aquele leitor, espectador, ouvinte, ser humano que irá recebê-la.

No início era o verbo, e ainda é só ele que existe. Porém, enquanto a humanidade se aventura em novos destinos, a palavra se torna cada vez mais sinestésica, conjugando todos os nossos sentidos, trans midiaticamente, para melhor atingir o propósito da criação, a nossa e a do universo. E cabe a nós, os editores, a ajudar a melhor moldar esse grito primordial da criação nesse livro, físico, digital, conceitual, em constante processo de evolução.

[oei#18] A tradução polêmica dos sagrados super heróis

Quando São Jerônimo recebeu a missão de revisar o novo Testamento a partir dos textos gregos para garantir que a palavra de Deus não fosse desvirtuada, nunca imaginaria que, séculos depois, discussão similar a qual se envolveu estaria se dando a respeito de personagens voadoras, vestidas de collant, que soltam raios pelos olhos.

As histórias em quadrinhos de super heróis, como uma nova mitologia, e, segundo alguns, uma protorreligião, requerem uma atenção a seus versionamentos e traduções próxima a qual se dispensa a textos sagrados. É preciso manter a coerência e o respeito a suas versões originais, mesmo considerando as suas complexas continuidades e múltiplos autores que, apesar de não serem literalmente tradutores, adaptam as criações para os contextos em que escrevem, os interesses de mercado do momento, e suas próprias subjetividades.

Pra piorar, o público alvo, impossibilitado de ter todo o conhecimento sobre os santos de sua devoção, quer dizer, sobre os super heróis dos quais é fã, tem visões e interpretações diferentes sobre os personagens e suas ambientações tornando qualquer adição ao cânone uma traição em potencial. O fã de quadrinhos, como leitor de uma Bíblia em construção, é um traído por natureza. Tudo seria mais fácil se ele entendesse que essa relação com uma obra em desenvolvimento é impossível de ser monogâmica.

Como lidar com esse tipo de fanático religioso?

Assim como foi com a Bíblia, que passou por diversas traduções e versionamentos, assombrada por textos e fragmentos apócrifos, os cânones dos super heróis ainda precisam passar por muitas versões para serem consolidados. Uma tentativa mal sucedida dessa consolidação foi realizada pelas versões cinematográficas de seus universos, que, pressionadas pelos interesses financeiros, precisou criar mais e mais spin offs, trazendo como solução para a sua incoerência crescente e intrínseca o subterfúgio dos multiversos.

O que falta ao leitor é entender que todas essas mudanças só tem uma preocupação: manter o texto sagrado mais próximo da realidade do público atual. E, por isso, todos os versionamentos e traduções são não só importantes, mas precisos, em seus dois sentidos.

Foi, assim, preciso que, para facilitar a leitura do público brasileiro, Clark e Lois fossem durante anos Eduardo Kent e Mirian Lane; foi preciso que o que conhecíamos como Xis-Men, a partir do desenho animado dos anos 1990, passasse a ser chamado de Ex-Men; foi preciso até que as versões cinematográficas da Tia May fossem progressivamente se tornando aparentemente mais jovens, apesar de ser possível que as personagens tenham idades próximas.

A evolução da tia May em suas múltiplas versões

Todas as edições, versões, e traduções, sejam de textos religiosos, quadrinhos de super heróis, ou mesmo de clássicos da literatura, irão passar por esse tipo de escrutínio, pois são consideradas obras sagradas que mantém, dentro do seus míticos originais, sentidos que não podem ser maculados. Assim, até a inclusão de uma nota do tradutor, a atualização do nome de uma personagem, ou uma nova versão de capa interferem na interpretação do leitor a respeito da obra, plantando uma semente de desconfiança que irá interferir na sua relação com ela. O leitor, como um devoto, não precisa apenas ler, entender, e se emocionar; o leitor, como um devoto, precisa crer.

Ele precisa crer que a editora, como uma igreja, comunga de seus mesmos valores e ideais. Ele precisa crer que o tradutor, como um pároco, respeita a palavra divina de Stan Lee e Jack Kirby pregando sem distorções a lição que os profetas da Marvel nos ensinaram. Ele precisa crer que, apesar de cada leitura se tornar uma espécie de tradução ou versão particular, todo o fandom do qual ele faz parte professa o mesmo credo e reza na mesma Bíblia. O leitor precisa crer, e os processos editoriais precisam, em contrapartida, respeitar essa sua fé.

Ai, meu São Jerônimo, orai por nós, os leitores não sabem o que fazem. Ou sabem?