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Sons de Sansa

Aos domingos, era o chorinho. Por volta de 10 da manhã, ele começava a atrair as pessoas para o coreto. Às 11, os músicos chegavam e adicionavam sopros e cordas ao tilintar das garrafas verdes que reluziam ao sol que imperava na praça. Era glorioso, como Jesus, Alegria dos Homens numa catedral a céu aberto.

Na hora do almoço, o público e os músicos, cansados ou bêbados, rumavam aos barzinhos para tomar as saideiras ou comer algo bem gorduroso para esticar a bebedeira. As crianças assumiam o palco e corriam em volta do escorregador e dos balanços, produzindo uma sinfonia ao mesmo tempo dissonante e inexplicavelmente calmante.

O sol, relutante, se punha atrás do corpo de bombeiros e a barraca dos poetas assumia as carrapetas com o melhor do brega internacional e nacional dos anos 70 e 80, conclamando os mais guerreiros a dançar em nome da nostalgia das rádio FM.

Nas noites de segundas, tinha o circo. Mas por incrível que pareça, não apareciam crianças o suficiente para justificar o espetáculo. Mesmo assim, os artistas se reuniam. Palhaços, malabaristas, acrobatas se apresentavam no entorno do chafariz atraindo os que voltavam da escola ou do trabalho, produzindo risos e aplausos.

Nas terças de tarde, o caminhão de mudanças abria a sua caçamba e dois sanfoneiros faziam um baile improvisado que seguia secretamente até a sua vontade ou alegria de tocar se encerrar. Em geral, tinha alegria e forró pra quase meia noite. Os síndicos odiavam, mas os moradores dançavam agarradinhos na praça ou em seus apartamentos.

Na quarta, era pra ser folga. Afinal ninguém é de ferro e todo mundo precisa de um dia para aparecer, sóbrio, em casa, e descansar o fígado. Porém, é dia de jogo do campeonato, seja ele qual for, e, em nome do seu time do coração, ou pra zicar o seu desafeto preferido, o povo quebrava a quase abstinência para tomar uma em pé em volta dos bares e acompanhar um jogo emocionante mas de resultado previsível. Ganhando ou perdendo, todos ganharam, e perderam, mais um dia. Ou uma noite,

Já nas quintas de noite, o som era dos discursos. Partidários, não partidários e apartidários se reuniam discretamente do lado esquerdo da praça pra denunciar os males da política, a opressão da nossa ditadura nascente e beber em memória de um país que já foi, mas não foi. Foi?

Na sexta, a surpresa. No fim do expediente era sempre um show diferente. Um cinema no parquinho, um rock no Salvatore, uma banda de jazz à sombra do chafariz. O povo chegava cansado da labuta e comemorava a invenção do dia da libertação da escravidão circular, falando mal de seus ganha-pãos e exibindo os planos pro fim de semana que nunca iriam cumprir. A música e a algazarra iam longe para o terror dos síndicos conservadores que apoiavam publicamente o gradeamento da praça e sonhavam secretamente com a morte de suas esposas tacanhas para se juntar à bagunça.

No sábado, o samba ainda persiste e resiste. No mesmo lugar do chorinho, e no mesmo horário, cercado por uma feira que até pouco não existia, o povo canta e dança com saudade de um país pré fascismo e pré pandemia, pedindo em oração pela volta dos sons de uma praça atualmente bem calada.

Cheia de alegria e esperança, essa “gente que num ônibus lotado vai batalhar um trocado” sonha com um tempo melhor. Um tempo em que todos os dias a praça voltará a gritar para toda cidade, pra todo país, pra todo mundo, que “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. E, tenha certeza, se “Se algum candidato atrevido for fazer promessas vai levar um pau”.

Que se abram as cortinas.

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