Ensaios

O primeiro erro

Apesar de Papai querer acreditar no contrário, era inevitável. Um dia ia acontecer. E aconteceu.

Numa manobra totalmente normal, no seu 34o. dia de vida, durante o seu banho, enquanto Papai lavava as suas costas, ele deixou seu rosto entrar lentamente dentro d’água. Ele mesmo, distraído, conversando com você e fazendo aquelas vozes engraçadas, não percebeu o erro. Graças a Deus Mamãe estava perto e pôde alertá-lo:

– Cuidado! A nossa menina está com a cara dentro d’água!

Num átimo de segundo Papai a levantou. Você não chorava, não ria, não fazia nada; nada, nada, nada. Também não parecia respirar. Papai e Mamãe ficaram por dois segundos esperando alguma reação da sua parte. Seus olhos se esbugalharam. Teria bebido água com sabão? Teria entrado água no seu pulmãozinho? Papai e Mamãe não sabiam.

Aqueles segundos pareciam horas. Mamãe não resistiu: lhe tirou dos braços do Papai e começou a bater nas suas costas. Você tossiu. Graças a Deus.

COF.COF.COF.

E chorou.

UnnnnnheeeeeEEEEE!

Mamãe saiu do banheiro e começou a andar em círculos pelo quarto tentando acalentá-la:

– Calma, meu amor. Já passou, já passou.

Papai a seguia, andando em círculos. Sem saber o que fazer, ele só repetia:

– Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe.

Você demorou, mas se acalmou. Mamãe também. Papai, não. Ele sabia ter cometido um erro. O primeiro. Um erro quase fatal. Assim repetia:

– Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe.

Mamãe começou a lhe vestir e enquanto isso tentava acalmar o papai:

– Acontece, querido. É só tomar cuidado. Não foi nada demais.

Papai não quis discutir, mas ele sabia que podia ser algo. Algo além de demais. Circundando o berço, ele buscava os seus olhos para ver se havia medo, ódio, ou algum outro sentimento negativo da sua parte. Você, com ou sem razão, virava a cabeça de um lado para o outro desviando o olhar. Aquilo era uma tortura para ele. Ele aguentaria qualquer coisa da sua parte, menos o desprezo.

Mamãe percebendo a sua angústia tentou promover a conciliação:

– Aqui, ela já está arrumadinha. Nina ela um pouco?

Papai estendeu os braços hesitante. Você veio, ainda de rosto virado. Mentalmente, papai repetia:

– Me desculpe. Me desculpe. Me desculpe.

Você pousou a cabeça no colo do papai, mas instantaneamente resistiu e jogou o corpo para trás. O choro inevitável se seguiu. Papai ficou tão aturdido que parecia que a segurava pela primeira vez.

– Calma,- mamãe guiava- não foi nada. Ela está bem. Vocês estão bem.

Papai queria acreditar e, como seu amor era grande, ele teve fé e a abraçou. Você resistiu mas aos poucos cedeu. Era como se estivesse relutante em aceitar as desculpas apesar de saber que Papai não tinha feito por mal. A última coisa no mundo que ele queria e quer é lhe fazer mal. Finalmente você lhe abraçou.

O resto do dia papai quase não lhe largou. Era como uma reconciliação de dois amigos há muito brigados. Mas quando você e Mamãe foram dormir, ele permaneceu acordado, como faria em muitas noites depois. Ele ia a seu quarto de quando em quando para lhe observar dormindo. Apesar da reconciliação, algo lhe dizia que ele não fora totalmente perdoado. Ele sentia que um dia chegaria um momento em que a conta por aquele primeiro erro seria cobrada. E quando o fosse, você iria dilacerar o coração do seu Papai irreversivelmente.

Depois de ouvir mais uma vez à história clássica do seu quase afogamento, a menina, mais de dezesseis anos depois da quase tragédia, foi obrigada a emitir mais uma vez a sua opinião:

– Pô, pai! Sempre essa mesma história. Pode crer, quando te pedi passar o carnaval em Salvador numa excursão com os meus amigos de colégio não estou tentando te dar o troco por nada. Nem eu gostar de Axé-Funk-Universitário é uma afronta pra me vingar. E outra coisa, vê se para de falar de si mesmo na terceira pessoa. Isso é esquisito pacas. Nó!

3 thoughts on “O primeiro erro”

  1. Ahahaahahahah…uma vez, dando peito de madrugada, dei uma cochilada, o braço afrouxou, e Gustavo, que também tava dormindo, rolou para o colchão…nossa senhora, tomei um susto tão grande que acordei o menino que só deu uma resmungadinha, enquanto eu, aos prantos, pedia desculpas, desculpas….o sentimento de culpa é phoda!!! Kkk mas acontece… Fica frio, Lisandro… Gustavo só soube dessa história pq eu contei a ele…e ele nem curte funk, nem axé..ahahaahaah!

  2. Papai exagerado!!
    Não se culpe tanto, isso acontece fique mais tranquilo!
    Bjs em vcs com saudades

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