Arquivo do Autor: Lisandro Gaertner

Sobre Lisandro Gaertner

Escritor, roteirista, game designer e especialista em aprendizagem. Mais informações na BIO.

A Odisséia Carioca

Assim como os londrinos anseiam pelos raros dias de sol nos quais poderão se desnudar nos parques e se deixar banhar pelos seus raios, a maioria dos cariocas anseia pelo frio. O meu primeiro dia não quente após a minha volta à cidade foi ontem.

A chuva varou a noite e deixou o clima ameno pela manhã. Uma heresia para o panteão dos deuses cariocas só preocupados com sol, mar, praia, chopp e futvolei. Uma benção para um herético como eu. Graças ao alívio climático, eu podia botar em ação o meu plano de ir ao trabalho de bicicleta. Continue lendo

There and Back Again

Giro a chave e abro a porta. Ela range e emperra. Minha mão resvala num parafuso solto na fechadura e me corta. Sem sangue. Entro na casa. Ela, cheia de caixas de papelão fechadas. Retrato da bagagem física e emocional que carrego pela vida. Eu, cheio de malas. Retrato do apego às poucas realizações e vícios que consegui manter.

Jogamos as malas no parco espaço vazio entre as caixas e começamos a inspeção. Nenhuma casa, por mais que a visitemos antes da mudança, parece a mesma depois que você se mudou. Uma surpresa aqui, outra alí, mas, aparentemente, iremos conseguir viver lá. Quer dizer, aqui. O antigo aqui agora é lá. Estamos de Volta de Novo. Antes de qualquer coisa, uma olhada pela janela para ver se o mar ainda está no seu lugar. Ufa, está!

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Ah, mar! Ô, mar!

Deixamos as malas e saímos pelas ruas para ver o quanto da nossa vida mudou. Ou melhor, o quanto do bairro mudou depois que a nossa vida mudou ao deixarmos a cidade quatro anos atrás. Visitamos o velho botequim. Os mesmos clientes, os mesmos funcionários. Todos estamos mais velhos, mais gordos, mas, estranhamente, mais tranquilos. Algumas lojas nunca mudam e somos saudados por pessoas que ainda lembram de nós. Mesmo sem saber exatamente de onde ou de quando. Algumas, lojas e pessoas, sumiram como se nunca houvessem existido. Questionamos a nossa própria existência nesses últimos quatro anos. Será que nesse período nunca existimos para Copacabana?

Cada esquina, cada rua, cada banca de jornal é um marco de lembranças, cheias de significados vazios, criadas por corações saudosos. Somos memórias ambulantes, esperando um momento fatal quando seremos definitivamente esquecidos. Para nós, fazemos um passeio de resgate pelo passado e recebemos mais um aviso da nossa mortalidade. Para nossa filha, tudo é novidade e vida. Anos de distância separam nossas motivações e destinos, mas Copacabana une nossas experiências.

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Até o Bar Vedete é novidade.

Em busca de consolo, nos voltamos à praia e ao mar, os únicos espaços imutáveis no bairro. Nossa filha, boa mineira como é, enfrenta a água congelante para ter o tão esperado encontro com o azul infinito desse marzão. Como diria Tales de Mileto: tudo água. Como diria o 14 bis: Foi assim / Como ver o mar (…) Não tive a intenção / De me apaixonar.

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Mineiros e o mar, como opostos, se atraem.

Refrescados pela balsâmica água salgada de Copacabana, tomamos o calçadão para voltar ao nosso novo lar. De repente, um encontro fortuito com um conterrâneo da nossa pequena. Quieto, tranquilo, como muitos mineiros, esse ilustre exilado nunca põe os pés na areia apesar do enorme amor que tem pelo mar. Nossa filha não entende essa opção. Talvez algo da nossa carioquice lhe tenha sido passado pelo DNA.

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“Ô, seu Carlos, vamos deixar de mineirice e curtir o mar?”

Quase chegando ao nosso prédio, a fome nos impede de continuar. Paramos numa casa de sucos. Coisa que, por mais que se copie por aí, não existe em lugar algum como as daqui. No balcão aquecido, uma pizza carioca. Meio mozzarella, meio calabresa. Os únicos sabores que fazem sentido. Massa grossa e fofa. Queijo de má qualidade e borrachudo. Orégano? Sim, por favor. Em excesso. Um clássico. Pedimos uma fatia e um copo de mate. A cobrimos de ketchup e comemos dividindo os pedaços entre nós três. O sabor de infância não deixa dúvidas: finalmente voltamos pra casa.

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Yes, we Ket-Chup!

Saciados, voltamos pro apartamento. Na janela, aproveitando a vista enviesada do mar, penso em Bilbo. O que será que ele sentiu ao voltar ao condado depois de todas as suas aventuras. É claro que ele perdeu sua respeitabilidade, mas será que a riqueza e a sabedoria compensaram?

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Uma pitada depois de ajudar a matar o dragão

Ao contrário de Bilbo não consegui deter Smaug. Ele ainda governa a montanha solitária na minha terra média. Mas fico feliz de ter feito o que podia para livrar os anões e a cidade do lago de seu terrível domínio. Ainda acho que falta pouco para que Bard finalmente apareça e crave a flecha fatal na besta. Talvez, eu tenha apenas abandonado a aventura, um pouco mais rico e um pouco mais sábio, antes do seu fim. Talvez ainda haja aventura a rolar.

Mesmo se houver, não é mais minha aventura. Agora é hora de, como fez Bilbo, descansar. Escrever minhas memórias. Compartilhar a sabedoria e a riqueza que essa aventura confusa e inesperada me trouxe. Mas nem tudo são flores. Toda aventura lança sobre o aventureiro uma pequena maldição. Aturdido, olho para a minha filha e penso se ela terá como Frodo a força para carregar o Um Anel que eu trouxe à reboque nessa busca.

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“Deixa de preocupação, pai. Eu consigo me virar.”

Com essa charmozice mineiroca, tenho certeza que ela não terá grandes problemas.

Dorothy tem razão: “Não há lugar como o lar”.

Meu problema com essa eleição

Acompanhei essa eleição com muita atenção. Mesmo sabendo que não iria votar, quis ler e buscar por trás da cortina de fumaça da propaganda eleitoral por que diabos estamos lutando. É, lutando. Nas redes sociais, nas mesas de bar, nas festas de criança, nos restaurantes a quilo no intervalo de almoço do trabalho; estamos lutando. Ferozmente. Os ânimos, ninguém pode negar, estão elevados e há agressividade em cada vírgula não pronunciada. Essa eleição, mais do que qualquer outra que vivenciei, parece expor uma fratura na nossa sociedade. E ela vai muito além do bipartidarismo fake PT-PSDB. Se ouvirmos apenas as vozes mais radicais de ambos os lados, como uma grande generalização, óbvio, podemos considerar esse conflito político(?) como uma grande luta de ratos famintos.

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Por que os ratos lutam?

De um lado os ratos que apoiam o PT pois consideram que os ratos da classe média/alta(?), para manter seus benefícios e sua upper hand, não querem apoiar os ratos mais pobres a subir de vida, aumentar sua capacidade de consumo e melhorar seu nível educacional. Para eles é uma luta para equalizar os competidores.

Do outro, os ratos que apoiam o PSDB. Esses consideram que os ratos mais pobres estão tomando a parte que lhes é devida como verdadeiros(?) produtores de riquezas. Os programas assistenciais devem ser reduzidos, modificados ou abolidos para focar em melhorar as condições de produção e só assim, por mérito próprio, os ratos mais pobres terão condições reais e justas de competir. Para eles é uma luta para equalizar o ambiente de competição.

Se os argumentos de ambos os lados forem expressos de forma sensata e sem radicalismos, não é difícil concordar com as duas vias. As razões de todos são válidas. Afinal, como bem dizia um grande amigo meu, todo mundo tem razão: sua própria razão.

Dado que ambos os caminhos são adequados, a discussão dessa eleição seria sobre qual deles é mais adequado para o ATUAL contexto. O que é melhor? Capitalizar os blue collar ou dar mais condições de investimento para os white collar. Sim, se formos pensar de uma maneira bem industrial, o conflito que se estabelece na manufatura Brasil é entre os operários e os executivos. Quem deve ser priorizado e quem deve ser preterido nesse momento para o bem coletivo?

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Um conflito antigo e eterno ao mesmo tempo

Infelizmente não é esse o tom da conversa. Aparentemente, cada grupo de ratos parece supor que o outro quer a sua extinção total. Ao invés de discutirmos acordos, propostas e estratégias para a convivência desses grupos nesse ambiente desigual, estamos defendendo com unhas, dentes, tweets e posts no facebook a nossa própria sobrevivência.

Apesar de compreender essa rixa, estranho muito que uma terceira parte pareça estar fora do conflito. É, onde estão os donos da fábrica nessa discussão?

Enquanto os trabalhadores (operários e executivos) lutam, se tornando vigias e torturadores uns dos outros, os donos das fábricas estão só esperando qual lado(?) vai ganhar para influenciá-lo e dobrar suas propostas ao seu favor. No final dessa luta, os dois lados perdem, mesmo que haja pequenos avanços para fazer valer a ilusão de que foi feita uma escolha.

Por isso, antes de discutir com seu amigo, colega, inimigo ou mesmo com um completo estranho, lembre, vocês dois estão do mesmo lado e toda essa eleição não passou de uma bela distração e de uma terrível maneira de cansar os ratos, nos colocando para lutar ao invés de atacarmos àqueles que realmente nos oprimem. Dessa maneira, quando e se, um dia, todos nós, os ratos, resolvermos lutar contra os verdadeiros opressores, estaremos cansados o suficiente para nos tornar presa fácil dos gatos que eles tão bem sabem usar.

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Nessa versão de Tom & Jerry, Tom leva vantagem

Enfim, meu grande problema com essa eleição é que ela não tem nada de mudança de política. Nem pra mudar mais do mesmo, nem pra mudar o que há. É apenas uma pequena discussão de como manter viva essa arena de competição fictícia. Ambos os lados apoiam a mesma cartilha: dinheiro, consumo, culto à personalidade, ignorância, violência, repressão, poder e competição. Como na Fazenda dos Animais, estamos apenas escolhendo quais porcos irão manter escrito na parede do nosso estábulo o mandamento que até hoje domina as nossas relações: “4 pernas bom, 2 pernas melhor”.

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Todos somos iguais, mas..

Por que não voto em Aécio…

Não votarei em Aécio, nem em Dilma. Estou fora do meu domicílio eleitoral. Mas, apesar de admirar o plano real como a maior e melhor aplicação do condicionamento clássico de Pavlov já perpetrado numa população, confesso que tenho um certo problema com o PSDB. Talvez não com o PSDB, mas especialmente com quem o apoia. Atualmente.

O PSDB clássico, pra quem não lembra, surgiu quando o PMDB foi invadido pelos exilados do PDS. O povo do PDS sentiu que não dava mais pra ditadura e capitaneados por Sarney, Maciel e afins foram pro PMDB que precisava de uma força dos coronéis pra sustentar o governo civil. O PMDB virou o que virou e a ala do PMDB tradicional formou o PSDB. A princípio era pra ser um partido pragmático, voltado pra política como ciência. Claro que isso escondia a ideologia tecnocrata que foi necessária para arrumar a economia nos anos 90 e, ninguém pode negar, fez o seu trabalho.

Não sei quando, mas provavelmente quando o Millôr abandonou as páginas da Veja ou quando o Paulo Francis morreu, um grupo muito doido começou a se alinhar com o PSDB. Alinhar é maneira de dizer; começou a se apropriar dos sucessos e posturas da política ecônomica para introduzir a reboque uma agenda conservadora pacas. Logo no PSDB, partido do FHC, o Eduardo Jorge Sorbonne Roots. Aí começou a aparecer um cara do Opus Dei aqui, um Reinaldo Azevedo dalí e, algumas edições da Veja depois, o PSDB ganhou a imagem que tem hoje.

Os originais do PSDB não entraram nessa discussão. Se você for prestar bem atenção no discurso do partido, ele é um discurso puramente econômico. O resto, pra esse grupão de economistas da PUC, é o resto. Além disso, nesse mundo de cada pessoa, um voto; qualquer apoio é bem vindo. Contudo essa omissão ideológica me parece deveras perigosa. Especialmente pois esse grupo de leitores da Veja é antiintelectualista; se acha parte de uma nobreza corporativa mas, cá entre nós, não aguentaria 2 rounds da meritocracia de mercado capitalista que dizem defender; e tem uma agenda retrógrada a beça no que se refere a direitos sociais.

Por mais que me alinhe com uma política econômica mais liberal, não posso votar num pessoal que deixa qualquer um entrar na sua festa. Sabe como é? Fui criado num colégio beneditino e já dizia o sábio, e malandro, São Bento: dize-me com quem andas que te direi quem és. Eu? Eu não sou um deles nem um desses. Graças a Deus.

Por que não voto em Dilma…

Não votarei em Dilma, nem em Aécio. Estou fora do meu domicílio eleitoral. Mas me divirto quando leio as justificativas de voto das pseudo-celebridades da cultura brasileira. Personalidades as chamam, como se nós, pobres mortais, não as tivéssemos. A ingenuidade das declarações de ambos os lados realmente é tocante e mostra como estamos carentes de intelectuais de fato.

A última que li foi especialmente interessante pois convivi por quase um ano com um dos depoentes. Lembro de uma vez em que estávamos andando na Nossa Senhora de Copabana quando ele me parou muito preocupado:

– Tem um real?
– Tenho- respondi.

Tirei o real (em nota, já faz tempo isso) do bolso, lhe entreguei e num piscar de olhos o vi repassá-lo a um mendigo que passava e, pasmem, não tinha pedido nada. O mendigo ficou feliz. O depoente sorria como se tivesse salvo uma vida. Só eu não estava satisfeito. Na hora, pensei em questionar por que ele estava fazendo caridade com o meu dinheiro, mas, pelo bem das relações que tinha com ele e demais envolvidos, deixei pra lá. Acreditei que ele iria me pagar no futuro. Ledo engano. Nunca me pagou. Assim como a mãe dele fez uma incrível dívida com meu telefone e nem fez menção de pagar. A caridade (com o dinheiro alheio e em benefício próprio) era, depois fiquei sabendo, marca de família.

Descobri na reportagem que ele votará em Dilma. Taí, além da distância geográfica, tenho mais uma razão pra não votar nela. Pode crer, eles devem ter o mesmo estilo de fazer caridade. Disso já estou cheio. E sem dinheiro pra pagar.

Vamos parar com essa ironia toda?

Uma das coisas que realmente me deixa fulo da vida é ver algumas palavras sendo usadas no sentido “errado”. Não que eu me incomode com a falta de capacidade de comunicação das pessoas, ache maldade da parte delas ou considere a ignorância algo fatal. Minto, eu me incomodo e muito. Mas o que mais me incomoda nessa situação é o momento novilíngua onde as palavras vão perdendo o significado e qualquer coisa significa tudo ou nada. Ao mesmo tempo. Ou seja, eu falo qualquer coisa e a sua obrigação é me entender porque… bom, você sabe como é.

Ironia é uma das palavras que mais sofre com isso. Que eu me lembre, ironia sempre foi uma declaração falsa que procura expor uma verdade às vezes com propósitos cômicos. É, pelo menos a wikipedia concorda comigo.

Contudo, o que a gente mais vê é ironia sendo usada com o sentido de coincidência cômica e cósmica que presume humor por parte da “vida” ou do destino. Um exemplo: o tweet do Jason Alexander.

Isso, meu caro George, não é ironia, tá mais pra Sincronicidade.

Não sei exatamente quando a Ironia virou essa mixórdia de sentidos, mas culpo muito a Alanis Morissete e sua música Ironic onde todas as situações que ela conta e canta não tem nada de irônico. São apenas situações onde algo de bom acontece e algo ruim está atrelado a isso gerando uma descoberta significativa.

Nesse caso, nem sincronicidade serve. Tá mais pra Zemblanity, palavra que infelizmente ainda não tem tradução.

Pensando bem, talvez a intenção dela não tenha sido má. Talvez ela queria dizer que a vida estava agindo com ironia, mas, cá entre nós, isso não passa de outra tentativa de tentarmos entender o outro desconsiderando as palavras que ele usa pra se comunicar. Ou seja, porque os outros são preguiçosos como emissores, sempre seremos indulgentes como receptores?

Não, me desculpe, eu me recuso. Acho importante preservar a nossa língua, seja ela qual for, e, quando necessário, devemos, sim, criar palavras que venham a expressar novos conceitos que ainda não são atendidos pelos atuais termos e…

Ah, a quem estou tentando enganar? É inútil. As pessoas vão continuar falando qualquer coisa e nós vamos fingir entender para manter essa ilusão de comunicação. Mas por que devemos nos preocupar? O mais importante é preservar a sensação de comunidade e união entre as pessoas sejam quais forem as palavras que estivermos usando. Enfim, não importa o que eu diga, nem o que você compreenda desde que a gente se entenda, né?

O bom é que vemos como isso tem dado certo na história humana. Mesmo sem compreender o que estamos falando, vivemos nesse idílico mundo pacífico e colaborativo sem crime, guerra ou opressão.

Sim, a propósito, isso foi uma ironia. Sacou?