Arquivo da categoria: O Editor Invisível

[oei#14] A leitura sem retorno do preparador de textos

Talvez nenhuma imagem represente melhor o trabalho editorial que a atividade, de preferência analógica, de preparação de textos. Uma imagem em preto e branco de uma pessoa com os punhos das camisas enrolados até os cotovelos, à sua frente pilhas de papéis rabiscados espalhadas sobre uma mesa, no seu rosto um olhar concentrado e um tanto quanto enlouquecido que prenuncia o nascimento de ideia que irá reformular o mundo.

Robert Gottlieb transformando mais um texto em uma obra prima

Um texto antes de se tornar um livro, passa por várias leituras: no recebimento de originais; na escolha do investimento do publisher na obra; na definição do projeto e de sua equipe pelo editor; mas é na mão do preparador que temos o point of no return em que o texto irá passar o limiar do manuscrito indecifrável e desconhecido para definitivamente se tornar um livro. É o trabalho transformador e aparentemente solitário do preparador que coaduna a vontade de poder do autor com a expectativa de receptividade do público para tornar esse encontro numa experiência, se não mítica, pelo menos memorável.

Gertrude Stein não precisava ser editora para transformar textos

O texto está conforme às expectativas do investimento e de imagem da marca da editora? O texto fala de forma, ao mesmo tempo, adequada e surpreendente com o seu público? De que alterações o texto precisa para atender as ambições do autor que o concebeu? As respostas a todas essas perguntas que o preparador se faz e faz ao autor por meio do seu texto irão definir o destino da obra e de como ela irá alcançar seus leitores.

Por ser o palco do encontro de tantas expectativas, o trabalho de preparação não é uma simples revisão ou leitura crítica, é um trabalho de relacionamento. É necessário, como uma casamenteira, se colocar em diversos papéis diferentes e mediar, através das sugestões sobre o texto, as conversas entre autor e editor, entre editor e público, e, finalmente, entre o objeto de todo processo editorial, a relação entre o autor e o público. Preparar textos é se mimetizar e se relacionar, tornando-se um com a editora, com o leitor, com o autor, e, nessa intersecção entre tantas identidades, encontrar o espaço e o texto exatos onde tudo se alinhará.

Max Perkins cuidando dos textos através da pescaria

A verdade é que toda leitura é uma preparação de texto, porém apenas o preparador de texto a faz no momento certo de sugerir as mudanças que de fato irão impactar na obra final. As demais, podem ser ricas e profícuas, mas não darão a quem as faz o papel secreto, cheio de responsabilidades, mas honroso de co-autor. Se o editor é invisível, o preparador o é em dobro. E é a sua invisibilidade que concede ao texto e ao autor a visibilidade que merecem. Há trabalho mais gratificante que esse?

Gottlieb editando os Muppets, porque sim.

[oei#13] Super Cortez contra o baixo astral do monopólio amazônico

Semana passada, a discussão que mobilizou os book tubers foi a aprovação da lei Cortez na Comissão de Educação do Senado. Por incrível que pareça, apesar de todos eles começarem seus discursos alertando o público para não acreditarem nos falsos “paladinos” que estão se propondo a salvar as livrarias pequenas contra o monopólio da Amazon, só ouvi comentários contrários à lei. Onde estão os tais defensores da lei de quem eles tanto falam?

Aparentemente não no You Tube, já que os próprios influenciadores do livro não teriam como se colocar contra quem é o maior financiador dos seus próprios negócios. Apesar desse óbvio conflito de interesses, não dá pra negar que eles tem razão em parte dos seus argumentos. O projeto de lei não é uma solução boa para o problema que ele se propõe a resolver, pois o paciente (a cadeia de valor do livro) pode estar doente demais para receber o tratamento, não ter uma estrutura sólida que consiga ser salva, e o suposto remédio vai gerar impactos que virão como um boleto cruel para o próprio público leitor pagar. Em suma, a lei tem tanto efeito colateral que pode até matar o paciente que diz querer curar.

Mas isso não quer dizer que o problema não exista. Sim, a Amazon tem o monopólio da venda de livros, aqui e em outros países, alcançado por práticas de dumping e pela excelente cadeia de distribuição com a qual consegue atender lugares onde não há (e não haverá) livrarias por muitos anos. Por isso, sim, é importante fazer algo a respeito, mas defender a lei como ela está é atender a uma bolha privilegiada que tem acesso a livrarias e dinheiro para comprar nelas.

Eu sou um desses privilegiados. Só no meu bairro temos 4 sebos e uma livraria. No quarteirões em volta do meu trabalho tenho acesso à quase 10 livrarias, tanto de novos, como de usados. Para mim não seria esforço aderir a lei, sendo que já faço conscientemente a escolha de comprar nesses espaços, em detrimento da Amazon, que só uso quando não encontro os livros nelas.

Porém, como dizem, a lei deveria ser para todos e, como a tendência dessa é prejudicar a maioria, em especial o público de baixa renda que gosta de ler, vive longe dos grandes centros, e não tem acesso a livrarias, ela não é uma boa lei. Ou seja, a lei Cortez não resolve o problema e ainda pode afastar leitores, gerar queda de renda para editoras, prejudicar seu fluxo de caixa, e promover a pirataria no caso dos livros digitais.

O que fazer? Não sei. Ações globais e “radicais” num país desigual e de proporções continentais nunca dão resultados bons ou duradouros apesar de serem bons alertas para problemas reais. Sei que pode parecer ingenuidade, mas ainda acho que as ações pequenas e localizadas, mesmo que de alcance menor e mais lentas, podem resolver melhor a questão a longo prazo.

Na minha opinião, o erro da lei é tentar competir com o monopólio no que ele é melhor: preço e distribuição. O que deveríamos, lei ou não, é nos esmerar no que as livrarias tem de melhor e de essencial: a construção da comunidade, algo que a Amazon, apesar de todo dinheiro gasto com book tubers, book tokers e avaliações, nunca conseguirá fazer.

As livrarias à minha volta fazem isso. Elas se aproximam dos seus leitores, com shows de samba e de rock, cursos de reparo de livros e filosofia, eventos de contação de histórias e debates com escritores locais. Afinal, o negócio da Amazon é vender (e entregar) o livro como commodity, enquanto a função da livraria é, ou, pelo menos, deveria ser, apoiar e fomentar a comunidade de leitores.

E o que você pode fazer a respeito? Quando chegar o dia 4 de novembro e seu dedo nervoso estiver ansioso pra consumir o que quer que seja que a Amazon esteja vendendo com descontos predatórios na Black Friday, vá às livrarias da sua cidade, às suas bibliotecas, e, se não houver nada disso, se reúna com seus amigos leitores, e celebrem o que nos une: o amor pela leitura. Afinal o que nos torna leitores não é comprar, é ler. Deixe o consumo desenfreado motivado por aparentes preços baixos para os acumuladores, nós merecemos mais.

[oei#12] A obviedade de se colocar uma letra após a outra

“Escrevemos uma palavra após a outra até terminarmos”Neil Gaiman

O pré-requisito, para se seguir a dica aparentemente óbvia de Neil Gaiman, é colocar uma letra depois da outra para se construir as palavras que virarão arte. E se estamos falando de texto, ele precisa estar representado graficamente. Essa representação visual das palavras e das letras que as compõem depende de algo que é ao mesmo essencial e (quase) invisível no texto, seja ele impresso ou digital, e para a qual deveríamos dar mais atenção: a sua tipografia.

Boa ou ruim, fácil ou difícil, simples ou complexa, a tipografia utilizada num texto e as combinações entre elas, quando consideramos os diversos elementos de um livro, são sempre uma escolha. Uma preocupação aparentemente óbvia é buscar a legibilidade, facilitando a identificação dos seus elementos, e a leiturabilidade, buscando o conforto na leitura. Porém a tipografia, mais do que simplesmente facilitar o contato com o significante visual que nos permitirá absorver os significados do texto, pode conceder mais significado ou profundidade a ele. A fonte, como intermediária na relação da leitura, tem o poder de ser o anfitrião, guia e orador do conhecimento e das experiências que o texto deve lhe trazer. Por exemplo…

Que fonte será uma melhor guia na nossa viagem ao País das Maravilhas?

As diferenças podem parecer pequenas mas, óbvio, fazem diferença

Que fonte será uma melhor professora para nos ensinar sobre as regras do baseball?

Clareza e objetividade para um esporte quase matemático

Que fonte (ou conjunto delas) nos permitirá entrar na mente de uma adolescente e experienciar seus conflitos e dúvidas?

A confusão pós adolescente de Cecília Madonna Young expressa tipograficamente

Que fonte nos levará ao futuro sem deixar de nos remeter ao som (e à música) que a violência podem suscitar?

papa oom mow mow, sacou?

As escolhas das fontes sempre parecem óbvias, depois de feitas, mas saber por que as escolhemos é um elemento importantíssimo para permitir que decidamos qual será o guia mais adequado para os nossos leitores. A tipografia, mais do que funcionalidade, tem, muitas vezes ocultas, mas óbvias ideologias. Não é óbvio?

[oei#11] A prejudicial mítica do livro à experiência do leitor

Como há a reunião que poderia ser um e-mail, há o livro que poderia ser um post num blog. E isso não é de forma alguma um julgamento (negativo) de valor. É apenas a constatação que certos conteúdos, temas, e estruturas seriam melhor trabalhados e teriam maior impacto, cognitivo, estético ou emocional, em formatos diferentes.

Porém não podemos escapar do fato que o formato do livro carrega um valor simbólico de status. Afinal quem escreve e nunca teve nada publicado, em formato físico, sem ser por auto publicação, até hoje sofre dificuldades de se justificar socialmente como autor. O livro é uma espécie de gate para definir quem tem o direito de se dizer (ou não) um escritor.

No início dos anos 2000, numa mesa da Paralelos numa Primavera dos Livros, alguém falou que a Internet era uma espécie purgatório para os escritores. Por melhores e mais adequados ao modelo digital que seus textos fossem, eles nunca teriam o devido valor aos olhos dos “formadores de opinião” se não quebrassem a barreira do livro. Foi assim que muitos blogueiros brilhantes se tornaram autores medíocres. No entanto, inquestionavelmente autores.

Às vezes até uma palestra mais ou menos sobre a ressignificação do “porquê” gera dois livros…

Por essas e outras é que excelentes palestras, em especial as TED Talks, que brilham em formato de performance, obrigatoriamente se tornam livros de 200 páginas ou mais, na sua maioria chatos, que nada agregam ao conteúdo e, algumas vezes, nos fazem até odiar os palestrantes. Eles poderiam se negar a publicar? Claro, porém, para ganhar a tal da respeitabilidade que o papel do autor confere ao palestrante, o livro inspirado na palestra precisa, para o mal de todos, existir.

 

E com isso todos perdem. Os autores que veem suas criações circularem em formatos subótimos, os leitores que não podem aproveitar as obras nos formato onde receberiam maior impacto, e até o mercado que, apesar de ganhos imediatos mas curtos, perde a oportunidade de criar novas formas de atuação.

Essa semana, esbarrei com um desses casos.

 

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A livraria Janela em parceira com a editora Mapa.Lab tem publicado nos últimos tempos uma série de plaquetes bem interessantes. Dentre elas, uma, #TBT de Bianca Ramoneda, me chamou particularmente a atenção. É uma série de textos curtos de prosa poética fazendo uma jornada memorial a partir de uma reflexão sobre as fotos de família da autora. O livro é bem interessante, mas a todo momento a impressão é que o formato não é o mais adequado. Como o próprio título sugere, os textos tem o gosto de legendas de fotos de Instagram. Por que não lançar os textos nesse formato se com certeza eles ganhariam mais impacto?

Há várias dificuldades para isso: os modelos de negócios engessados, os canais usuais para chamar a atenção para a publicação, e o próprio público que não conseguiria, por questão de costume, entender a singularidade da obra num formato não tradicional. Mas, confesso, adoraria que a autora, que trabalhou tão bem com a transição dos formatos de poesia, prosa e teatro nos anos 90, colocasse o texto numa série de postagens no Instagram com as fotos que o inspiraram.

Sim, a ubiquidade do livro enquanto o formato pode trazer várias facilidades para a disseminação do texto, mas também carrega um legado nem sempre positivo quando esse texto precisa de um formato pouco usual para atingir todo o seu potencial.  Mas ainda há uma esperança para os novos formatos, o único problema é que ela precisa de tempo e paciência para florescer. É só lembrar o quanto de tempo que levou para a obra do Profeta Gentileza ser valorizada como mais que pichações esquisitas de um pregador excêntrico na zona portuária. Só a gentileza com os novos formatos irá gerar a gentileza do leitor. Mesmo no viaduto do gasômetro.

Quem pode dizer que não é literatura?

[oei#10] Um elogio à rabugice dos livreiros ficcionais e reais

Não sei se é de propósito, mas, em todas as obras cujo cenário principal é uma livraria ou um comércio de produtos culturais, as protagonistas invariavelmente são pessoas intratáveis e “fracassadas”. Não estou exagerando. Desde os moderninhos de Alta Fidelidade e Black Books, passando pelos inofensivos livreiros de Notting Hill e Mensagem para você, até o soporífero A. J. Fikry do livro e do filme de mesmo nome, todos são pessoas com vidas interiores razoavelmente ricas e de grande erudição, mas que estão passando por processos complexos de falência econômica e psicológica, enquanto se exasperam com a população ignara e o estado atual da cultura. Olhando dessa maneira, parece até não haver histórias de sucesso envolvendo livrarias, seus funcionários, e proprietários.

Tá bom, até na vida real essas histórias são raras, mas não é um pouco cruel só guardar esse tipo de propaganda do sucesso para cadeias de fast food, corretoras de ações, e vendas por telemarketing? Parece até que o fracasso, com brio e ética- sim, eu percebi esse detalhe paternalista que eles utilizam- é o único destino reservado aos livreiros ficcionais.

Sim, o problema não é sermos nichados, os clientes é que são ruins

Como já fui, quer dizer, sou livreiro- afinal livreiro, como fumante, a gente nunca deixa de ser, só fica na reserva- eu me pergunto o quanto a representação dessa classe profissional é acurada, ou se essa é só uma maneira velada da mídia expressar um julgamento de valor sobre o mercado cultural de varejo, ou, quem sabe, talvez, os dois. Pensando bem, infelizmente vou ser obrigado a dar o braço a torcer, os autores não estão tão errados de nos retratar dessa maneira. Esse é um daqueles casos em que a ficção quase acerta na mosca.

Eu, e os muitos livreiros que conheci somos bem parecidos com isso o que a ficção mostra: um povo sem grana e, tá, um pouco pedante. Pra não ficar ruim pra gente, vamos reformular: pessoas que não se alinham com os critérios de sucesso da sociedade capitalista, e têm opiniões radicais sobre assuntos herméticos, embasadas em fontes inacessíveis à população em geral. Somos, em resumo, depressivos e irritadiços; o que, no início do século XX ,os tratados psiquiátricos chamavam de neurastênicos, ou que, no linguajar corrente, a gente poderia chamar de chatos.

Sim, somos esnobes

Mas, deixe-me fazer aqui uma defesa da nossa classe: como poderíamos ser diferentes?

Somos, em geral, gente cheia de conhecimentos pouco úteis para a vida comum, e que, por isso mesmo, entendemos a farsa que vivemos em sociedade. Por pura proteção, nos escondemos do mundo em templos devotados não ao comércio, mas, sim, à reflexão e ao pensamento. É nesses espaços seguros, como salas do tesouro, que esperamos aqueles que vivem na roda viva do mundo real para lhes iluminar um pouco com a nossa sabedoria não acadêmica e não convencional, ou, quando eles não tem senso estético ou inteligência, discretamente mostrar-lhes o caminho da rua.

Sim, temos opiniões sobre seus gostos

Assim, na ficção e no mundo real, nos cabe o papel de ser os guardiões rabugentos do paraíso que irão questionar seus gostos e expor suas ignorâncias. Dentro do campo editorial, os livreiros são, por assim dizer, os únicos dotados do poder e da maldição de só dizer a verdade.

Talvez, por isso, quando as mega stores começaram a dominar o espaço das livrarias, se fez a escolha de precarizar esse trabalho. Ao invés de termos gente inteligente para conversar sobre o que realmente você deveria estar lendo, decidiram colocar uma força de trabalho robotizada, focada apenas em identificar se e onde o livro se encontrava na loja, e, em caso contrário, fazer a sua encomenda. Agora que o comércio é basicamente eletrônico, o livreiro virou uma figura quase mitológica, extinta, substituída de forma acintosa por sites de recomendação e booktubers que fazem publi de qualquer coisa, sem ao menos saber os títulos das obras que representam.

Sim, a sorte é que somos pacíficos

Mas nem tudo está perdido, há uma resistência. Especialmente nos sebos, ainda encontramos livreiros de verdade por aí, emitindo suas opiniões, fazendo troça dos nossos gostos, e nos ensinando a sermos melhores leitores. Por isso, nós, os livreiros, reais ou ficcionais, atuantes ou da reserva, nos reservamos o direito de sermos chatos, detalhistas, arrogantes, e rabugentos. Fazemos isso não por nós, mas porque os leitores precisam. Fazemos isso para que vocês tenham ainda mais prazer e deslumbramento em ler.

Mesmo com todos os nossos conhecidos e famosos defeitos, só me resta desejar longa vida a nós, livreiros insuportáveis e a nossas livrarias maravilhosas. E se você não gostar da gente, sem stress; há muita gente online e offline pronta a lhe atender nesse mundo mercenário, insípido, e obtuso em que você decidiu morar.

Sim, um dia a Internet vai rejeitar você também

[oei#09] Os (des)enobrecimentos gráficos que tornam o livro (m)eu

Na minha infância, quando pintava uma grana extra em casa, comprávamos livros. Enciclopédias, coleções, livros grandes em capa dura com letras douradas e fitilhos. A coisa era tão séria que, mesmo não sendo religiosos, tínhamos uma enorme bíblia, de capa dura imitando couro, com douração trilateral, sobre um suporte de leitura no meio da sala. Minha mãe, ateia convicta, se explicava:

– É pelas ilustrações do Doré.

Não era exatamente essa, mas dá pra ter uma ideia de como era preciso concordar com ela.

E fazia suas críticas:

– Se bem que eu ficaria feliz em tirar aquela foto desse reaça do João Paulo II da introdução.

Vai entender…

Graças ao Círculo do Livro, e suas edições “especiais”, cresci acostumado com as ditas encadernações de luxo. Enquanto o povo era obrigado a viver com livros em brochura, de bolso, sem orelhas e colados, eu ganhava de aniversário coleções em capa dura, costuradas, e envernizadas de Monteiro Lobato e Sherlock Holmes.

O detalhe do Saci fazia toda a diferença, mas, confesso, a edição grampeada da Brasiliense fazia mais a minha cabeça

Eram bonitos de se ver, mas, confesso, muitas vezes abria mão de ler o Shakespeare na edição de obras completas em papel Bíblia que tínhamos em casa para enfiar no bolso de trás da calça, uma edição fininha, de capa vermelha, quase se desfazendo da Ediouro.

– É por comodidade- eu mentia.

Era por amor.

Quantas noites passamos sonhando juntos…

Aquela pequena edição de Sonhos de uma Noite de Verão me acompanhava nos pontos de ônibus, nas esperas nos Fast Foods, e era “vagabunda” o suficiente para ser anotada à exaustão. Como dizia o Stanislaw Ponte Preta, era “vaca, porém honesta”.

Cercado por edições raras e caras, sendo vigiado super egoicamente pelo Freud gravado em ouro e fogo na capa preta da sua coleção da Imago, eu construí, quase em segredo, uma coleção de pequenos livros, muitos de bolso, resgatados em sebos, feiras do livro, e saldos, que representava a minha forma de amar os livros: sem pompa, sem circunstância, mas com muito fervor.

Aqui estou, mais um dia, sob o olhar psicanalítico do vigia

Por isso, quando tocava a capa fosca e rugosa dos meus pockets de ficção científica da DelRey e cheirava seu miolo quase florestal, o texto adquiria um gosto diferente daquele que as edições sérias e sem vincos de manuseio da Hemus me proporcionava. O texto podia ser quase o mesmo, mas o livro e a experiência eram outras. Por consequência, eu também era diferente quando as lia.

Hoje, depois de muito penar pela fantasia das edições de luxo, eu sei, o livro nobre não é o que passou por acabamentos mais caros, mas o que foi cuidadosamente pensado para ser não mais meu, mas mais eu.