Começou a rolar uma discussão sobre a questão da pirataria no Grupo do Bobagens Mais Imperdíveis e me senti tentado a me pronunciar a respeito. Comecei a escrever uma mensagem, mas ela foi crescendo, crescendo, e virou esse post. Peço desculpas antecipadamente pelo meu desatino.
Acho doido o povo discutir o modelo comercial da arte no século XX como se ele tivesse nascido com o mundo. O processo de ter um gate keeper (editora, gravadora, produtora) que comercializa uma obra de arte física ou virtual (e suas reproduções) não nasceu com a humanidade. O processo de financiar a criação artística e o sustento dos artistas teve vários outros modelos. Durante muito tempo tínhamos o Mecenato; estúdios de escultores; guildas; comunidades rurais de artistas; e, antes das editoras, as próprias livrarias eram publishing houses. Em suma, ser artista nunca foi profissão regulamentada mas parte fundamental do nosso ser.
Quando a arte entrou no modelo industrial, artista, sim, virou profissão, quer dizer, emprego, e criou absurdos como Carla Perez ser tratada como artista, pois vende em atividade correlata a indústria de entretenimento, e seu vizinho que escreveu dois livros de poemas fodas e declama belamente quando está bêbado no botequim da esquina ser chamado de vagabundo.
A arte virou uma exclusividade dos que geram dinheiro (para si e para os outros) com ela. Uma bruta besteira criada pela indústria junto com o mito de que os artistas, como países a serem colonizados e brutalizados, precisavam ser descobertos. Não precisam, pois todos somos artistas. Sobre o tema, sugiro a leitura de A Greve da Arte de Stewart Home.
Mas voltando à vaca fria. A questão da pirataria não é novidade e vem de mãos dadas com a questão de copyright desde ao século XXVII, o Cory Doctorow tem excelentes observações sobre isso. Então, ao invés de discutir se pirataria é válido, bom, ruim ou uma forma de se posicionar contra grandes conglomerados capitalistas (uma racionalização exagerada cuja consequência pra mim é a mesma de botar fogo na casa do torneiro mecânico pois você é contra a indústria automobilística), devemos nos questionar o que isso ameaça e qual seu propósito. Pois pirataria não é fim em si mesmo, mas um sintoma.
Um sintoma da falta de recursos para consumir a obra, do número limitado de cópias, da dificuldade de acesso, da falta de repositórios públicos dessas reproduções, e até de uma sanha hiperconsumista. Afinal, pra que precisamos encher HDs com livros, filmes e séries que nunca iremos ler ou ver? Roubar pode ter várias justificativas, mas ainda é roubar. Mesmo que os demais elos da cadeia roubem também.
O fato é que a pirataria não é um problema da arte, mas do comércio e da indústria. E a “indústria da arte”, depois de tentar bloquear sem sucesso a disseminação das obras, passou a responder a isso apostando na transformação dos próprios artistas em produtos, que vivem da cultura da celebridade, da venda de memorabília, e não passam de garotos propaganda ou conteúdo filler entre comerciais na internet. Sério. E não é só na música. Já viram esses canais de booktubers ou entrevistas com escritores hoje em dia? Os extintos suplementos literários viraram apenas versões da Caras e do Shoptime para um público que se pretende intelectual pois compra livros.
Ah, mas e o artista? Como ele vai sobreviver? Bom, sobrevivendo. Tendo outros empregos, contando com o micro-mecenato, e recolhendo o que sobra da decrescente indústria de reproduções de obras de arte. Ou, como uma vez ouvi Luiz Ruffato dizer numa palestra, cobrando por tudo que faz. Sim, ou você acha que o mito do artista puro não foi criado pela própria indústria para acusar de vendido todos que desejam receber pelo valor que geraram?
Então, pirataria, na minha opinião, não merece discussão. Se você faz, está errado. Pode justificar como quiser, mas está errado. Discutir modelos de sustento da atividade artística e dos criadores, sim, é um tema válido e espinhoso, sobre o qual eu não tenho nenhuma certeza e adoraria conversar. Qual é a sua opinião a respeito?