Você acorda de sonhos intranquilos e se põe a trabalhar. Escreve o sonho literalmente. Literalmente, como lhe ensinaram na escola onírica. Depois de lê-lo em voz alta, se pergunta se há algum sentido naquilo. Ou, melhor, se pergunta se alguém vai entender o sentido que esperava que ele tivesse, o sonho. Afinal, o sonho, já dizia Freud, como outras manifestações psicopatológicas da vida cotidiana, dá sentido a várias neuroses do indivíduo. Mas a pergunta é: será que essa manifestação neurótica vai ressoar, será que os outros irão se identificar com o sonho que só você sonhou?
Você tenta revisar o sonho, torná-lo mais atraente, trazer elementos de outros sonhos que estão fazendo sucesso por aí. E se não fosse você o sonhador, mas outra pessoa? Outra pessoa mais parecida com o leitor do sonho? Outra pessoa mais parecida com os desprovidos ou deficientes de orinicidade? Será que assim o sonho não faria mais sentido (para os outros, que não sonham) ou, quem sabe, teria maior aceitação?
Você desiste de mudar o sonho. Que valor teria um sonho que os outros queiram sonhar mas que não tenha partido de você? O que outros vão sonhar a seu respeito se souberem que você está fingindo o que sonhou? Será que, um dia, sonharão sonhar com o que você sonha?
Você desiste de editar seu sonho, apaga tudo o que escreveu, e tenta se entregar às sensações que o sonho lhe proporcionou, ir ao seu âmago, usar as imagens oníricas apenas como uma plataforma para alcançar o sentido que só você poderia de fato apreender ou criar. Mas é inútil.
Você, mais uma vez, lê o sonho em voz alta e, mesmo você, não consegue entender ou criar um vínculo com ele. Qual é o propósito de um sonho que só você pode sonhar e não consegue mobilizar ninguém? Ou, pior, qual é o valor de um sonho que mobiliza a todos, mas não é verdadeiramente seu?
O cansaço toma seu corpo e sua mente e, mesmo tendo levantado da cama há pouco tempo, você se deita em busca de descanso e acolhimento. O sono vem. Derrotado, como um eterno menino problemático e tímido da república tcheca, você se entrega. E sonha.
Você acorda, mais uma vez, de mais sonhos intranquilos (existem outros?), e se põe, mais uma vez, a trabalhar, sonhando que dessa vez você tenha sonhado o sonho com o qual sempre sonhou sonhar. Não será esse um sonho impossível? Não seria mais fácil acordar? Não, melhor sonhar. Melhor sonhar.
Esse texto foi escrito respondendo ao desafio da Newsletter Toranja. Faça você também esse desafio!