Ensaios

A traição do eleitor

Meu pai tinha um companheiro de FEB que de 4 em 4 anos se candidatava a vereador. Como um relógio, três meses antes da eleição municipal, lá vinha ele bater na nossa casa. Carregando um pacote de santinhos, ele fazia a longa jornada de Deodoro ao Flamengo sobre as próteses e as muletas que sustentavam seu corpo desde que perdera as duas pernas na Segunda Guerra. Seu slogan sempre mudava, mas nunca saía da linha: “Ele lutou por nós e vai continuar a lutar.”.

Se vontade contasse, ele seria o vereador mais votado do Rio de Janeiro. Com a sua pensãozinha, bancava sozinho a campanha onde prometia melhorar saúde, educação, segurança e, óbvio, a condição dos ex-combates que queria representar. Como cumpriria essas promessas? Ele não sabia, mas tinha certeza que lutaria e ganharia. Como fez na guerra.

Era um analfabeto político mas queria escrever seu nome na história da câmara municipal carioca. Como, acredito, a maioria dos candidatos que fazem a festa da democracia parecer algo mais do que o convescote sinistro ao qual comparecem sempre os mesmos malandros.

Alheio a essas maquinações que movem a política, ele fazia a sua parte, lutando voto a voto pela cadeira a qual sentia ter direito moral. Por isso de 4 em 4 anos, ele vinha ao meu pai em busca de algo mais que um voto; em busca do apoio político e da influência que meu pai fingia ter.

Eles sentavam no sofá e discutiam estratégia de campanha durante a tarde toda. Parecia até que era sério. Colégios eleitorais, locais para corpo a corpo e às usuais críticas ao material gráfico eram discutidas à exaustão, antes de avaliarem as suas chances naquela eleição. A cada ano meu pai aumentava a quantidade de votos que conseguiria para ele. Num ano eram 100, no outro 500, até que um ano chegou a prometer 10 mil.

Quando ele ia embora, após me entregar um santinho, mesmo sabendo que eu não tinha idade para votar, eu perguntava ao meu pai:

– Como você vai conseguir esses votos todos?
– Não vou- meu pai respondia.- Uns foram feitos para concorrer e outros para ser eleitos. Deixa ele se divertir com o seu papel- e ia para a cozinha jogar o pacote de santinhos na lata de lixo.

Na época da ditadura, essas promessas nunca pareciam vazias. Os dados eleitorais não eram transparentes como agora e tudo podia ficar diluído nos votos que o candidato bem intencionado conseguia com seu próprio esforço. Mesmo assim, eu sentia que a cada visita aumentava a desconfiança do amigo sobre as bravatas do meu pai.

No ano dos 10 mil, para azar do meu pai, as coisas mudaram de figura. Era fim do governo Sarney e pela primeira vez os votos seriam divulgados por seção eleitoral. Meu pai não se ligou do impacto que isso teria em suas promessas até que o candidato bateu lá em casa depois da apuração.

– Cadê os 10 mil votos que você me prometeu? – o candidato pressionou o meu pai.
– Ué, não rolou?
– Não, não rolou. Eu tive só 2732 votos.
– Ó lá, já foi um bom resultado. 2000 votos já um bom resultado. Eu corri atrás, mas você sabe como é eleitor: um bicho traíra pacas.
– Ah, é? Ah, é? É traíra mesmo. Quer ver só? Olha aqui na sua seção: nem um voto pra mim. Nem um voto. Você nem votou em mim!
– Pronto, tá explicado!
– Tá explicado o quê?
– Taí, ó. Óbvio que votei em você. Logo tá explicado. Foi fraude. Foi fraude.

O amigo depois de um momento de surpresa, se acalmou, pediu desculpas ao meu pai pela falta de compostura e partiu sem me entregar nada. Quatro anos depois ele não voltou. Ou desistiu de se candidatar ou desistiu de acreditar no meu pai.

Meu pai nunca mais falou dele. Estava esquecido como uma filipeta de eleição passada. Hoje votei e pensei como esquecerei rapidamente daqueles em que votei e em que não votei; como reclamarei daqueles que apoiei esquecendo da minha implicação em toda essa lambança. A festa da democracia sempre termina em amnésia alcoólica e ressaca moral. Meu pai tinha razão: somos traíras pacas.

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