Arquivo do Autor: Lisandro Gaertner

Sobre Lisandro Gaertner

Escritor, roteirista, game designer e especialista em aprendizagem. Mais informações na BIO.

Vim aqui lhe contar algo sobre 2016

Segunda feira, 6 da tarde. Os amigos se reúnem para o Chandon Sunset, evento bacana onde assistimos juntos na praia de Ipanema o pôr do sol, entre taças de espumante, para eles, e cerveja, para mim. Apesar do que dizia a previsão, o tempo, apesar de bem nublado, se mantinha estável. A bruta chuva prometida era ainda apenas uma promessa.

A cada rajada de vento ou pingo renegado, o povo murmurava entre si:

– Não vai chover. NÃO VAI CHO-VER.

Dito e feito. Choveu.

Mesmo sob um dilúvio, como muitos que estavam na praia, não arredamos pé. A chuva veio. A chuva foi. A chuva voltou. Ventou forte. Mas, graças a Deus, não rolou nenhum raio. Enfim ela acabou.

Comemoramos a nossa resiliência e perseverança. Alguém comentou:

– É preciso aguentar a chuva para ver o pôr do sol.

Tem razão. Tem razão.

*

Último almoço de trabalho do ano, Sushi e Kirin para engolir um ano difícil mas vitorioso. Mesmo que nos pênaltis. Conversamos sobre os acertos e erros do ano e, especialmente, sobre a falta de previsibilidade do ano que vem. Murmuramos entre nós:

– Tudo pode acontecer. TU-DO PO-DE A-CON-TE-CER.

Na hora de pagar o banquete a quilo de meia hora, o cartão alimentação, sinal da nossa sorte corporativa, é negado. A conta passou R$0,11 do que tinha pra esse mês. A caixa não se furtou a me dar o desconto. Com a boleta na mão, ela disse:

-Taí. Zeradinho pro ano que vem.

Tomara. Tomara.

*

No botequim da esquina, as famílias se reúnem para o último chopp do ano. Contam suas histórias de dureza e também as de superação. As crianças brincam na rua, enquanto os adultos, mesmo esperançosos, temem o que futuro trará para elas.

Na volta de mais um passeio no quarteirão com a minha filha, percebo que o celular que tinha deixado na mesa sumiu:

– Você não estava aqui?
– Fiquei o tempo todo. Não será que caiu no caminho?
– Não. Deixei aqui.

Procura. Procura. Não acha. Todos lamentam e alguém lembra de um velório em que um amigo se confundiu ao cumprimentar o colega cuja mãe tinha morrido:

– Vão-se as mãos, ficam-se os anéis.

Rimos. O que é perder algo material?

*

Por que estou lhe contando isso?

Sou um fiel crente na quarta dimensão. Vejo e acredito que o Universo está sempre nos mandando sinais. Para mim, fica evidente que o recado de agora é: o que é do passado lá deve ficar. E, complementando, a vida em 2016 será nova e, Oxalá, boa!

Por isso, vamos deixar 2015 para trás e viver 2016 como um novo começo. Um começo de relações, trabalhos, sonhos, conquistas, histórias e tudo mais que faz a vida ser boa.

Como dizia J.G. Balard: Eu resumiria o meu medo do futuro em apenas uma palavra: chato.

Vamos ter um 2016 interessante e divertido.

Por isso estou lhe contando isso.

Ah, e para avisar que estarei sem celular até o começo do ano que vem.

Por que precisamos acabar com Roberto Carlos

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Nesse período natalino, é só ligar a televisão para esbarrarmos com a onipresença de Roberto Carlos. Quando não temos a sua decrépita imagem na tela, são artistas da moda bajulando-o com frases feitas em forma de oração; ou novas estrelas da música ofertando ritualmente a sua energia vital ao cantor moribundo; ou jornalistas tentando inutilmente nos convencer da importância que ele nunca teve; ou subcelebridades que não conseguiram participar desse funeral anual lamentando estarem fora dessa festa nacional.

A onipresença de Roberto Carlos, na comemoração do nascimento de Cristo, é bem pertinente e serve como um belo contraponto, pois, como a comemoração do aniversário de alguém que já morreu há dois milênios, se trata do velório eterno de uma ideia que se recusa a morrer. Uma ritual de negação que nos impede de fechar o luto pela morte do tal proclamado “rei”.

Roberto Carlos, assim como a ditadura, sua irmã gêmea espiritual, morreu em meados dos anos 80. Mas, ao contrário dela, se manteve em coma, sustentado por aparelhos, por mulheres gordinhas, de óculos e por caminhoneiros, até que voltou a uma não vida e vaga pelos nossos natais e transatlânticos como um zumbi, evocando sentimentos de melancolia e saudades de controle. Cultuar o rei, assim como cultuar a ditadura, é acreditar numa nostalgia inútil e sadomasoquista. Se a ditadura fingia que iria nos ensinar a crescer e votar, apud Pelé, Roberto Carlos fingia que ia nos ensinar a amar.

Com sua postura pseudo sexy e sua manifestação ostensiva de uma masculinidade de romance barato, ele criou o AI-5 do romantismo. Promovida por esse arauto da ditadura emocional toda uma cultura de cafés da manhã, cavalgadas, cabelos encaracolados e metáforas sexuais de botequim se formou. Presos a essas crenças, passadas de pai e mãe para filhos, continuamos infantilizados e sem autonomia para escolher como amar. Assim como ainda não entendemos a democracia e esperamos que a salvação venha de políticos, ainda continuamos proferindo as músicas do “rei” como uma oração em busca do amor que acreditamos não merecer.

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Terrorista do romance ostentação

Precisamos nos livrar dessas saudades do macho alfa da ditadura. Precisamos destruir esse ícone psicosexual do mau caratismo bem intencionado. Precisamos saber que fomos e ainda somos vítimas de um esquema para tornar a todos nós vítimas e canalhas. Como a ditadura não nos ensinou a crescer, Roberto Carlos não nos ensinou a amar. E, enquanto continuarmos ritualizando a sua não morte todos os anos, não seremos livres para cometer nossos próprios erros e continuaremos a acreditar que o amor, a liberdade e a maturidade emocional são coisas que estão nos outros e não em nós mesmos.

O que me preocupa em JJ Abrams

Ao contrário de uma pá de amigos que, respondendo ao hype da sua própria maneira, estão esperando que The Force Awakens seja uma bomba, tenho plena confiança que o filme será excelente.  JJ Abrams, não podemos negar, tem  imensa sensibilidade e um admirável respeito com materiais ditos clássicos, sejam eles franquias ou gêneros, ao mesmo tempo em que injeta novidades  tornando-os algo novo e interessante. Repito, não me preocupo com The Force Awakens. O que me preocupa é o que vem depois.

Abrams, todos também sabemos,  nunca foi um maratonista. Sua especialidade é mesmo a curta distância. Entrega um produto excelente num curto prazo mas tem pouco fôlego. Infelizmente isso é fatal nos tempos de hoje. A indústria do entretenimento é feita ao mesmo tempo de repetição e novidade. Por isso é importante que o mesmo produto seja estendido à exaustão para maximizar o lucro. Aí é que ele se embanana. Seja em Felicity ou mesmo em Lost, e agora vemos isso no trailer do próximo Star Trek, ele claramente perde o interesse no meio do caminho. As histórias se perdem, ganham contornos bizarros, e  simplesmente ofendem aqueles que foram cativados por elas em seus inícios.

Não sei a razão disso. Talvez seja uma revolta inconsciente de um artista realmente artesanal. Talvez seja o cansaço de continuar trabalhando numa mesma coisa. Talvez ele não tenha força para lutar contra os interesses das companhias e ceda onde não deveria. Talvez ele simplesmente tenha baixa capacidade de concentração. Não sei. O que realmente me preocupa não é o que verei em poucas horas no cinema. Meu maior medo é me apaixonar por novos personagens, amar ainda mais os antigos, e ver tudo ir por água abaixo em dois anos.

Acha que estou exagerando? Reflita sobre os links abaixo e me responda: isso não é o trabalho de um cara que simplesmente deixou pra lá?

How lost should have ended

How Felicity lost its shit

Não espanta que a música tema do trailer de Star Trek seja SABOTAGE.

Como você escolhe um livro?

No meio do horário do almoço, em mais uma visita a comatosa Leonardo da Vinci, um amigo do trabalho, involuntariamente me acompanhando à loja, me lançou essa pergunta. Fiquei em silêncio, chocado com a dúvida. Sem saber o que dizer, retruquei:

– Como assim?
– Como você escolhe um livro? – ele suspirou e deu um meio giro apontando as estantes, agora, semi-vazias da loja.

Ficou claro para mim que para o meu amigo a pergunta era óbvia e, portanto, merecia uma resposta tal qual. O que ele não sabia é que a pergunta não era de maneira alguma óbvia e, portanto, podia ter um leque quase infinito de respostas. Afinal, antes de perguntar o como, para chegarmos a o que escolher, é preciso saber por que você quer escolher um livro.

Escolher um livro, como escolher qualquer coisa, pode ter um sem número de motivações. Você pode escolher um livro para presentear alguém; para atacar alguém na forma de um presente, como um cavalo de troia de papel; para se mostrar mais inteligente do que realmente é; para fingir a humildade que não tem; para buscar uma informação específica; para ser surpreendido com algo que não conhece; para confirmar aquilo que já sabe; e até para se sentir ofendido. E para cada motivação há um método, um como, especialmente adequado.

Por exemplo, a escolha direcionada em busca de informação quase nunca requer diversas visitas a lojas físicas. Numa simples busca na internet, achou o preço mais barato, o frete mais rápido, e pimba, tudo resolvido. Querer ser surpreendido é diferente. Esse caso requer paciência. É preciso contar com a sorte e caminhar pela ruas em busca de lojas que não conhece e se permitir ser seduzido por capas e evitar a todo custo qualquer contato com o conteúdo da obra. Escolher um livro é quase como decidir ter um filho. As maneiras são tão diferentes  quanto escolher esperma para inseminação artificial e esperar o amor da sua vida para tentar a concepção.

E quando você, como eu, trabalhou com livros, a situação piora. Nós, livreiros, da ativa ou em recuperação, fomos infectados pelas mais diversas e estranhas motivações  contraídas dos clientes que tivemos. Tenho livros, por exemplo, que foram lidos completamente nas livrarias e só comprados anos depois como lembranças de uma época. Tenho livros que nunca li, escolhidos pelas dedicatórias em seu interior. Tenho livros comprados pelo ódio que tenho ao autor ou por respeito a pessoas que, por mais que admire, sei que escrevem mal. Livros que escolhi na estante de amigos, pedi emprestado e, sob a cumplicidade das vítimas, nunca devolvi. Tenho livros que são espelhos, escolhidos quando buscava afirmação. Tenho livros que são portais para outros mundos, quando queria fugir. E livros que são auto sabotagem para testar minha resolução ou provocar o meu fracasso.

Em alguns casos, para encontrar o que procuro, preciso ler a contra capa. Em outros é necessária uma grande pesquisa sobre a obra e o autor antes mesmo de colocar o livro nas mãos. Em certos casos, o abandono na estante é o fator decisivo. Em outros, encontrar algo escondido que não deveria ser encontrado é o que faz a diferença. Em alguns, a capa basta. Em outros, a falta de capa é que decide. Fatores demais. Respostas demais.

– Então, como você escolhe livros?- o colega insistiu
– Não sei- enfim desisti e respondi honestamente.- Não sei.

Ele sorriu e entendeu:

– Imaginei.

Nesse dia não escolhemos nada. O que sempre é uma opção.

Eles não estavam lá

Anteontem, infelizmente, foi mais um dia do orgulho Nerd, ou dia da toalha, ou seja lá como chamam o dia que as lojas online escolheram para dar desconto em quadrinhos, ficção científica, fantasia e jogos em geral. No trabalho, graças aos newsletters das amazons da vida, todos me importunaram com essa história o dia inteiro:

– Viu que hoje é o dia dos NERDS?
– Tem promoção em várias lojas. Você tem o quê? Playstation ou XBOX?
– Não vai querer comprar nenhum jogo? Nem quadrinhos? Ih, deixou de ser Nerd?
– Você prefere Star Trek ou Star Wars? É aquele com o Spock? Ah, é o outro com o robozinho gay…
– Como é nome daquele lance mesmo? Caverna do Dragão? Sabia que no último episódio… Como assim não tem último episódio?

Acho ao mesmo tempo estranho e louvável que o Status Quo tente nos subornar com descontos para símbolos que nada significam para eles. Alguns acham que esse dia é um sinal inequívoco, assim como as séries de TV sobre cultura pop e as inúmeras e plastificadas adaptações de super heróis para o cinema, da vitória dos Nerds. Não é. Sério, não é. O Julio Matos quase conseguiu resumir toda a ambiguidade do meu sentimento sobre o dia de ontem num tweet:

O única coisa com a qual não concordo com o Julio é considerar que existe cultura Nerd. Não existe. Não existe grupo Nerd. Não existe ser Nerd. O tal ser Nerd é ser o outro. Sempre foi e sempre será um termo pejorativo. Ser Nerd é ser o estranho. Aquele que não faz parte do que é apreciado pelo Status Quo.

Parece até que o povo esqueceu de A Vingança dos Nerds. Na fraternidade Lambda Lambda Lamba, se não se lembram, além dos CDFs, tínhamos os imigrantes, os negros, os homossexuais. Todos aqueles que eram execrados pelo Status Quo. Uma fraternidade dos excluídos. Logo, chamar algo Nerd  de Mainstream é como propor a criação do partido anarquista brasileiro. Uma contradição em termos.

Nerds

Não somos apenas brancos, heterosexuais de classe média que gostam de tecnologia

O fato é que nós, os considerados Nerds, não fazemos parte de um grupo único. Portanto, não somos algo cooptável. Não podemos ser O Mainstream, pois o que nos define é estar do lado de fora. Somos os piratas que nunca quiseram ser almirantes. Sim, isso é possível. É difícil acreditar mas alguns seres humanos não querem o poder. Se faz parte da sua índole buscar aceitação externa, acho que você não está no lugar certo…

A maioria não entende, mas somos simplesmente pessoas com experiências incomuns. E valorizamos isso. Somos pessoas que não fizeram, nem fazem parte do que aí está. Por isso é simplesmente horrível que continuamente tentem reduzir nossas experiências a um dia, a piadas internas, a podcasts com mascates escandalosos, a produtos de consumo de massa, a uma (má) subliteratura comercial ou mesmo a uma  palavra de quatro letras que não significa nada. N-E-R-D.

Esse reducionismo institucional de uma imensa rede de relações e de um enorme grupo de culturas diversas e ricas a um só nome chega a ser criminoso. Mas é natural. Afinal é mais fácil agrupar tudo o que não é você num grupo só. Seja ele algo a ser temido ou a ser ridicularizado. O Status Quo precisa disso para justificar a sua união.

Mas, realmente, o que mais me incomoda nessa comercialização do “nerdismo” é a propriedade com que somos estereotipados.  Eles, que nunca estiveram na nossa situação, nunca tiveram e ainda não tem o direito de ao mesmo tempo definir o que acham que devemos ser e ignorar o que realmente somos. Eles, cá entre nós, nem ao menos sabem do que acham estar falando. Olham para pessoas diferentes, com diferentes experiências e visões de mundo e preferem tratar tudo isso como uma coisa só. Por isso, na minha opinião, o melhor é que se calem. O tal dia do Nerd, não se enganem, não é uma homenagem, mas uma afronta a tudo o que vivemos.

Afinal de contas, quem são eles para falar do que e de quem somos? Eles não estavam lá. Eles nunca estiveram.

Eles não estavam lá quando nossos pais, por conta das sucessivas crises econômicas, só podiam nos dar quadrinhos como presentes de Natal e nós adorávamos. Eles não estavam lá quando os X-MEN passaram da RGE para a Abril e a Tempestade deixou de ser chamada de Centelha. Eles não estavam lá quando a Globo começou a publicar Akira, Sandman e Moonshadow, contribuindo com a nossa maturidade emocional. Eles não estavam lá quando visitávamos compulsivamente a EBAL durante seu longo processo de falência buscando as edições em tamanho gigante do Flash com os Novos Deuses e do Super Homem contra o Muhammad Ali. Eles não estavam lá na abertura da primeira Bienal de Quadrinhos maravilhados com o Horus de Bilal dominando todo o salão principal da Casa França Brasil. Eles não estavam lá.

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Esse foi em Portugal, mas dá pra ter uma idéia

Eles não estavam lá quando descobrimos Isaac Asimov. Não estavam lá naquele verão em que a Biblioteca Machado de Assis não tinha Tolkien, Clarke, Howard ou Lovecraft suficientes para saciar a nossa fome de mundos imaginários. Eles não estavam lá quando encontramos uma pilha de livros da coleção argonauta num sebo infecto no fim de Ipanema. Eles não estavam lá vasculhando os catálogos do Círculo do Livro em busca de Bukowski, Kerouac e Burroughs. Eles não estavam lá quando lemos Valis, Os Clãs da Lua Alfa, O Homem do Castelo Alto e nos perguntamos junto com Philip K. Dick até que ponto a nossa realidade é real. Eles não estavam lá.

círculo do livro

O verdadeiro prêmio era ler

Eles não estavam lá quando fizemos nossa primeira ficha de D&D (um elfo, claro); nem quando tolamente colocamos a cabeça numa fresta de porta entreaberta só para sermos decapitados por um troglodita escondido. Eles não estavam lá quando fazíamos versões desses jogos por não termos acesso aos originais; quando usávamos peças Bingo para jogar porque não tínhamos dados de vinte, oito, dez ou doze faces; nem quando passávamos os fins de semana no escritório dos nossos pais tirando xerox dos jogos que alugávamos no Além da Imaginação em Niterói. Eles não estavam lá quando lançaram a segunda, a terceira, a quarta (AAARGH!), nem a quinta edições. Eles não sabem nem do que estamos falando quando discutimos sem conclusão possível sobre qual delas é a melhor. Eles não estavam lá.

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O desenho foi baseado no jogo e não o contrário!

Eles não estavam lá quando passávamos meia hora carregando um jogo de uma fita cassete para um TK 85. Eles não estavam lá sentados em salas de espera de escritórios esquisitos no centro da cidade para comprar disquettes de 5″ 1/4 com jogos para nossos MSX. Eles não estavam lá quando carregávamos monitores de cá pra lá para jogarmos Wolfeinsten à cores. Eles não estavam lá atropelando pessoas em versões piratas do Carmaggedon. Eles não estavam lá esperando 12 horas para o DC Universe instalar. Eles não estavam lá quando compramos o OUYA com o pretexto de apoiar o software livre. Eles não estavam lá.

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Jogar é simbolizar

Eles não estavam lá quando fazíamos dever de casa extra sem esperar recompensas. Eles não estavam lá quando criamos um jogo de tabuleiro sobre a guerra do Vietnam para a aula de história contemporânea. Eles não estavam lá apanhando de metade da turma por sugerir ingenuamente que a prova de Cultura Clássica fosse baseada num texto em francês arcaico mencionado na segunda edição do Advanced Dungeons & Dragons. Eles não estavam lá na biblioteca do colégio durante as férias esperando os nossos amigos que estavam em recuperação para jogar RPG. Eles não estavam lá quando o professor de geometria nos deixou fascinados com o triângulo de Sierpinski e nos estimulou a ler o livro do Benoit Mandrelbrot (que também tinha a ver com o Watchmen). Eles não estavam lá.

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Meias dimensões e teoria do caos antes do café da manhã

Eles não estavam lá tentando se conectar à Compuserve e à Illuminati Online com nossos modems de 2400 bauds. Eles não estavam lá trocando idéias com o Hiro na área de RPG da BBS da CentroIn. Eles não estavam lá quando a nossa melhor fonte de links e sites eram revistas importadas encontradas nas livrarias dos aeroportos. Eles não estavam lá gerenciando fóruns de discussão sobre RPG ou escrevendo resenhas e artigos para a Jogos.com.br antes do estouro da primeira bolha. Eles não estavam lá no Napster, Geocities,  Blogspot, Reader, nem no Wave. Eles não estavam lá apagando as luzes de nossos sites contra SOPA e PIPA. Eles não estavam lá.

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Você não conhece o Hiro? Não acredito!

Eles não estavam lá carregando mesas e cadeiras pela UERJ para realizar a RPG RIO. Não estavam mestrando Teenagers from Outer Space para quarenta pessoas ao mesmo tempo. Eles não estavam em ônibus indo para São Paulo, Minas, e outras cidades do Brasil para participar de feiras, convenções de RPG, comprar fanzines e quadrinhos independentes. Eles não estavam lá participando da Quero Jogar RPG, testando jogos de tabuleiro ou criando-os nos desafios do Faça Você Mesmo e do Game Chef. Eles não estavam lá. Não estavam mesmo. E nunca irão estar.

rpgrio

Sim, eu fui e ajudei a organizar

Por isso, eles não podem falar de quem somos. Nem decidir quando é o nosso dia. Eles não podem continuar nos chamando de Lambda, Lambda, Lambda, Poindexter, Urkel, Cú de Ferro, Dark, Punk. Gótico, Geek, Nerd, Estranho, Whisky-zito,Visconde de Sabugosa, Mestre dos Magos ou Sheldon Cooper em troca de descontos em tralhas, que, na real, não precisamos. Eles não podem usar um termo pejorativo como uma piada, uma brincadeira entre amigos. Algo que, pelo que me lembre, nunca fomos. A pergunta que fica é: quando o insulto destruidor se tornou apenas uma maneira engraçadinha e inocente de referência? E, pior, quando aceitamos isso assim com um sorriso nos lábios? Me perdoem, nesse ponto, tenho que concordar com o Giltônio:

giltonio

O pior é que essa multidão querendo carregar uma bandeira supostamente em nosso(?) nome é formada apenas por Jocks consumidores de cultura pop ruim. Gente que comprou a versão resumida de Vingadores, e de tudo mais que é possível encaixar em duas horas e pouca de audiovisual; gente que se acha dono de Mad Max porque gosta de citar Cúpula do Trovão e odeia que a Furiosa seja a verdadeira protagonista do novo filme; gente que espalha ódio em fóruns, redes sociais e caixas de comentários pelo simples prazer de humilhar o outro; gente que ofende mulheres, homossexuais, cosplayers, furries, e todos que forem diferentes deles por se acharem donos de um hobby ou da Internet. Gente que não domina assunto algum, mas ao mesmo tempo se considera dono de tudo. Em resumo, um bando de idiotas.

Enfim, nada mudou. Os Nerds podem ter se vingado no filme mas o mundo real, esse, não mudou. O mundo sempre foi dos Jocks. A única diferença agora é que eles citam o Mochileiro das Galáxias, Senhor dos Anéis e Homem Aranha, mas continuam rindo de nós. Abertamente. Com a nossa anuência. Na nossa época éramos inclusivos. Muito me dói perceber que nossos hobbies foram dominados e transformados em ferramentas de opressão. Gente se dizendo parte de coisas que realmente não ama para exercer fraternidades de terror. A nossa “cultura” mencionada pelo Julio, se existisse, não foi oficializada ou aceita, mas reduzida e ridicularizada. Se transformou em mais uma ferramenta de ódio. Por isso, não se engane, nós, os verdadeiros excluídos, continuamos do lado de fora. Os “patrões” apenas se apropriaram de alguns dos nossos brinquedos.

Nesse dia da Toalha, jogamos a nossa.

Os bons selvagens digitais

Quase toda semana, aparece por aí uma matéria exaltando a sabedoria dos nativos digitais. Colocamos aqueles nascidos pós ano 2000 num pedestal e consideramos que, como bons selvagens digitais d’aprés Rosseau, eles nasceram não só com o entendimento técnico como também com o aparato ético necessário para lidar com a tecnologia.

Não caiam nessa lorota. Isso é o mesmo que considerar que o povo que nasceu pós revolução sexual é aberto e respeita a pluralidade ou que os nascidos depois do fim da ditadura no Brasil são democratas de carteirinha. Muito pelo contrário. É só ver essa galera nova reprimida e careta pra perceber que certos movimentos normalmente geram o efeito oposto.

Por isso, vamos parar com essa postura. Isso não só nos levará a receber conselhos idiotas de ingênuos úteis como põe uma carga enorme nas costas de quem ainda não tem a noção de como lidar com isso. Além disso, não esqueçam: bom selvagem não existe. Hobbes já sabia disso.