Ensaios

There and Back Again

Giro a chave e abro a porta. Ela range e emperra. Minha mão resvala num parafuso solto na fechadura e me corta. Sem sangue. Entro na casa. Ela, cheia de caixas de papelão fechadas. Retrato da bagagem física e emocional que carrego pela vida. Eu, cheio de malas. Retrato do apego às poucas realizações e vícios que consegui manter.

Jogamos as malas no parco espaço vazio entre as caixas e começamos a inspeção. Nenhuma casa, por mais que a visitemos antes da mudança, parece a mesma depois que você se mudou. Uma surpresa aqui, outra alí, mas, aparentemente, iremos conseguir viver lá. Quer dizer, aqui. O antigo aqui agora é lá. Estamos de Volta de Novo. Antes de qualquer coisa, uma olhada pela janela para ver se o mar ainda está no seu lugar. Ufa, está!

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Ah, mar! Ô, mar!

Deixamos as malas e saímos pelas ruas para ver o quanto da nossa vida mudou. Ou melhor, o quanto do bairro mudou depois que a nossa vida mudou ao deixarmos a cidade quatro anos atrás. Visitamos o velho botequim. Os mesmos clientes, os mesmos funcionários. Todos estamos mais velhos, mais gordos, mas, estranhamente, mais tranquilos. Algumas lojas nunca mudam e somos saudados por pessoas que ainda lembram de nós. Mesmo sem saber exatamente de onde ou de quando. Algumas, lojas e pessoas, sumiram como se nunca houvessem existido. Questionamos a nossa própria existência nesses últimos quatro anos. Será que nesse período nunca existimos para Copacabana?

Cada esquina, cada rua, cada banca de jornal é um marco de lembranças, cheias de significados vazios, criadas por corações saudosos. Somos memórias ambulantes, esperando um momento fatal quando seremos definitivamente esquecidos. Para nós, fazemos um passeio de resgate pelo passado e recebemos mais um aviso da nossa mortalidade. Para nossa filha, tudo é novidade e vida. Anos de distância separam nossas motivações e destinos, mas Copacabana une nossas experiências.

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Até o Bar Vedete é novidade.

Em busca de consolo, nos voltamos à praia e ao mar, os únicos espaços imutáveis no bairro. Nossa filha, boa mineira como é, enfrenta a água congelante para ter o tão esperado encontro com o azul infinito desse marzão. Como diria Tales de Mileto: tudo água. Como diria o 14 bis: Foi assim / Como ver o mar (…) Não tive a intenção / De me apaixonar.

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Mineiros e o mar, como opostos, se atraem.

Refrescados pela balsâmica água salgada de Copacabana, tomamos o calçadão para voltar ao nosso novo lar. De repente, um encontro fortuito com um conterrâneo da nossa pequena. Quieto, tranquilo, como muitos mineiros, esse ilustre exilado nunca põe os pés na areia apesar do enorme amor que tem pelo mar. Nossa filha não entende essa opção. Talvez algo da nossa carioquice lhe tenha sido passado pelo DNA.

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“Ô, seu Carlos, vamos deixar de mineirice e curtir o mar?”

Quase chegando ao nosso prédio, a fome nos impede de continuar. Paramos numa casa de sucos. Coisa que, por mais que se copie por aí, não existe em lugar algum como as daqui. No balcão aquecido, uma pizza carioca. Meio mozzarella, meio calabresa. Os únicos sabores que fazem sentido. Massa grossa e fofa. Queijo de má qualidade e borrachudo. Orégano? Sim, por favor. Em excesso. Um clássico. Pedimos uma fatia e um copo de mate. A cobrimos de ketchup e comemos dividindo os pedaços entre nós três. O sabor de infância não deixa dúvidas: finalmente voltamos pra casa.

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Yes, we Ket-Chup!

Saciados, voltamos pro apartamento. Na janela, aproveitando a vista enviesada do mar, penso em Bilbo. O que será que ele sentiu ao voltar ao condado depois de todas as suas aventuras. É claro que ele perdeu sua respeitabilidade, mas será que a riqueza e a sabedoria compensaram?

Tolkien's illustration of Bilbo Baggins's home
Uma pitada depois de ajudar a matar o dragão

Ao contrário de Bilbo não consegui deter Smaug. Ele ainda governa a montanha solitária na minha terra média. Mas fico feliz de ter feito o que podia para livrar os anões e a cidade do lago de seu terrível domínio. Ainda acho que falta pouco para que Bard finalmente apareça e crave a flecha fatal na besta. Talvez, eu tenha apenas abandonado a aventura, um pouco mais rico e um pouco mais sábio, antes do seu fim. Talvez ainda haja aventura a rolar.

Mesmo se houver, não é mais minha aventura. Agora é hora de, como fez Bilbo, descansar. Escrever minhas memórias. Compartilhar a sabedoria e a riqueza que essa aventura confusa e inesperada me trouxe. Mas nem tudo são flores. Toda aventura lança sobre o aventureiro uma pequena maldição. Aturdido, olho para a minha filha e penso se ela terá como Frodo a força para carregar o Um Anel que eu trouxe à reboque nessa busca.

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“Deixa de preocupação, pai. Eu consigo me virar.”

Com essa charmozice mineiroca, tenho certeza que ela não terá grandes problemas.

Dorothy tem razão: “Não há lugar como o lar”.

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