Ensaios

Sempre o Domingos

Eu tive um professor de Filosofia da Arte que era fenomenal. Era o tipo de sujeito que chorava explicando o plot de Antígona e explicitava as diferenças entre drama e tragédia simulando uma crise de diarreia protagonizada por Getúlio Vargas. Saca o tipo? Tive aula com ele no breve período em que, sabe se lá por que, calhei de estudar na PUC. Preso naquele Shangri-lá vizinho ao Baixo Gávea, onde todos eram belos e jovens, eu sempre me sentia um estrangeiro. Apesar dessa inadequação, resisti bravamente por dois anos, especialmente por conta de professores como esse.

Uma vez, falando do Asdrúbal Trouxe o Trombone, o professor resumiu a sua opinião sobre arte e universalidade:

– Porra! Se o troço só fala com dois terços da zona sul do Rio, por mais engraçado e legal que seja, não dá pra chamar de arte. Arte tem que ser universal. Universal. Por exemplo, a Antígona…- e desandava a chorar pelo destino da pobre coitada.

Na época concordei e assim que ouvi o comentário só me veio à mente o Domingos de Oliveira.

2015-846230318-2015090357848.jpg_20150927
Não apenas um, mas vários Domingos

É, o Domingos. Não sabe de quem estou falando? Todo mundo conhece o Domingos de Oliveira. É… Aquele cara dos filmes de baixo orçamento sobre a zona sul-sul do Rio de Janeiro. Isso. O cara que teve a cara de pau de criar um movimento tipo Dogma 99 para justificar suas produções; o B.O.A.A., Baixo Orçamento Alto Astral. É… aquele mesmo. O sujeito que inventou a Leila Diniz. O pai da Maria Mariana, mentor da peça e do livro que, sei lá por que, me infernizaram tanto em 1992/3. Sim, esse. Esse Domingos de Oliveira.

Já tinha visto alguns de seus filmes e claramente se encaixavam na definição do professor. Eram fenomenais, mas falavam com um público tão limitado geograficamente que não dava pra chamar de arte. Eram basicamente comédias românticas despretensiosas sobre a classe artística que transita na zona sul do Rio de Janeiro. Cheias de piadas internas sobre a Globo, garçons e casos amorosos. Enfim, histórias locais. Onde estaria a universalidade pedida pela “arte” naqueles porres e papos em bares dos baixos Gávea e Leblon? Aparentemente em lugar nenhum.

Os anos passaram, saí (ufa!) da PUC, juntei, desjuntei, entrei no mercado de trabalho, casei, comecei a fazer parte da farsa do mundo adulto, mudei para Belo Horizonte e um dia, num canal qualquer, numa madruga insone, estava passando Separações. É, Separações do Domingos de Oliveira.

Lembro que na primeira vez que assisti ri horrores. Mas não por um bom motivo. Havia no filme uma carga absurda de humor não proposital. Me parecia que certas cenas e situações, criadas para dar carga dramática ao filme, tinham sido tão exageradas que se tornaram cômicas. Você deve se lembrar da cena do poema Saudade. Lembra? Não? Sério? Você tem que ver.

Sem muita explicação o filme começou a pipocar em diversos momentos da minha vida e, estranhamente, à cada vez ele tomava uma conotação diferente. As cenas que me pareciam exageradas e histriônicas passaram a parecer críveis e a humanidade dos personagens cada vez mais forte.

Algumas situações eram ridículas? Sim, mas não o somos todos? Aos poucos, filme a filme, Domingos de Oliveira me mostrou que o meu professor estava errado. Toda arte é local. E só fala ao e sobre seu autor a quem quiser escutar. Cabe ao público ter uma posição ativa de ouvir e refletir. É nessa reflexão, nesse contato, que surge a arte. Na conjunção de duas sensibilidades é que ocorre a mágica catalização da experiência artística. Meu professor estava errado: a arte não é atributo de um objeto. Não há arte num quadro, num livro, num filme. A arte é um encontro. Sem esse encontro, o objeto e o público se tornam totalmente desprovidos de sentido. O encontro, a arte, é que lhes dá a razão de ser.

Ontem, o encontro foi com o documentário da Maria Ribeiro sobre ele, Domingos. E que encontro. Como os filmes do Domingos, de forma despretensiosa e pessoal, ela não só constrói um belo personagem como revela o seu olhar amoroso sobre talvez a maior de suas influências. Mais um encontro. Mais um apaixonar.

Todas as mulheres do mundo
Deus inventou a mulher, mas Domingos de Oliveira inventou Leila Diniz.

Fica claro no filme como a sua pessoalidade e as suas idiossincrasias o tornam uma avis rara. Parte do Cinema Novo e ao mesmo tempo considerado “alienado” frente aos seus contemporâneos. Na fronteira dos 80 anos, em tempos, agora minguantes, de grandes financiamentos, ainda se mantem fiel ao seu modelo minimalista de produção, ao seu grupo recorrente de amigos e colaboradores, às suas referências populares e  clássicas, e aos seus diversos e proclamados afetos. Talvez, como ele mesmo se define, Domingos de Oliveira seja o último hippie. Hippie por acreditar mais no amor que na política, por se cercar por e fomentar uma comunidade criativa e por acreditar mais no trabalho e na vida que na adulação e na posteridade. Um homem de obras em vida, um homem para dialogar com, e não um homem para se colocar num pedestal e se admirar. E por essa mesma razão ele se torna tão admirável. Uma contradição ambulante. Um hippie admirável de fato. Um homem lúcido como poucos.

 

Fala aí

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.