Ensaios

Síndrome de Estocolmo

Ela nos acorda no meio da noite. Mais uma vez.

– É sua vez ou é minha?
– Não sei, será que ela mamou na última?

Discutimos tentando fazer a memória engrenar enquanto o seu choro aumenta de volume. Não tem jeito. Não vamos nos lembrar. Nunca. Desistimos. Para decidir só nos resta o par ou ímpar. Um, dois, três, Já!

– Quem vai? Quem ganhou ou quem perdeu?

Não sabemos, não lembramos.

– Traz ela aqui. Deve ser leite- finalmente a sabedoria impera.

Eu vou lá. No berço, de olhos abertos, ela chora. Ao me ver pára. Fico um momento em choque tentando lembrar o que fui fazer alí. Ela chora e me lembra.

– Já pegou ela?
– Ainda não. Já vou pegar.

Eu a tiro do berço e atravesso o curtíssimo corredor a ninando. Os gritos param. Deve ser a atencipação pelo leite. Entrego pra mãe.

– Ué? Ela tá dormindo?

Inacreditavelmente, todo o desespero foi resolvido em doze simples passos no escuro. Ela dorme linda como um anjo.

– O que vamos fazer?
– Sei lá. Acordo ela pra mamar?
– Não sei. Tento botar pra dormir de novo?
– Tenta.

Com ela nos braços, e ainda a sacudindo, atravesso os mesmos doze passos de volta. Quando chego no seu quarto, na escuridão percebo seus olhos mais uma vez abertos. Na verdade, arregalados. Eles se comprimem e ela chora.

– Já botou ela no berço?!
– Não deu tempo!

Volto os doze passos pro quarto e a entrego mais uma vez para a mãe.

– Voltou a dormir?
– Não. Mas tá quase. Vou amamentar assim mesmo. Se ela não quiser, vai negar.

Ela não nega e, mesmo com os olhos fechados, mama. E mama. E mama mais um pouco.

Eu tento esperar a mamação terminar, mas o corpo cansa e me deito.

– Dorme.
– Não. Quero te ajudar.
– Você não tem como me ajudar agora.
– Me chama quando ela terminar? Eu ponho pra arrotar.
– Tem certeza? Não quer descansar?
– Querer, eu quero, mas prefiro ajudar.
– Tá bom.

Eu durmo.

Acordo com ela chorando. Sozinho na cama.

Vou até o quarto dela e encontro a mãe a ninando.

– Você disse que ia me avisar…
– Mas achei que não fosse precisar. Você está tão cansado.
– Você também.
– É, mas não vou trabalhar amanhã…
– E quem disse que ficar com ela não é trabalho?
– Verdade.
– Dá ela aqui e vai descansar.
– Tá bom.
– Ela já arrotou?
– Sabe que eu não lembro? Arrotou? Não sei.
– Tá, vai descansar.

Ficamos eu e ela sozinhos. Começo a cantar uma música inventada. Passeio pela casa e vez ou outra passo em frente a um espelho para checar. Olhos abertos. Fechando. Fechando. Opa, fechou. Êpa, alarme falso. Fechou. Acho que agora é a hora.

Checo o relógio do rádio e faço a superstição a qual concedo ares de ciência: espero 5 minutos com ela quieta até colocá-la no berço. Para que as ondar REM de sono se estabilizem, você sabe, ou qualquer explicação pseudo científica que o valha. 1 minuto. 2. Tá passando rápido. 2. 2. Meu Deus, quanto tempo… oba, 3 minutos. 4. Foi rápido! Cin…Cin… cadê esse cinco. Já deve ter dado até seis. Quando comecei a contar mesmo? Meu Deus, estou quase caindo aqui. Opa! 5.

Com cuidado a coloco no berço. Ela reclama. Espero um momento para ver se tudo não passou de um alarme falso. Ela reclama mais um pouco, mas continua de olhos fechados. O plano é a cubrir e sair do quarto, mas, antes, fico uns momentos a admirando. Ela resmunga mais e eu agradeço por esse tempo adicional. E enfim faço o que tinha que fazer.

Me deito. A mãe já dorme. Me movo na cama e ela acorda. Sono leve. Tal filha, tal mãe.

– Dormiu?
– Dormiu.

Do quarto dela, um som. Esperamos calados. Reclama um pouco mas fica em silêncio. Esperamos. Não chora. Pelo menos não por enquanto.

– Agora vai dormir, você. Amanhã você trabalha.
– Tá.

Deito e espero a mãe dormir. Mas eu mesmo não consigo. Quer dizer, não quero. Fico vigiando. Esperando qualquer barulho dela pra ir checar o que está acontecendo. Faço força até pra não dormir, mas finalmente sou vencido e durmo. Cabeça dura. Tal filha, tal pai.

*

Ela nos acorda no meio da noite. Mais uma vez.

– É sua vez ou é minha?
– Não sei, será que ela mamou na última?

Recomeça. E, por incrível que pareça, essa é uma das melhores partes do dia. Somos reféns, é verdade, mas o que podemos fazer? Há como não se apaixonar por uma sequestradora tão linda?

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