Uma das maiores curiosidades sobre mim e também um dos maiores definidores da minha personalidade é o daltonismo. Sim, sou daltônico. Dos clássicos, de verde e vermelho.
Descobri o daltonismo quando tinha uns quatro anos. Estava fazendo prova pra entrar no pré de uma escolinha e troquei todas as cores:
– Seu filho é inteligente. Provavelmente, deve ser daltônico. Leva ele num oftalmologista- a professora da nova escola sugeriu.
E lá fomos nós descobrir se eu era daltônico. Exames feitos, o médico confirmou:
– Seu filho é daltônico.
– O que é daltônico?- perguntei na maior inocência.
– Se você soubesse, não andaria vestido assim- ele rebateu se referindo à combinação de laranja, roxo e amarelo que minha mãe liberal nos costumes e na educação me deixava usar.
Desde então só visto preto, branco e cinza. Tenho duas camisas azuis e uma vermelha que deixo para momentos especiais como o nascimento da minha filha. No mais finjo que vivemos num mundo monocromático. Mas é impossível manter essa ilusão.
Toda vez que alguém descobre o daltonismo sou inundado de perguntas como se eu fosse um alienígena. Ninguém parece acreditar que é possível ver o mundo de forma diferente. É como se eu estivesse enganando os outros. Aí começam os testes:
– Isso é verde ou vermelho?
– Como você vê isso?
– Impossível que você não esteja vendo esse número.
– Como é ser daltônico?
Não parece ser fácil pras pessoas imaginarem um mundo diferente daquele em que elas vivem. Um mundo onde o vermelho pode ser quase igual ao verde e vice versa.
O engraçado é que ninguém percebe que nada é vermelho ou verde. Essas são apenas palavras que convencionamos utilizar de comum acordo para nos referir a essa ou àquela matiz. Se me faltam recursos fisiológicos, biológicos ou anatômicos para participar desse acordo, isso não é um problema meu. O problema é aceitar a ilusão do mundo sem se questionar. O daltonismo, fico feliz, me tornou um cético.
Como não tenho um aparato que me permite deslizar com facilidade nos acordos coletivos da humanidade, passei a duvidar. De tudo. Comecei a questionar se as coisas são ou se somente entramos num acordo que elas “deveriam” ser assim. Passei a rejeitar crenças coletivas e busquei explicações sempre provisórias que sustentem as decisões que tomo na vida. Rejeitei o empirismo puro e me joguei no mundo das ideias, onde toda a possibilidade é (im)possível, inclusive o verde ser vermelho.
Por isso, quando vejo esses vídeos de daltônicos ficando maravilhados ao descobrirem um mundo diferente ao colocarem esses óculos de correção, por mais que fique emocionado e, confesso, curioso, sinto uma certa tristeza.
Por que abrir mão da incerteza que nos permite pensar tanto e desconfiar de tudo? Por que nos resignar a essa visão coletiva que não é certa nem errada, mas apenas normalizada? Por que não imaginar que os daltônicos são os outros e tudo pode ser diferente? Por que parar de perguntar “porquê”?
Os óculos de correção podem ser um grande avanço cientifico, mas do que estarei me privando ao abdicar da forma diferente com a qual interajo com o mundo?
Sim, ser daltônico, pelo menos pra mim, dá trabalho, mas vale a pena. O que não vale a pena é abrir mão desse lembrete para exercer continuamente a racionalidade pela fantasia de me sentir “normal”.
Este texto faz parte da blogagem coletiva Estação Blogagem, com o tema Tarô: cada semana de novembro será regido por um naipe que vai inspirar a produção dos textos. Para saber a programação e participar, leia esse texto aqui.
Acho bonito e ao mesmo tempo trágico que ninguém enxergue o mesmo azul, mesmo os não-daltônicos. Por isso tão difícil chegar a acordos, cada um está preso dentro da própria perspectiva. Belo texto!