Ensaios

Projeto de Ladrão

Era só chegar meu aniversário, o Natal, o dia das crianças, que meu pai deixava escondida no cantinho da boca, pronta pra ser usada, a velha frase:

-Você quer que eu roube?

Não importava o que fosse, ou a razão para querê-lo, meu pai sempre respondia aos meus desejos, grandes ou pequenos, com o mesmo questionamento:

-Você quer que eu roube?

Não, eu não queria que ele roubasse. Se não pudéssemos comprar, eu até entenderia. Ou acho que entenderia, se me dessem a chance de entendê-lo. Só não queria sentir que meu desejo fosse transformar meu pai num ladrão, e eu no filho de um ladrão.

Quando via meus amigos com os brinquedos que eu desejava, eu me perguntava: será que seus pais roubaram para conseguir aquilo? Será que vivíamos cercados por um círculo secreto de bandidos, roubando uns dos outros para oferecer aos filhos, futuros ladrões, o produto de suas vilanias? Se todos eram desonestos, por que cabia a mim, e, óbvio, a meu pai o papel dos últimos honestos do mundo? Não parecia justo; não parecia honesto; não parecia, quer dizer, não era honesto ser o único honesto num mundo de ladrões.

Para piorar essa impressão, meu pai ainda reforçava que todos esses bens materiais, conseguidos de forma ilegal, não tinham o destino certo:

-Vê só os pais dos teus amigos. Todos com carro do ano, mas, quando você vai comer na casa deles, o que te oferecem? Cream Cracker e água. Vê só se pode: Cream Cracker e água.

Um dia, na casa de um desses amigos ricos, não deu outra: me serviram Cream Cracker e água. E eu nunca mais esqueci das palavras do meu pai e do que elas significavam para a nossa missão de vida: ganhar dinheiro honestamente para dar o melhor tratamento aos outros.

Assim, em casa, não tínhamos na garagem um carro do ano, quer dizer, sequer tínhamos garagem ou carro, de que ano fosse, mas, quando recebíamos as pessoas, a mesa era farta e ao mesmo tempo humilde.

-Isso? Que nada, não deu trabalho nenhum. É um prazer recebê-los.

Não era. Dava um trabalhão, mas a gente ficava feliz por não ser ladrão. Porém, ser um excelente anfitrião não dava conta de todos os meus desejos e, para atendê-los, eu precisei aprender a roubar. De forma honesta.

Quando eu queria algo que os outros tinham, eu tratava de obtê-lo, legalmente, por algum tipo de subterfúgio. Meus amigos tinham jogos de Atari que eu queria? Eu trocava com eles por bonecos de Star Wars que eu não queria mais. Eu queria revistas em quadrinhos importadas? Eu as pagava com o dinheiro que conseguia por discos usados que eu encontrava no lixo do prédio e vendia nos sebos do centro. Eu queria mais revistas em quadrinhos? Eu as comprava na banca e as revendia em cima de um lençol que eu botava na entrada da portaria. O escambo e o comércio viraram a minha forma de crime. Aprendi a roubar para ser parte da sociedade de consumo.

Em pouco tempo, todas as atividades comerciais ou financeiras passaram a ter um pouquinho de gosto de roubo para mim. Ao mesmo tempo que não eram totalmente erradas, não eram totalmente certas, pois envolviam realizar um desejo meu. E desejar, meu pai não me deixava esquecer, não era nada mais do que um gatilho para incitar ao roubo.

Agora, enquanto escrevo essas palavras, cometo mais um crime: roubo a sua atenção, ansiando por um contato mediado por palavras numa tela ou numa folha de papel. O meu crime é escrever, a minha motivação é te tocar. Um ladrão de palavras.

-Você quer que eu roube?- meu pai continua gritando na minha mente.

Tarde demais, pai. Eu já roubei no seu lugar.

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