Ensaios

Muito prazer, autossabotador

Tudo começa com a inveja e um pouco de ciúme. A primeira vez que senti isso foi num concurso de escrita na primeira série. O meu colégio todo ano organizava uma coletânea de textos dos alunos da primeira a quarta séries, uma história era escolhida em cada turma e pra cada história tínhamos 3 ou 4 ilustrações. Na primeira vez que participei, tinha certeza que minha história ia ganhar. Não ganhou.

Fui rapidamente da sensação de ciúme, perder o que achava que era meu, à inveja, o desejo de ter o que é o do outro. Foi horrível. O que me confortou foi que ainda tinha chance de participar com a ilustração. Me esmerei, mas também não rolou. A sensação se repetiu e a frustração foi duplicada. Foi assim que, para proteger o meu ego, inconscientemente, entrei num processo compulsivo de planejar e antecipar a minha queda.

Mas o hábito não se firmou de imediato. Eu continuei tentando, ou quase. Me inscrevia, participava das coisas, me entregava, e sofria quando não recebia os louros que achava serem meus. Pra me proteger, minha solução foi fingir pouco caso. Vivia na negação da raposa das “uvas estão verdes”. Eventualmente, era recompensado e ganhava. Inclusive no concurso que desencadeou o processo, lá pela 3a. série, uma das minhas ilustrações foi escolhida. Mas não pude curtir. Infelizmente, para manter a pose quando perdesse da próxima vez, o que eu “sabia” que aconteceria, precisava desmerecer o que eu atingi. Os prêmios eram bestas e os concursos pouco desafiadores, eu mentia pra mim e para os outros. Qualquer um podia ganhar. Qualquer um. Até eu. Um outro qualquer.

Então entre a tentativa de evitar a frustração, não me expondo, e a negação do reconhecimento que eventualmente recebia, comecei a ter uma postura perversa com a arte. Amando em segredo o que fazia, sangrando para produzir, sofrendo quando não era reconhecido, desprezando quando o era, mas fingindo pra todo mundo que não era nada demais. E assim todas as minhas conquistas foram maculadas por esse ar blasé que eu precisava manter. Todas.

Aos onze anos, o meu personagem foi o escolhido para estrelar os desenhos animados que finalizaram o curso de Cartum da Calouste Gulbenkian, mas eu não fui ao lançamento pois estava “cansado do colégio”. Mais de dez anos depois reencontrei meu professor, o mestre Lapi, e ele, que ainda lembrava de mim, me colocou como assistente de produção num documentário sobre o Pinel. Foi um trabalho incrível mas, sei lá por que, pedi para ser retirado dos créditos.

Na adolescência, óbvio, me encontrei nos fanzines. Produzia sozinho e fazia tiragens ridículas para não ser encontrado. As poucas pessoas que liam curtiam e queriam participar. Era a minha deixa para criar problemas com todo mundo e sair “por cima” por não ter comprometido a minha “integridade artística”. Uma vez tive a audácia de mandar um fanzine para avaliação do MAU, o fanzine da revista Animal, e recebi vários elogios, mas como havia pedido, eles não divulgaram meu endereço para contato. Como um bandido na lista dos 10 mais, queria ser reconhecido, mas não encontrado.

Cresci e continuei com o mesmo comportamento. Fiz corpo mole e não fiz a prova pra faculdade de cinema. Fiquei na psicologia pois achei que me frustraria menos. Na mesma época, escrevi uma crítica de cinema pro JB, e tinha um livro de poesias pronto que submeti à editora 7 letras. Eles queriam editar desde que eu pagasse uma parte da tiragem, mas eu me convenci que era golpe e nem respondi. Hoje não tenho nem uma cópia desse livro.

Continuei escrevendo, participando de concursos e tentando me editar. Sempre com um pé atrás e sem acreditar nas benesses que me eram oferecidas. Ia pra saraus de poesia, declamava com desdém e menosprezava os que me elogiavam. Cheguei ao ponto de jogar fora uma caixa com mais de mil poemas e umas três dúzias de contos após uma briga com uma namorada. Quando lembrava dessa autosabotagem, tentava me justificar com a história da vez que o Hemingway perdeu toda a sua produção na sua bagagem; o que não tem nada a ver, afinal ele não jogou fora o que produziu em quase 10 anos por puro medo.

Na transição pro digital o comportamento continuou. Comecei a publicar meus textos num blog e em seis meses estava no Blogs of Note. Fechei o blog, sob a alegação que não merecia ter mais do que sete leitores,  e o reabri em outro lugar. Participei de alguns projetos literários e sites mas nunca mantinha um compromisso maior do que 6 meses. Quando as coisas começavam a engregar, muitas vezes sem explicação, eu sumia.

Assim fui me escondendo e me escondendo cada vez mais, sempre me comprometendo pela metade com o que eu dizia desejar e negando o que a vida às vezes tentava me entregar.

Às vezes, ainda reajo assim,mas estou em recuperação. Se alguém me elogia, imediatamente tento entender quais são os seus motivos escusos para isso. “Óbvio que não é sincero”. Não quero encarar a queda novamente. Uma queda que, sinceramente, nunca sofri, mas que transformei num trauma pois a minha história, escrita aos 6 anos, sobre uma invasão dos povos perdidos de Atlântida repelida por um grupo de jovens num cruzeiro perdeu para a história de uma minhoca que fazia os buracos em queijos suíços num concurso literário de colégio. Hoje sei que a história da minhoca realmente era melhor e que não devia me martirizar tanto assim, mas a cabeça não manda no coração.

Nesse processo de recuperação, procurei amigos e conhecidos que pareciam bem resolvidos com essa questão e todos me confidenciaram que, em maior ou menor grau, vivem com a mesma angústia. É bom não estar sozinho. Sim, gostaria de me jogar sem medo de rejeição e poder aproveitar as coisas boas que a vida vier a me oferecer, mas para isso preciso aprender a ter compaixão comigo mesmo e entender que a fraqueza não é precisar combater mas, sim, fugir da luta.

O pulo do gato talvez seja agradecer mais, olhar os obstáculos como fins em si mesmo, e ter a certeza que a história não termina mesmo quando acaba. Sim, estou melhor mas não cheguei no ideal. Ninguém chega. Mas continuamos na luta. Obrigado por me ler e fazer parte desse processo.

#happythankyoumoreplease

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