Era batata. Sempre entre a quinta e a sexta cerveja, o espírito liberal na economia e conservador nos costumes, que possuiu seu corpo depois de uma desilusão amorosa, tomava controle. E não importava o assunto; futebol, novela, política, desenhos animados, tudo era justificativa para ele começar a desfiar o seu rosário do mal.
– Tá vendo só?- ele apontava algo que o desagradava.- Tá na cara que (insira posição política, orientação sexual, opinião artística) é influência de (comunismo, marxismo cultural, ideologia de gênero, organizações Globo, vereador de esquerda do Rio de Janeiro, ). O mundo está perdido. Perdido!
Eu discordava totalmente das suas opiniões. Primeiro porque eram basicamente preconceituosas, racistas, homofóbicas e reacionárias; segundo, pois eram burras ou simplesmente não faziam sentido. No início, por boa vontade, eu até tentava trazê-lo à razão, mas era inútil:
– O teu problema é que você lê demais- ele se defendia.- Todos esses conhecimentos de esquerda acabam te deixando mole e hippongo. Empatia é o caralho! O mundo é uma guerra. Uma Guerra!
Eu tentava relevar. Achava que era uma fase. Depois que a dor de cotovelo passasse e ele arrumasse uma nova namorada, as coisas iam melhorar. O tempo passou, ele eventualmente arrumou uma namorada, mas a doideira permaneceu e ele acabou terminando o relacionamento por conta das suas próprias fantasias políticas.
– Vê só se eu ia aceitar aquilo- ele contava a sua versão da separação.- Ela (escolha: votava no PSOL, lia Martha Medeiros, assistia novela da Globo, curtia Pablo Vitar). Isso não é pra mim. Eu preciso de uma mulher cristã. Cristã.
Dizia o homem que quase foi reprovado no catecismo.
Com o passar do tempo, como era impossível conviver com ele e eu não sabia se devia dar fim a uma amizade de quase 40 anos, comecei a me afastar. Ele chamava pra tomar cerveja na sexta, eu inventava um compromisso; dizia que ia passar no meu trabalho para a gente voltar juntos, eu ficava no escritório fingindo fazer serão; ele aparecia na porta do meu prédio… bom, nesse caso não conseguia me safar e acabava sendo obrigado a ouvir mais uma vez a sua cantilena protofascista.
– Eles querem acabar com o Brasil- ele profetizava.- Querem acabar com a propriedade privada, com a religião, com a nação. Querem nos tornar comunistas. Comunistas!
Numa última tentativa, busquei entender melhor a sua visão de mundo:
– Mas o que você quer dizer com isso?
– Como assim?- ele se espantou de eu ter reagido.
– O que seria esse tal comunismo?
– Ah, deixa eu te explicar. Primeiro todo mundo vai ser igual. Se você é mais competente que os outros, vai receber a mesma coisa. O preguiçoso e o sujeito bem sucedido, como eu, ganham o mesmo. Acabou a competitividade. Ninguém tem mais estímulo para ser mais produtivo. Totalmente igualitário. Igualitário!
Como considero a produtividade um mito tóxico e tenho certeza absoluta que se a humanidade fizesse menos viveria melhor, confesso que o começo me agradou.
– Continua. Continua.
– Vou continuar. Imagina só, viver num mundo que considere tudo válido. Todas as religiões e crenças têm o mesmo valor. Mas ao mesmo tempo considere que essas crenças não devem interferir na vida comunal. Todo mundo acredita no que quer, mas tem que viver em comunidade de forma secular. Um mundo sem Deus. Sem Deus!
Mais um ponto pro tal do Comunismo. Viver com pessoas que têm o direito de acreditar no que querem e sabem que aquilo é uma crença, e não uma realidade, é realmente tentador.
– E pra piorar,- ele se adiantou sem eu pedir- acabar com as nações. Todo o planeta, todo universo sob um só governo, uma só bandeira, desrespeitando as tradições locais e nacionais e ignorando as histórias e glórias das nações soberanas. Uma anarquia global. Global!
Essa me remeteu à ficção científica que lia na infância. Uma utopia, um mundo unido, sem guerras motivadas pela ambição de poucos ou justificadas pelas fantasias de destinos manifestos de países inventados. Um mundo igualitário, secular e global. Ele abriu os meus olhos:
– Sabe, cara,- eu declarei- acho que eu sou comunista.
Ele riu amarelo, meio fingindo que era brincadeira, percebeu que eu falava sério e mudou de assunto. Pela primeira vez em muito tempo, o espírito que possuía seu corpo se aquietou e pudemos ter uma conversa normal, entre seres humanos, e não entre estereótipos políticos da sociedade brasileira do século XXI.
Isso foi antes da pandemia e ele não mais me ligou. Nem eu o procurei. Vez ou outra ele me manda uma mensagem querendo chamar para uma aglomeração, mas eu recuso sem explicações e ele entende: sou comunista.
Não sei como será após a pandemia. Não sei se a amizade irá sobreviver ao meu comunismo ou se ele vai finalmente ter superado o coração partido e tirado essa mistura fatal de Paulo Guedes e Bolsonaro do seu coração. Se ele não mudar, pelo menos tá aí uma coisa que ele pode botar de verdade na conta do comunismo: o fim de uma amizade.