Só pra começo de conversa, bolsonarismo não existe, pois bolsonaro (em minúsculo) é minúsculo e não tem ideias. São as ideias que têm bolsonaro. Ele simplesmente se tornou o receptáculo de uma série de preconceitos, discursos de ódios e conceitos retrógrados. Como um ralo sujo reuniu e consolidou um rio de esgoto respeitando simplesmente a lei da gravidade. Mas, por fins de simplificação, vou chamar esse esgoto represado de bolsonarismo. Dito isso vamos ao tema em si.
Semana passada comecei a reassistir Vale Tudo. Foi uma novela que acompanhei quando tinha 12 anos e que até hoje lembro de muitos momentos. Guardo um em especial na memória: quando Marco Aurélio derruba a porta do filho pois acha que ele é gay por estar ouvindo música clássica. “Que imbecil” me lembro de ter pensado na época e comecei a ficar com uma raiva eterna de gente rica preconceituosa e de mau gosto que só dá valor a dinheiro. Quem disse que novela não tem caráter educacional?
Mas óbvio, rever não é ver, e 32 anos criaram uma super sensação de estranheza com a obra. Fora a enorme quantidade de fumantes, a fixação nas cenas de Antônio Fagundes de cueca e o excesso de tempo perdido em cenas longas sem diálogo ou sentido pra vender trilha sonora, algumas coisas parecem realmente exageradas. Uma delas é o grupo de personagens.
Ao contrário das novelas atuais que seguem a linha do maniqueísmo soft onde os bons são sofridos e cometem o mal por vingança, e os maus não são tão ruins pois tem suas razões para terem ficado assim; em Vale Tudo todo mundo, com o perdão da palavra, é filho da puta. Todo mundo precisa e dá suas voltinhas, afinal o Brasil, como a novela preconiza, é assim. Não escapa ninguém. Seja em pequenos ou grandes atos todos estão a fim de se locupletar. Até mesmo a musa do bolsonarismo: Regina Duarte, a Raquel.
É, a Raquel. A otária que tomou uma super manta da filha e vem ao Rio de Janeiro pois está “preocupada com ela”; a reacionária que se aproveita da bondade alheia e gosta de dar lição de moral nos outros; a mulher que acha que todo mundo está errado e só ela está certa. A epítome do passivo agressivo, uma filhote da ditadura em plena nova república.
Imagino bolsonaro, ostracizado do exército depois de conspirar em busca de aumento de salário, assistindo essa novela, enquanto concorria para vereador em 1988, pensando: “A Raquel tem razão, esses filhos da puta desonestos, ricos e pobres, acabaram com o Brasil”. Ou como Raquel diz num dos primeiros capítulos da trama “Me recuso a acreditar que o Brasil não tenha jeito”. Mas o que ele e Raquel não sabem é que o Brasil não precisa ter jeito, pois ele não é um carro que precisa de conserto, mas sim uma ideia e uma comunidade que precisa de acordo e diálogo. O que Raquel nunca teve com seu marido, um artista que ela odeia, e nem com a sua filha, que, sim, deu a volta na mãe. mas teve a coragem e o desejo que sua mãe sempre evitou.
Assim, ignorante da sua própria mediocridade, como Raquel vendendo sanduíches na praia, bolsonaro se tornou vereador, acreditando ser possuidor de uma moral superior ao resto do mundo, montando a sua banquinha de “venda” de salários na câmara municipal com Fabrício Queiroz, o seu “Poliana”, com o único propósito de se vingar do mundo. Sim, pois em Vale Tudo todo mundo é filho da puta, especialmente a Raquel.
E agora, 32 anos depois, somos governados por uma sensação de ranço feita em carne, por uma Raquel hiper-realista: uma hipócrita, corrupta, vingativa e ignorante, metida a moralista. O que fazer?
Talvez a resposta esteja num exemplo no próprio Vale Tudo. Minto quando digo que todo mundo é filho da puta em Vale Tudo. Há pelo menos um ser humano decente lá: Eugênio, o mordomo. Empático, culto, dedicado e humano. Um homem de gostos simples mas refinados, sempre pronto a proteger Heleninha. Um exemplo pra todos nós. Mas vive numa caverna. Como todos nós. E talvez isso o faça um filho da puta também. Afinal, “Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados”.
E é essa omissão da qual Eugênio e nós somos culpados que tornou o Brasil esse Vale Tudo da vida real. É, Cazuza, qual é o nosso negócio? Por que a gente é assim?