Ficção

Desfiando

Quando ele morreu, não foi surpresa. Não era velho, nem doente, mas todo mundo via que ele não se cuidava. Como pra todo mundo, era só uma questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde ia/vai acontecer; calhou de ser mais cedo. Fazer o quê?

Por essas e outras não foi uma tragédia muito grande. A família foi amparada por conta de seguros e reservas financeiras; os amigos tinham histórias boas o suficiente para exercitarem uma memória positiva da breve sua existência; e, no trabalho, como dizem no mundo corporativo, ninguém é insubstituível.

Porém, quando ele se foi, um pequeno nodo de uma grande rede começou a se desfazer. Sem as conversas sobre as agruras da vida que tinha na banca de jornal, o fardo do jornaleiro ficou pesado demais, ele voltou a beber e morreu num acidente de carro onde atropelou três crianças; a dona do botequim, parece até piada, tomou um baque muito grande nas finanças quando perdeu seu melhor cliente, e o espaço tradicional fechou para deixar no lugar uma, cruz credo, hamburgueria gourmet; e o filho meio maluquinho do vizinho de baixo perdeu o seu amigo de trocar revistas em quadrinhos e, ao invés de se tornar um artista, foi estudar economia como seu pai.

Como eu disse, não foi uma tragédia muito grande, mas foi maior do que aparentou. E, como sempre, o mercado corporativo mais uma vez errou: todos são insubstituíveis.

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