Quando fiquei sabendo do atentado à Charlie Hebdo, estranhamente me lembrei de um episódio que me aconteceu há uns dois anos.
O andar onde eu trabalhava em Belo Horizonte ia ser reformado. Fomos forçados a nos abrigar temporariamente num outro andar da empresa e a encaixotar tudo que não fosse de uso diário. Um trabalho chato e cansativo.
No processo de encaixotamento já vislumbrávamos que havia muita coisa a ser jogada fora. Em nome da presteza, o momento 5 S foi deixado para depois. Findas duas semanas de dividir mesas e estações de trabalho com pessoas que não queriam e nem tinham a menor obrigação de realmente nos receber, nosso andar ficou pronto e a mudança de volta foi feita.
Descemos nós, nossos computadores, alguns itens de uso diário e as caixas. Muitas caixas. Além de abrí-las e guardar seus conteúdos nos seus novos esconderijos, precisávamos separar o que seria jogado fora e o que seria doado. Nesse processo uma das maiores atribulações era o que fazer com materiais sigilosos que estavam encadernados com espiral. Eu, infelizmente, rapidamente peguei a manha e separava espirais e papéis com facilidade para que o conteúdo realmente delicado pudesse ser triturado. As espirais, sem uso, eram jogadas numa caixa de papelão para depois se avaliar a possibilidade de reciclagem. Não preciso dizer que o trabalho ficou todo pra mim.
Depois de uma tarde inteira de rasgação de papel e retirada de espirais, sentei na minha estação de trabalho e tive uma epifania. Aquela cena, espirais emboladas numa caixa de papelão, daria uma bela escultura.
Depois de um estudo conceitual, peguei uma das caixas que estava em melhor estado, e, com a ajuda de um estilete, abri na sua lateral uma boca e dois olhos. Deles, como cobras, as espirais saíam criando ligações inexistentes entre o falar e o olhar. Para completar a escultura, diversas bolhas de plástico foram inseridas entre as espirais criando o contraste entre a delicadeza do plástico e do ar e a perigosa ameaça do metal. Nada mal para um fim de expediente no escritório.
Coloquei a escultura em cima de um armário e a esqueci.
Nas semanas seguintes comecei a perceber que as pessoas paravam em frente à minha estação de trabalho e, após conversar um pouco, ficavam olhando de rabo de olho para a escultura. A princípio nada falavam, mas, depois de um tempo, impactadas pela poderosa falta de propósito da arte, o povo não se continha:
– Posso te fazer uma pergunta?
– Claro- eu respondia.
– O que quer dizer isso aí?
Eu olhava para a escultura fazendo uma cara de contemplação, coçava o queixo e provocava:
– Não sei. O que você acha que quer dizer?
A primeira reação de todos era dizer que não sabiam, que eu devia responder pois era eu o responsável por aquilo. Achavam que eu devia saber. Mas eu não sabia. Então, para facilitar a sua vida, e a minha, eu reformulava a pergunta:
– OK, mas o que ela te faz sentir?
As respostas eram as mais variadas. E interessantes. As pessoas usavam aquele momento para questionarem não só seu ambiente, mas a si mesmas. Algumas pessoas passaram a visitar a escultura e utilizá-la como um pretexto para falar o que pensavam do trabalho e o que sentiam mas não tinham espaço para dizer.
Numa segunda feira, cheguei ao trabalho e encontrei um post it colado na escultura onde se lia “quem sou eu?”. Alguns dias depois surgiu um outro, com outra caligrafia, dizendo “quem é você?”. A obra, que tinha nascido comigo, se tornara uma criação coletiva. Colocamos mais balões. Pintamos os lados da caixa. Rearrumamos seus arames. Um dia, mostrando que o processo estava chegando ao seu ápice, apareceu uma coroa de papelão na “cabeça” da escultura e um post it desafiando: “Que rei sou eu?”.
Ela recebeu diversos nomes, mas nenhum oficial. Como uma boa obra de arte, ela se tornou parte do seu ambiente e mais um integrante da comunidade. Ela cumpria um grande papel de liberar todo aquele povo oprimido do escritório e dar-lhes uma breve mas intensa sensação de liberdade. Se não podíamos nos rebelar contra o modelo corporativo-capitalista, ela fazia isso por nós, silenciosa mas explicitamente. Eu devia saber que isso não ia dar certo.
Um dia, o diretor mor da área passou na frente da minha estação de trabalho. Ele passou direto, mas, tendo percebido algo estranho em cima do armário, voltou. Parou em frente à escultura, deixou seus papéis sobre a minha mesa, olhou com atenção para ela por alguns momentos, coçou o queixo, se virou pra mim e perguntou:
– O que é isso?
– É uma obra de arte coletiva que estamos fazendo. Daqui a pouco tá pronta pra mandar pro Inhotim- esclareci.
Ele riu e completou:
– Se rolar dinheiro, separa um pouco pra mim.
Para mim, essa tinha sido a maior vitória. O representante do poder estabelecido tinha não só aceito a crítica que a escultura poderia estar fazendo, mas a ratificou com sua galhofa. Infelizmente nem todo mundo pensava assim.
Na manhã do dia seguinte, cheguei ao trabalho e a escultura tinha sumido. Muito burburinho. O que aconteceu? Será que o diretor mandou jogar fora? Será que foi pro lixo por engano? Pra onde ela foi? O nível de ansiedade gerado pelo seu desaparecimento foi tal que uma das colegas que trabalhava na minha gerência perguntou alto:
– Alguém sabe o que aconteceu com a nossa escultura?
A princípio, o silêncio. Olhamos para as outras baias, em busca de um olhar de culpa. Não encontramos. Apenas olhares curiosos e igualmente preocupados com o sumiço daquele colega de papelão.
– EU JOGUEI FORA- meu gerente de então respondeu levantando a cabeça do seu laptop. Para piorar, completou- Não agregava valor.
Por mais besta que seja, fiquei abalado. Eu tinha sido censurado, para dizer o mínimo. Não, eu não tinha sido censurado. Nós tínhamos sido censurados. A escultura não era só uma declaração de um indivíduo ou de um grupo, mas uma ferramenta que nos ligava e nos qualificava como membros da raça humana. Censurá-la era negar a nossa humanidade. Ela era uma de nós ao mesmo tempo que era todos nós. Ela nos dava a qualidade de sermos diferentes. De quem? Daqueles que a destruíram.
Após a raiva inicial, entendi o que se deu. O tal gerente ficou incomodado pois não estava preparado para se sentir questionado. A sua “certeza” sobre si e sobre o mundo não podia ser abalada. Ele, exatamente como agiram os terroristas em Charlie, exercia o medo sobre os outros porque não conseguia conviver com o enorme medo que ele mesmo sentia. A escultura todo dia perguntava a ele “Quem é você?”; fazia ele se perguntar “Quem sou eu?”; e finalmente questionava a sua realidade e a “realeza” da sua identidade com a questão final “Que rei sou eu?”. Em momento algum ela dava respostas. Nem as que ele podia concordar com, nem aquelas que podia ignorar por serem diferente das dele. Ela o questionava. Sem perdão ou pudor. E não há maior crime do que esse.
Quando penso no que aconteceu com o pessoal da Charlie Hebdo, penso nisso. Guardadas as devidas proporções, é óbvio, eles também foram vítimas de censura. Uma censura mortal. Uma censura nascida de um medo tão grande de ser questionado que só podia ser completa com a morte do outro que lhe fazia se questionar.
O que fica claro pra mim frente a esses eventos é que estamos vivendo num mundo tão cheio de respostas fáceis e falhas que qualquer pergunta se torna uma afronta fatal. A humanidade simplesmente não se mostra pronta para conviver com a ambiguidade da sua própria identidade. Não conseguimos aceitar a pergunta “Quem sou eu?” e sorrir por não ter como responder. E assim, desprovidos de autocrítica, não aceitamos quem nos faz pensar. E quando forçados a isso, os censuramos. E, se não conseguimos censurá-los, tiramos seus bens, seus empregos, jogamos seu nome na lama, os ameaçamos, os processamos, e, se nada funcionar, os matamos.
E quando falo isso, não me refiro apenas aos grupos extremistas cristãos, aos terroristas e demais radicais ortodoxos. Falo de mim, de você e de todos nós que agimos com tanto afinco e presteza quando procuramos nos proteger daquilo que ameaça a idéia que temos de nós mesmos. Como seria bom se tivéssemos tanta habilidade para ouvir uns aos outros sem julgamento ou defesa.
É por isso que a liberdade de expressão é um direito tão fundamental que tantas vezes se confunde com o próprio direito à vida. Contudo, é importante lembrar, a liberdade de expressão não é simplesmente deixar o outro falar o que quiser e fazer ouvidos de mercador. Ignorar o que o outro fala não é liberdade de expressão. Liberdade de expressão é um acordo entre emissor e receptor. É estar livre para ouvir o que o outro tem a dizer e mudar de opinião. Ou não. É estabelecer relações com os outros membros da raça humana e se unir a eles ou decidir se diferenciar. Sem stress. É saber que nada é real, que tudo é construído e, quando não concordarmos com outros, podemos seguir o conselho sábio do Dude e dizer:
Essa foi a minha opinião. E você? Qual é a sua?