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Um tom ainda mais branco do pálido

Até 1994, quando ouvi falarem de A Whiter Shade of Pale, numa exibição de meia noite de The Commitments no cinema Cândido Mendes, como a música mais incompreensível da história, eu só a tinha escutado uma vez. A memória da música era clara, mas eu não conseguia entender o contexto do comentário. Sim, eu lembrava da estranheza da canção, mas algo me faltava para fazer essa ponte cognitiva tão certeira. Óbvio que esse incômodo ativou a minha curiosidade, e, com ela, o meu desejo, sim, de ouvir a música de novo.

Mas eram os anos 90, pré internet, e, na época, matar uma curiosidade requeria trabalho. E sorte. Muita sorte.

Como de costume, deixei o desejo no estacionamento do meu inconsciente e, em toda incursão em sebo, ou loja de discos, sim, elas ainda existiam, eu tentava encontrá-la. Sem sucesso.

Depois de uns meses de busca, a curiosidade estava quase esquecida sob uma montanha de novos interesses quando, num domingo de tarde, depois de tomar um bolo num encontro, sim, na época as pessoas podiam te deixar esperando sem explicação e você não tinha como localizá-las, entrei num sebo de discos do lado da Modern Sound de Copacabana, e lá, na sessão de grupos de rock, tinha uma coletânea chamada Tensões e Emoções com a música.

Segunda música da esquerda pra direita na primeira linha.

Corri pra casa, e coloquei o disco na vitrola para matar a minha curiosidade. Sim, era melhor, e pior, do que imaginava. A música não fazia o menor sentido, mas ao mesmo tempo parecia que tudo que ela dizia estava ligado ao que estava passando no momento: o bolo, o sentimento de rejeição, e, ao mesmo tempo, a sorte e a recompensa de achar o disco, ou melhor, a música que tanto procurava. Tudo, sim, não passava de um tom ainda mais branco de pálido.

Botei a música pra tocar de novo, e saltou à minha vista, na capa de um caderno para jovens no jornal de domingo, um casal de adolescentes dando dicas para o dia dos namorados. Um dia que passei sozinho, mas ouvindo Procol Harum. Peguei o meu diário da época, que tenho até hoje sob pilhas de outros tantos parcialmente escritos, mas nunca terminados, e, num breve relato, lamentei a minha sorte, e comemorei o meu azar.

Hoje, 30 anos depois desse momento mágico, ouvindo uma playlist automática, a música volta de surpresa à minha vida. Tudo ao mesmo tempo parece diferente e igual. Matar curiosidades é mais fácil, e as recompensas não são mais tão mágicas, porém a música, como a vida, continua estranha e surpreendente. Ao mesmo tempo não fazem sentido e são exatamente o que deveriam ser. Como de costume, abro, às vésperas de mais um dia dos namorados, o meu diário, agora digital, e relato tudo o que mudou, e o que não mudou, nesses 30 anos. Tudo é igual e diferente, sim, mas o Procol Harum continua a fazer (e a não fazer) todo sentido.

And so it was laterWhen the miller told this taleThat her face at first just ghostlyTurned a whiter shade of pale

She said, “There is no reasonAnd the truth is plain to see”

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