Quando Star Trek foi criado a comoção foi grande. Num mundo extremamente polarizado e a beira da extinção nuclear, éramos confrontados e desafiados por uma série de TV a imaginar um futuro bem diferente. Um futuro sem dinheiro, sem preconceitos, onde a maior força militar da Galáxia era voltada a exploração de novos mundos e civilizações. Exploração, não. O duplo sentido não favorece a explicação da sua missão. Busca ou, melhor, encontro são palavras mais adequadas. Seu propósito era propiciar o encontro entre entes diferentes em busca pela paz.
Óbvio que havia ranços do passado. O conflito com os Klingons e o caráter belicista da Frota Estelar estavam sempre lá para nos lembrar que, embora estivéssemos no caminho certo, não podíamos nos descuidar.
O mundo mudou e Star Trek mudou junto. Nos anos 80, com o fim da Guerra Fria, 25 anos após o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, parecíamos mais próximos desse mundo ideal. Por isso foi tão providencial termos a Nova Geração. E Jean Luc Picard.
Picard, ao contrário de Kirk, sempre propenso a lutar e deixar seus instintos tomarem decisões precipitadas, era ponderado e sábio. Um líder e ao mesmo tempo um team player. Um humanista. Enquanto na Geração Clássica, o mundo ainda meio que buscava ser a utopia que ele era destinado a se tornar, em a Nova Geração assim já o éramos e o desafio era manter esse sonho. Vivíamos numa versão fantasiosa do que os anos 90, com seus mercados comuns, liberação dos costumes, internet e livre expressão, diziam ser.
Os anos passaram. O mundo mudou, assim como Star Trek.
Como qualquer ficção científica, ela espelhou o nosso mundo atual, mas aos poucos foi esquecendo a sua missão de nos fazer olhar pra frente. Esqueceu que seu destino era servir de exemplo e não exaltar o Status Quo. Esqueceu que seu destino não era glorificar as desventuras de um Kirk adolescente ouvindo Beastie Boys, nem transformar Kahn num terrorista sem charme ou sexualizar e imbecilizar Spock. Seu destino não era a comédia, nem a ação. Seu destino ainda era a reflexão. Por isso, precisamos de Picard.
Num mundo novamente polarizado, onde a caricatura se tornou a realidade e a ignorância é exaltada, precisamos lembrar. Precisamos lembrar que o mundo de paz e união que sonhamos é possível, mesmo que a Frota Estelar tenha se tornado populista e corrupta. Precisamos lembrar que todos são iguais, inclusive as formas de vida sintéticas. Que os nossos inimigos, como os Romulanos, podem dormir sob o nosso teto em paz. Que o mundo, que hoje parece tão confuso e ameaçador, pode ser, sim, melhor. E que a Terra é azul e não é plana.
Por isso é tão providencial que Picard e suas Lembranças, no primeiro episódio dessa nova série, venham nos resgatar e ensinar. Ensinar que só com respeito aos antepassados e com amor aos descendentes conseguiremos reconstruir a Utopia perdida dos anos 90 e da Nova Geração. E, assim, entre sonhos e memórias nos vinhedos Picard ouviremos o chamado que nos permitirá “ir aonde nenhum ser humano jamais esteve”. Mais uma vez.