Depois de 7 meses em quarentena, começamos a esquecer das coisas simples, por exemplo de nós mesmos. Mas, o mundo taí pra nos lembrar. Avisaram no trabalho que vão mudar o plano dental e acabei me forçando a ir ao dentista antes da troca. Algo que ainda não dá pra fazer de casa. Ainda.
Infelizmente, pós CoVid, pra mim, sair de casa não é mais algo trivial. Trabalhando em home office, fazendo compras e interagindo com os outros exclusivamente pela internet, esqueci como se faz pra ir à rua. Tudo parece novidade e requer planejamento. Como aprender a andar de bicicleta, com a diferença que não é como andar de bicicleta. Sim, desaprendi a sair. Por isso uma simples caminhada de 7 minutos ao dentista requisitou dois dias de expectativa e ansiedade, uma agenda detalhada com horários de sair e chegar, itinerários para encaixar outras atividades externas que estava adiando, e protocolos sanitários na ida e na volta para casa. Foi um trabalhão, mas deu tudo certo. Ou quase.
No dentista, as notícias não foram muito boas. Além de descobrir que meu bruxismo está arruinando os dentes, preciso tirar 3 sisos para resolver 3 cáries que podem virar 3 canais. Mas o pior não foi a expectativa das cirurgias, mas, sim, a avalanche de compromissos que isso gerou. Raio X, farmácia, molde dos dentes, placa miorrelaxante, o escambau. Acabou que fui obrigado a ir à rua mais 3 vezes na mesma semana.
Em cada uma dessas saídas repeti o ritual de planejamento, mas, traído por uma saudade de outras vidas, incluí auto indulgências no meu trajeto. Uma ida à papelaria boa pra comprar canetas nanquim e um caderno; uma passadinha nos correios para enviar umas revistas em quadrinhos para um amigo cada vez mais distante; comprar esfihas no árabe da galeria Condor; e uma visita de leve à livraria Galileu, que não é essas coca colas todas mas é o que me restou no Largo do Machado.
Em cada uma dessas pequenas escapadas senti como se estivesse esticando os músculos da alma e reativando uma memória metafísica do que sou e do que me restou: ler, escrever, desenhar, mandar cartas e comer bem. Como numa fisioterapia da alma, voltei a me alongar e tentar regenerar o que sobrou de mim. Estalando e gemendo, mas, graças a Deus, ainda vivo.
Mas te digo, depois de 7 meses de quarentena, cumprida religiosamente, mesmo tomando todos os cuidados possíveis, ainda me senti culpado por esses “luxos”. Me incluí na mesma categoria dos indecentes do Leblon. Aglomerando sem necessidade, colocando a minha família e outros em risco por simples vaidade. Sim, sou exagerado, mas o sentimento não é despropositado. Cedi aos meus pequenos vícios.
Tento me convencer que não foi de todo mal. Tento me lembrar que não temos personalidade sem essas miudezas, sem esses pecadilhos. Se para uns o que faz a cabeça é simulação de ménage à trois em carro aberto, fazer micareta em meio à pandemia, participar de passeata em prol de fascista, ou pagar de moralista barraqueiro, ok, essas são suas falhas. As minhas são escrever, ler, desenhar e comer bem.
Se meus pecados são menores, e podem ser resolvidos no conforto do meu lar, isso não os torna melhores; apenas diferentes. E, confesso, foi bom sentir que eles estão lá no fundo da minha alma ainda dando a razão a uma existência que, sem erros e desejos vis, não faz sentido algum. Afinal pra ser cristão tem que nascer com o pecado original. Então, exercitemos os nossos pecados derivativos.
Mas de máscara, pelo amor de Deus.
Amei esse texto!