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Redescobrindo a Federação

*Contém Spoilers*

Discovery terminou a sua 3a. temporada e agora percebi o que estava me incomodando: finalmente ela entrou no esquema das demais séries de Star Trek.

Tem determinados padrões aos quais a gente se acostuma e nem sente. O de Star Trek está ligado a presença da Federação. Aquela enorme organização pacífica e racional que define o modus operandi dos nossos heróis e também direciona boa parte dos plots, definindo as missões que eles precisam cumprir.

Em Discovery, e em Picard, eles tentaram tornar a Federação, se não uma inimiga dos heróis, pelo menos uma pedra no sapato. É o espírito do tempo. Dos fascistas mais extremistas aos moderados mais relaxados, a confiança de todos nas nossas organizações políticas está abalada. E, óbvio, isso reflete nas nossas ficções.

Picard saiu para investigar a própria federação e fazê-la encarar o seu passado por esconder embaixo do tapete alianças espúrias e problemas que não conseguia resolver. E, em Discovery, demos um passeio temporal partindo de um período anterior à série clássica até 900 anos no futuro para estar a todo momento questionando as diretrizes, a atuação e a competência da Federação.

Em Discovery esse conflito se concentra na personagem de Michael Burnham. Ela, como Kirk, é uma rebelde, mas ao contrário do que acontecia com o Jim, ninguém passou a mão na sua cabeça. Ela já começa a série descumprindo ordens, sendo presa e tentando resolver tudo sozinha pois, fruto de uma tragédia e criada por uma família rígida e fria, não consegue confiar em quase nada e em quase ninguém. Assim como a gente que é obrigado a morar no Brasil.

Em Discovery, o ponto central é que a premissa da infalibilidade da Federação estava sendo subvertida. Na primeira e na segunda temporadas, a Federação não era ouvida e suas soluções eram em geral idiotas. Cabia aos rebeldes da Discovery resolver, a muito custo, seus próprios problemas considerando como lidar com  Impérios Racistas de outras dimensões ou Inteligências Artificiais de futuros distantes, respeitando dentro de certos limites, seus espaços. Parecia que a diversidade que havia dentro das naves da frota estelar estava sendo levada pra fora pela primeira vez.

Porém, agora, na terceira temporada, presos num futuro onde a Federação não é mais hegemônica, eles precisaram ser mais realistas que o rei e professar boa parte das regras com as quais não concordavam. Nesse novo ambiente, em especial no episódio da Terra, eles mostraram a face mais cretina da Federação: o colonialismo paternalista. Pode perceber. A Federação, em si, raramente tem problemas, e, como um Estados Unidos da Guerra Fria, ela sempre se mete nos problemas alheios, aparentemente sem interesses próprios, para aplicar sua imensa racionalidade e inteligência para resolvê-los.

Em Star Trek sempre foi assim. Lembro especialmente de um pocket da Nova Geração onde por páginas e páginas um planeta estava prestes a entrar num conflito sem volta e  foi só o Picard, que estava impedido de aparecer, falar meia dúzia de palavras que tudo foi resolvido magicamente. A premissa básica que move essas histórias é a mesma do colonialismo: meu papel é salvar os outros, e lucrar com isso, pois todos são imbecis e não sabem resolver seus próprios problemas.

Não admira, Discovery até a sua terceira temporada foi uma história de Recusa da Aventura. Michael é, desde a morte da Georgiou da “nossa” dimensão, claramente a mais apta a comandar a Discovery, mas ela não aceita essa resposabilidade. Toda trabalhada na psicanálise, nos seus conflitos familiares e na sua percepção basicamente correta das fraquezas da Federação, ela prefere “ajudar” ao invés de liderar. Surpreendentemente(?), muitas vezes essa “ajuda” coloca a nave em perigo para que Michael, depois de salvá-la mais uma vez, receba o carinho que Sarek não soube lhe dar.

No fim da terceira temporada, tudo mudou. Agora, depois que salvou toda a Federação, e recebeu carta branca pra ser como é, ela “se rendeu” a responsabilidade que deixou na mão de tanta gente inepta e se tornou a capitã da Discovery. E, como boa criança mimada que sempre foi, irá estender os domínios da sua vontade por onde seu motor de esporos permitir.

Se você achava a Federação colonialista e paternalista, imagina só como Michael vai agir depois que sentiu legitimada para assumir o poder. Deus tenha misericórdia do século XXXII.

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