Ensaios

Os Segredos do Universo

No fim do século XX eu estava virando um adultinho. Tinha 3 empregos legais mas mal pagos; o dinheiro era curto, mas eu conseguia morar sozinho num quarto e sala de Copacabana; e sofria existencialmente para terminar na faculdade os dois créditos que me dariam o diploma que nunca quis. Meus dias eram ao mesmo tempo lotados de atividades e oportunidades para o ócio. Claro que eu reclamava da vida, quem não reclama?, mas eu tinha consciência da rara paz de espírito que me acometia naquela época. Porém a paz de espírito do meu vizinho parecia muito maior e isso me incomodava horrores.

Quando o dia terminava ou na troca de turno entre um emprego e outro, eu sempre esbarrava com ele no botequim embaixo do nosso prédio. De short, chinelos e sem camisa, jogando porrinha no balcão pra não pagar cerveja, expediente ao qual também recorri diversas vezes, ele me notava, a gente balançava a cabeça um pro outro e sorria. Eu, timidamente; ele, de forma ostensiva, quase pornográfica.

Quem podia lhe culpar por ser tão feliz? Pelo que o Bigode, o porteiro da noite, fofocou, ele estava com o boi na sombra. Dependendo da semana ele era o modesto herdeiro de uma fortuna, um contrabandista sob proteção à testemunha ou um aposentado de um banco estadual do sul por conta de uma doença crônica, tipo epilepsia ou algo que o valha.

Inválido ou não, ele era o retrato da saúde; sempre bronzeado, com aquela eterna pinta de estar indo pra ou vindo da praia. Apesar de odiar ir à praia, eu o invejava. Se eu tinha paz de espírito no meio de um furacão, ele a aproveitava numa rede em frente a uma praia deserta vendo o sol se pôr e curtindo a brisa que vem do mar para terra encerrando o dia. Enquanto eu era um artigo técnico sólido numa revista chata, ele era poesia escrita por Vinícius de Moraes num guardanapo de bar.

Apesar dessa inveja, a gente se dava bem. Dividíamos umas cervejas no botequim e ocasionalmente nos ajudávamos em pequenas tarefas um na casa do outro. Na verdade, eu sentia que ele tinha algo a me ensinar, mas eu tinha vergonha de pedir que ele me contasse o segredo do universo de viver com tranquilidade sem fazer nada e sem ter uma forma visível de renda. Eu queria que ele me ensinasse a ser um copacabanense de verdade. Um dia quase rolou.

Eu estava saindo de casa numa noite de sábado pra um programa chato mas obrigatório quando esbarrei com ele apoiado no umbral da sua porta tremendo.

– Opa, cê tá bem?
– Tô, não. Ajuda? Ajuda…

Corri em sua direção e o apoiei. Ele tremia bastante e jogou seu peso em cima de mim em busca de apoio. Apontou para o sofá me indicando para onde queria ir. Eu o deitei e fiquei parado no meio da sua sala sem saber o que fazer:

– Posso te ajudar com mais alguma coisa? Quer que eu ligue pra alguém?
– Isso, ligar pra alguém. Ligar…

Indicou onde estava o telefone e me pediu pra discar. Começou a ditar um número longo, com certeza um interurbano, o qual errou várias vezes. Enfim consegui que alguém atendesse e lhe passei o telefone. Ele começou a bater boca com alguém do outro lado da linha, aparentemente recuperado, e, apontando pra cozinha, me disse:

– Se quiser, pega um uisquinho aí no balcão.

Ele não estava passando mal. Estava bêbado. Menos mal.

Aceitei a sua oferta e fui encher um copo. No balcão, além da garrafa e dos copos, tinha uma pilha de livros. Todos do mesmo autor: ele. Nas contracapas, a mesma foto: ele, bronzeadíssimo, de camisa havaiana, óculos escuros com uma praia idílica ao fundo. O fotógrafo realmente captou a sua essência.

Ele desligou o telefone e fiz a pergunta idiota que precisava fazer:

– São seus?
– Sim, todos eles- respondeu vindo pra cozinha se servir de mais um copo.
– São sobre o que?

Ele encheu um copo generoso, tomou um belo gole e sorriu como se me contasse um segredo:

– Não dá pra ver? Autoajuda.

Os títulos não deixavam dúvida: Como viver sem ninguém lhe aporrinhar, Ponha a culpa nos outros, Escape dos seus credores sem medo, e assim por diante.

– São à sério?
– Claro, eu faço o que professo. É preciso liderar pelo exemplo.

Dei uma diagonal nos títulos e 3 me chamaram especialmente a atenção. Parecia ser uma trilogia chamada Os Segredos do Universo e cada um dos volumes tinha um subtítulo mais instigante que o outro: Como não Fazer Nada, Como Viver sem Dinheiro e Como não se Preocupar com o Futuro.

– E essa trilogia? É sobre o que?
– Como posso resumir? Bom, a maioria dos nossos problemas surgem pois temos a necessidade de validação externa. Queremos que pessoas, grupos e instituições nos amem. Esse amor vem na forma de símbolos sociais, como compromisso, status e dinheiro. Porém, mesmo quando nos entregam esses símbolos falsos de afeição, continuamos ansiosos, insatisfeitos e com medo que esse amor não seja real. Os livros falam sobre como não fazer nada pelos outros, já que eles não merecem sua atenção; como não se preocupar com dinheiro, a medida enganosa do amor capitalista; e como cagar pro dia seguinte, afinal, ele pode nem chegar.
– Uau- foi tudo o que pude dizer.

O interfone tocou e ele foi atender:

– Fala, Bigode. Quem é? Pode mandar subir.

Desligou o interfone e, com pressa, veio apertar a minha mão:

– Cara, muito obrigado pela ajuda. Agora você precisa ir que eu vou atender uma “pessoa”. Sacou? Passa outro dia pra gente tomar mais um uísque e conversar.

Antes que pudesse falar qualquer coisa, estava no corredor. Meio desorientado, retomei o rumo pro meu programa de sábado e, no caminho para o elevador, passei pela “pessoa” loira e mignon, metida num vestido preto de látex obscenamente justo, que iria lhe visitar. Com certeza ele teve um fim de sábado bem melhor do que eu.

Nas semanas seguintes fiquei com os seus livros na cabeça. Será que ele realmente explicava como viver como ele, sem fazer nada, sem se preocupar com dinheiro ou com a aceitação alheia ou mesmo se estaria vivo amanhã? Tomei coragem e bati na sua porta trazendo uma garrafa de uísque. Uma velhinha, que eu nunca tinha visto, atendeu. Perguntei dele e ela me esclareceu:

– Ah, meu filho, eu não sei. Mudei semana passada e já não tinha nada nem ninguém por aqui. O pessoal da imobiliária disse que o inquilino anterior sumiu sem avisar e deixou um bando de dívidas de aluguel e condomínio. Desculpa não poder ajudar.

Perguntei se por acaso o morador tinha deixado algum livro pela casa e ela lamentou, mas disse que não.

– Melhor sorte da próxima vez- ela resumiu minha cara de frustração.

Lá se foi a minha chance de conhecer Os Segredos do Universo nessa encarnação.

Às vezes, ainda hoje, 20 anos depois, num fim de dia duro e cansativo, eu me lembro desse vizinho, e vou nos sites de livros usados procurar pelos Segredos do Universo. Estou, como todos, em busca de uma saída, em busca de esperança, em busca de ajuda, mas até hoje nunca os encontrei. Esses foram segredos que o século XXI nos fez esquecer.

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