Ainda tenho guardados os cadernos e diários da minha adolescência que provam que eu tinha uma vida interior. Converso com amigos da época sobre os acontecimentos que vivemos e estão registrados neles, e, do seu lado, não há lembranças:
– Sério que isso aconteceu?- eles me perguntam
– Sério. Seríssimo- respondo com uma ponta de dúvida.
Releio as histórias e passagens e me pergunto: se ninguém além de mim lembra, eu realmente vivi aquilo tudo? O drama, a cor, o amor? Não posso simplesmente ter uma memória melhor que a dos outros. Ou posso?
Compartilhei essa minha preocupação e um amigo me trouxe uma explicação: nem todo mundo narra a sua vida internamente. Segundo um artigo que ele compartilhou, narrar a sua vida continuamente é mais uma exceção do que a norma, e ainda me confidenciou:
-Eu mesmo não narro a minha vida.
Fiquei tão assustado que fui estudar o assunto mais a fundo e descobri que 3 entre 4 pessoas não estabelecem esses constantes diálogos internos. Que muitas ficam dias ou semanas sem ouvir a própria voz em suas mentes. Imagine só: tocar a vida sem ter aquela companhia constante na sua cabeça transformando tudo em uma história. Será uma benção ou uma maldição?
Não tenho ideia, pois desde que me dou por gente, eu não consigo parar de narrar. Minhas angústias, minhas esperanças, meus medos, meus desejos, desde a minha mais tenra infância, sempre foram parte de histórias. Quando aos 12 anos desenvolvi uma paixonite por Cindy Lauper, lidava com isso burilando uma história sobre uma sósia sua de 17 anos que morava em um prédio abandonado e me tirava de casa de forma dramática, mas eventualmente era mal sucedida. Quando vivenciei o câncer da minha mãe, mesmo com 6 anos, juntei os pedaços de lembranças da época e criei uma história de começo, meio e fim. Iniciava numa pedreira onde ela foi consultar uma vidente que a condenou a morte; pulava pros longos dias que vivi circulando no quarto e no refeitório do hospital; tinha um momento de alívio cômico sobre a inabilidade do meu pai de cuidar de mim, que fez o teto da cozinha ficar cheio de milk shake de amendocrem por dias; e encerrava com a volta da minha mãe pra casa quando lhe presenteei com pantufas vermelhas compradas na Amor Perfeito do Rio Sul.
As memórias, ou as histórias, são tão vividas na minha mente que me pergunto se realmente aconteceram dessa forma ou se apenas lembro das histórias que contei pra mim mesmo. Narrar a minha vida é um suporte para a minha memória ou um perigoso caminho pra mitomania que acometia meu pai?
Não tenho respostas, mas nos últimos tempos, nesse período de isolamento, me espanto o quanto, quando confrontado por alguns assuntos, consigo tirar da manga textos onde relato momentos da minha vida relacionados ao tema.
Isso parece tão incomum aos outros que inclusive ouço os seguintes comentários:
E me pergunto, temeroso, se isso não é, ao invés de uma qualidade, algum sinal de anormalidade.
Certo ou errado, é assim que eu sou: eu narro a minha vida. O que aconteceu, e o que não aconteceu; o que eu quero, e o que eu não quero, que aconteça. Viver sem a minha voz na minha cabeça é tão fora da realidade para mim que nem consigo conceber quem tenha momentos, ou mesmo dias, sem ouvir a sua própria voz.
Isso me lembra um conto que escrevi na adolescência sobre um jovem que misticamente conseguia contar histórias que realizavam os desejos das pessoas, mas ele mesmo, inundado por anseios e narrativas alheias, não conseguia descobrir o que queria. Assim, entre se apropriar do desejo alheio esteticamente e viver dentro de um deslumbrante vazio emocional, ele levava uma existência angustiante porém bela e útil. Era assim que eu vivia? É assim que eu vivo?
É uma pena que não tenha uma cópia dessa história, mas pelo menos eu me lembro dela e posso narrá-la para mim mesmo quando eu quiser. A pergunta é: isso é bom ou ruim? Não sei, mas é o que é. E isso já basta. Não? O que você me diz, voz interior? Vamos conversar…