Antes da pandemia, não me perguntem há quanto tempo, sempre que esbarrava com alguém aqui na praça São Salvador, me perguntavam: “Viste Bacarau?”. O que era uma pergunta sincera aos poucos virou um meme e depois um jeito do pessoal de esquerda se reconhecer, como um aperto de mão não tão secreto assim.
Não tenho mais o costume de ficar lendo sobre filmes que não vi, nem perguntar pras pessoas por indicações ou opiniões. Procuro preservar a experiência pra mim mesmo e depois compartilhar e ouvir o que os outros tem a dizer. Assim me mantive razoavelmente distante do filme, esperando o momento de vê-lo. Ele saiu no e do cinema, bateu a pandemia, entrou no streaming, mas sem a urgência da praça, aos poucos essa vontade de assisti-lo foi sendo adiada. Ontem, um ano e pouco depois do seu lançamento finalmente se concretizou.
Achei legal, mas fiquei frustrado. A onda toda que o pessoal fazia, e Cannes, me deram a impressão que seria muito mais do que foi. É divertido, faz uma crítica política de aluno secundarista, mas, no fim das contas, acaba fazendo de espetáculo interessante com uma boa confusão de gêneros. Mistura faroeste e ficção científica distópica; tem aquela construção bidimensional de personagens de filme trash, e os diálogos misteriosos e o som direto ruim de cinema novo; é criativo, inclusive tecnicamente, no gore; e, ah, traz de volta uma coisa bem brasileira que não ainda tinham mencionado pra mim: o cangaço exploitation.
Não lembra? Nos anos 70, em plena ditadura, o cangaço voltou à moda. Teve série premiada de TV, filmes e era uma constante na cultura popular. O mito do marginal herói que lutava “pelo povo” contra um sistema corrupto durante a ditadura do Estado Novo renascia e fazia coro a outras manifestações culturais que celebravam a marginalidade como uma resposta ao governo opressor.
É bem sintomático que a gente esteja vivendo isso atualmente, por razões óbvias, mas, não custa lembrar que qualquer movimento estético tem repercussões na cultura e na vida real. Não vou dar uma de cientista político preguiçoso, pois não dá pra fazer uma clara correlação de causa consequência, mas depois do cangaço exploitation, quando a estética e a ideia estão internalizadas na população, grupos de agentes da lei que precisam ir além do sistema para manter a ordem começam a parecer uma ideia boa. Como chama mesmo? Ah, é Milícia.
Então, cuidado. Depois que virmos um Bacurau bem trapalhão casar com a namorada fascistinha do Brasil, talvez os nossos heróis marginais normalizados de agora virem os nossos ditadores do futuro.