Ensaios

O aniversário de “de Jesus”

Pai, hoje, se estivesse vivo, você completaria 92 anos. Ou 93. Ou 91, dependendo de quem contasse a história. Para alguns, você teria dito que, quando seus pais lhe deixaram órfão com menos de 10 anos, para que entrasse no colégio militar como interno era importante parecer mais novo. Ou mais velho. Ninguém chegava a uma conclusão. Quando pressionado, você sempre dizia: “Faz tanto tempo que eu nem me lembro mais. Usa o que estiver na certidão”. Então, 92.

O mesmo valia para a sua data de nascimento. Uns diziam que era 24, outros 25. Até nesse ponto, você também desconversava. Dizia que aniversário não importava. “Aniversário é todo dia”. Mais provável que fosse 25, o que explicaria o “de Jesus” no seu nome.

Quando você era vivo, seu aniversário tornava ainda mais pesada a minha maratona natalina. Logo eu, de família cristã nova, descendente de judeus de pai e mãe, vítima e produto da educação beneditina, ateu não praticante, tinha uma das mais complexas rotinas para comemorar o aniversário de Jesus.

No dia 23 tinha sempre um amigo oculto de tarde. De noite, a ceia antecipada da minha mãe. No 24, o almoço de enterro dos ossos. No 24 de noite ia em alguma festa onde minha mãe estivesse para lhe dar um abraço, para depois seguir à casa da minha sogra que sempre rendia um estica com os amigos da minha mulher, então namorada. Já totalmente exaurido, no 25 ainda tinha o seu aniversário. Ia das comemorações de Jesus a “de Jesus” em três dias de intensa comilança.

A festa não era lá essas coisas. A sua família oficial tinha, sim, suas razões para não ir com a minha cara, mas eram educados. E você não parecia aproveitar nada. Frente àquele grupo de pessoas comemorando seu aniversário, misturado com a festa de enterro dos ossos, você parecia distante. Não era o cara que tinha me criado.

Não era o cara que abraçava desconhecidos na rua, fingindo conhecê-los e puxando papos genéricos para constrangê-los. Não era o cara que passava trotes comigo e meus amigos de 8 anos de idade, entre campeonatos de arroto. Não era o cara que alegava conhecer qualquer cidade do nordeste, citando o açude, a igreja matriz e a corrupção dos políticos como referências. Não era o cara que comprou um celular de brinquedo para atender na rua e passar a quem lhe olhava dizendo “É pra você”. Não era esse cara.

Era um cara de uma família estranha. Um senhor que se presumia responsável. Um homem abatido pela suas próprias escolhas e pela sua falta de coragem de ser quem era e podia ser. Era um cara triste.

Inevitavelmente, após o seu câncer, foi esse papel opressivo e a depressão que ele gerou que o levaram há 14 anos atrás.

Sei que não fiz tudo o que podia. Nunca fazemos. Sempre tem algo mais a fazer. Podia ter insistido nisso ou naquilo, apesar de todo o time contra. Mas não deu. Confesso que chegou uma hora que desisti. Pelo menos desisti depois de todo mundo que só fingiu que tentou. De todo mundo que não o conhecia de fato. Não quero dizer “se você tivesse pelo menos…”, pois não quero culpá-lo. Não há culpas a distribuir. Há simplesmente a constatação que a vida muitas vezes não faz o menor sentido.

Mas às vezes faz. Olhando para a sua neta que nunca teve a oportunidade de conhecê-lo, não me furto a ver pequenos sinais seus nela. Boa parte disso é projeção, uma parte é desejo e outra é fruto da criação que lhe proporciono. Se puder fazer com que ela tenha pelo menos um pouco da sua criatividade e da sua alegria, considero que terei feito um bom trabalho como pai. Assim como você o fez, mesmo entre acertos e erros.

Então, nesse dia do seu aniversário, ou não, em que completaria 92,91 ou 93 anos, mesmo envolto em todas as incertezas que a sua vida e a nossa relação sugerem, sinta-se abraçado. Sinta-se abraçado no momento em que sua neta abrir seus presentes de Natal e vier me dar um beijo enquanto faz alguma gracinha que me remete a a você. Sinta-se vivo nessa relação e no orgulho que sinto de ser seu filho. Saiba que sempre estará vivo nas histórias que me contou mas nunca escreveu. Pois, se não as escreveu nem garantiu a imortalidade prometida por Leonard Cohen “when you done a line or two”, eu estou aqui as escrevendo para você. Elas merecem ser contadas e você merece que alguém as conte. Fico feliz que seja eu a fazer isso por você.

Feliz aniversário, “de Jesus”.

1 thought on “O aniversário de “de Jesus””

  1. Que lindo! Gosto quando vc usa da sua escrita para relatar historias do seu pai.
    Por aqui o dia 25 começará a ser diferente. De memórias guardadas que optei não revisitar para então agora comemorar a minha pimenta natalina, Melissa.
    Que reinicie essa nova história!

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