Ensaios

A (sobre)vida do autor

Mês passado, como não fazia há tempos, assisti ao Oscar e, após o evento, caí num sono reparador e sonhei com a ideia que vou descrever abaixo. Levou um pouco de tempo pra eu conseguir concatenar as ideias, por isso, peço desculpas antecipadas pelas cruéis maquinações do meu inconsciente e agradeço antecipadamente a vocês por me concederem a sua atenção nesse processo de reflexão a céu aberto. Afinal, é pra isso que serve esse formato de blog, não? Então vamos lá.

Ao contrário de outras formas de arte, no cinema, ou no audiovisual, em geral, há um conflito mais claro entre o que chamamos de obras “comerciais” e de autor. Ou, pior, a balança sempre tende a pender para o comercial. Na TV, por exemplo, as tais obras de autor são super raras e normalmente só existem por uma resposta inesperada do público ou por alguma brecha gerada por crises financeiras onde experimentalismos mais radicais acabam sendo tolerados, até que eles se tornem, também, produtos e franquias.

O Oscar durante muitos anos sempre andou, ou anda, no fio dessa navalha: se apresenta como a “festa da indústria”, enquanto costuma premiar os autores que trazem seus trabalhos mais idiossincráticos pras telas. O caso de Spielberg é um dos mais representativos. Depois de anos de blockbusters e loas da crítica, ganhou seu primeiro Oscar com um filme fora do seu estilo tradicional, após alguns exercícios estilísticos que foram recebidos com diferentes graus de aceitação.

Porém, esse conflito não acontece com tanta frequência ou com a mesma força em outras artes. Na Literatura, por exemplo, não é comum vermos um trabalho que esteja tão desvinculado da autoria e da posição individual do autor sobre a vida. Há, sim, obras de gênero, mas, por mais que, nesses caos, os autores possam fazer uso de fórmulas para atender a grupos específicos de consumidores, eles raramente se desvinculam totalmente dos seus interesses basais e das suas posições ideológicas. Explico.

Por exemplo, enquanto é perfeitamente possível que no cinema um diretor, roteirista ou atriz antiteísta, e não simplesmente ateísta, participem da produção de uma obra de exaltação religiosa, é muito mais difícil isso ocorrer na literatura, mesmo quando o autor está trabalhando como ghost ou assumindo uma obra comissionada. Ou seja, o papel do autor e a sua representação na obra são mais fortes.

Se formos pensar em como essa divisão se dá nas demais artes, por incrível que pareça, nesse ponto, as artes gráficas, de perfil mais artesanal, como os quadrinhos, a escultura e a pintura, se aproximam mais do cinema do que da literatura, enquanto o teatro, um esforço comunitário, consegue se colocar num meio de caminho. A música, já, nem se fala. Está de mãos dadas com o cinema nesse ponto.

Mas o que seria determinante no processo de produção, divulgação, ou “consumo” das obras que influenciaria a sua relação mais próxima ou afastada da autoria?

A princípio obras prioritariamente coletivas, como se diz, criadas por comitês, tem um caráter mais comercial pois também requisitam não só mais recursos para existirem como também tem fluxos de produção mais complexos com diversas camadas de processos decisórios coletivos ou descentralizados. Nesses casos, os ditos interesses comerciais poderiam se manifestar e se justificar com mais facilidade, diminuindo o papel e a expressão do autor nas sua manifestações. Em obras individuais, esse tipo de intenção mercantilista é mais difícil de ser apoiada e os que se colocam dessa forma acabam sendo taxados de Sell Outs.

Outro fator determinante seria em que passo do fluxo criativo ela se encontra. As obras mais próximas da ideia original tenderiam a ser mais autorais, pois menos analisadas e mais instintivas, enquanto aquelas que requerem múltiplas revisões ou são simplesmente adaptações ou derivativas tem um distanciamento maior do desejo inicial de criação sendo mais suscetíveis a inclinações comerciais.

Um terceiro critério desse viés mais ou menos comercial é o investimento necessário e o retorno esperado, tanto financeiro como de esforço. Obras que envolvem baixo retorno e investimento tendem a ser mais pessoais, pois tanto os riscos como as expectativas são menores. Quando as expectativas e os recursos necessários vão aumentando as obras vão adquirindo não só salvaguardas e preocupações financeiras como também de imagem, o que não deixa de ser um ativo. Além disso, as obras em artes plásticas, pelo seu caráter de unicidade e por estarem no mercado de luxo, podem tender a gerar padrões mais repetitivos ligados ao autor como grife mais do que como expressão.

Agora, há atualmente um ponto que suplanta todos esses outros: a pressão interna para ser vendável.

Meio que numa vibe de A Sociedade do Cansaço, e inspirado por leituras como Story do McKee, A Jornada do Escritor do Vogler, dentre outras obras, artistas, em especial a galera da Literatura, que, por tudo que disse acima, deveria a que menos estaria preocupada com isso, está obcecada em fazer a coisa certa, i.e., ter sucesso comercial.

É estranho e extremamente contraproducente às artes que aquelas manifestações com maior liberdade estejam sendo, por que não usar o termo?, censuradas na sua concepção por desejos de sucesso comercial.

Por isso, quando vi, no Oscar, sinais de uma abertura a obras menos comerciais, confesso que fiquei mais feliz. Espero sinceramente que os meus amigos da literatura comecem a ser influenciados a abandonar a ideia de que bonito é fazer dinheiro. A vida é muita curta pra você abandonar a arte que fala ao seu coração pra fazer sucesso (ilusório) em redes sociais controladas por robôs.

Enfim, Roland Barthes pode ter proclamado a morte do autor, mas não vamos provocar nossa total aniquilação, com motivos puramente mercenários, pelas nossas próprias mãos. Os leitores merecem se relacionar com, nós, os autores mesmo que estejamos “falecidos”. 😉

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