Arquivo da categoria: Destaque

Os fantasmas da sala

Entrei jovem
escondido
Minha mãe não podia nem sonhar que tinha ido lá
Fui recebido por uma senhora idosa
aparentemente mal intencionada
que me deu um
doce
e passou a
mão
na minha cabeça
disfarçando o ódio que tinha de
mim

Lá voltei
um jovem
adulto
Ia visitar meu pai
adoecido
após sua operação
A mesma senhora estava lá mas
não me recebia mais
com doces
nem
afagos na
cabeça
Melhor
Eu preferia a sinceridade

Na próxima vez que estive lá
precisei arrombar a porta
para poder
entrar
A senhora não estava mais

Nem meu
pai
Ambos mortos
Mas seus sinais
e seus fantasmas
estavam espalhados pela casa
na forma de
boletos
e dos livros que eu amava
e ela
odiava
pois a faziam
se lembrar de
mim

Hoje me sento nessa sala
e penso
em como esse lugar é meu
e não é
Minha filha cresce por essa sala e dou a ela
um destino melhor
do que a senhora dos doces
sequer poderia
imaginar

Sonho em sair dessa sala
da qual sou um prisioneiro
fantasma
desde a primeira vez que nela
entrei
Mas
SIM
consigo me ver velho
recebendo a minha filha
no mesmo lugar que meu pai me
recebia
Sem velhas doces
ou amarguras
Com a certeza que conquistei esse espaço
que sempre foi
meu

Como ser grande

Se vejo uma nuvem
devo voar
Se vejo uma tela
devo pintar
Se vejo uma história
devo contar
Se vejo um prato
devo provar
Se vejo um ouvido
devo cantar
Se vejo uma roda
devo dançar
Se vejo uma piscina
devo nadar
Se vejo uma vida
devo amar

Se novo
luto?
Se vejo
devo?
Se velho
cedo?
SIM
Mas não tão cedo

Meu vizinho, Arnaldo

Foi o porteiro quem me alertou do novo vizinho:

– Tá morando do lado de celebridade agora…
– Sério? É atriz? Modelo?
– Não, é homem.
– Ator? Jogador de futebol?
– Melhor você mesmo ver…

Cheguei em casa, e, para não parecer tão afobado, esperei até umas 8 da noite para tocar a campainha do vizinho.

JÁ VAI! – uma voz tenebrosa e sinistra soou do outro lado da porta.

A voz foi um prenúncio muito leve do que me esperava. A porta abriu e lá estava ele: o Major Pavor, o super “herói” da ditadura militar. Dois metros e meio de altura; o rosto putrefato, decorrente da experiência genética que lhe deu superforça e o poder de voo; o uniforme verde e amarelo que foi fundido ao seu corpo para lhe dar invulnerabilidade; acusado de milhares de crimes políticos, dos quais só escapou de ser preso por conta da lei da Anistia; e, pelo o que eu lembrava, tinha sumido no interior do Brasil arrependido de seu passado. Eu esperava que essa parte final fosse verdade.

SIM?
– Oi, er… tudo bem? Eu sou seu vizinho de porta e vim aqui pra me…. ahm…. apresentar. Tudo bem? Seja bem vindo. Bom, se precisar de alguma coisa, você sabe… ahm, é só avisar.
MUITO PRAZER– ele estendeu a mão enorme em minha direção.- PRA FALAR A VERDADE ACHO QUE VOCÊ PODE ME AJUDAR COM ALGO.
– Claro. O que posso fazer por você?

Ele me convidou pra entrar. A sua casa ainda estava cheia de caixas, mas já dava pra ter uma ideia da decoração meio hippie, meio krishnamurti.

AQUI– ele apontou para uma caixa marcada com um adesivo de frágil.- PRECISO PEGAR UM PORTA RETRATO NESSA CAIXA MAS ESTOU COM MEDO DE QUEBRAR TUDO AÍ DENTRO.
– Ok, deixa eu ver o que posso fazer.

Abri a caixa sem muito jeito, mas não quebrei nada. E do meio de folhas e folhas de plástico bolha tirei um porta retrato onde tinha uma foto do Major Pavor com o Betinho, sim, o irmão do Henfil, do Fome Zero.

Ele pegou o porta retrato com a ponta dos dedos e o colocou no rack da televisão.

– Você conheceu o Betinho?- tentei puxar assunto.
SIM. FUI VOLUNTÁRIO NO FOME ZERO. GRANDE SER HUMANO.
– É, eu imagino. Bom, então, foi um prazer. Qualquer coisa…
QUE ISSO. DEIXA EU TE RETRIBUIR. QUE TAL UMA CERVEJA?
– Bom, tá meio tarde…
NÃO ME FAZ ESSA DESFEITA. É UMA CERVEJINHA SÓ.
– Ok, se for uma só…

Não foi uma só. Só saí da casa do Major Pavor de madrugada, depois de ouvir toda a sua epopeia.

Apesar de ter o nome de Major Pavor, ele era um recruta que foi submetido a experiências coordenadas pelo Mengele, que vivia escondido no Brasil e protegido pelo governo militar. Sem muita perspectiva, confessou, fez muita coisa da qual hoje se arrepende. Com a Anistia, ele foi liberado de suas funções e, profundamente abalado pela sua consciência, foi morar numa comunidade hippie no interior de Minas. Lá começou a meditar e se tornou budista. Depois de 40 anos de reclusão voltou à cidade grande para ajudar a cuidar de uma tia nonagenária e fazer faculdade de serviço social. E, contando com as inúmeras cervejas que tomamos, isso terminava a sua história.

Quando fui pra casa, apertamos as mãos no corredor:

– Pô, Major Pavor, vou te dizer, realmente foi um prazer conhecer a tua história.
NÃO ME CHAMA ASSIM. JÁ DEIXEI ISSO NO PASSADO. MEU NOME É ARNALDO. ARNALDO.
– Blz, Arnaldo.

No dia seguinte, no botequim, o assunto era o Major Pavor. Um pessoal se dizia com medo da sua presença. Será que ainda era o reacionário que auxiliou o governo militar? Outro grupo queria se organizar para expulsá-lo do bairro. Onde já se viu dar guarida a um símbolo da opressão? Eu, como o tinha conhecido, me calei. Não sabia o que dizer. Realmente o que ele tinha feito fora imperdoável, mas ele me parecia ter mudado. Por mais que, concordo, ele não devia ter sido anistiado, até quando alguém deve pagar pelos seus crimes? Será que acreditamos de verdade que alguém pode se regenerar ou só dizemos isso da boca pra fora?

Enquanto os ânimos se exaltavam no botequim, de repente, precedido pelos seus ruidosos passos, o Major Pavor passou pela praça, com uma sacola de compras, indo em direção ao Hortifruti.

FALA, VIZINHO– ele acenou pra mim.
– Fala, Arnaldo- respondi.

O botequim todo se virou pra mim, assustado. Depois de um longo momento de espanto, alguém finalmente conseguiu quebrar o silêncio:

– Então, quer dizer que você conhece o Major Pavor?
– Não, quer dizer, eu conheço ele, mas o nome dele não é Major Pavor, é Arnaldo. É Arnaldo.

Adoção

– Onde você comprou esses gatos?
– Não comprei, adotei.
– Ah, tá.
– Porquê? Você não gosta de gatos?
– Acho que gosto, não sei, mas eu já tive cachorros.
– Mas de gatos? Você gosta?
– Não desgosto. Tem as coisas pra eles?
– Que coisas?
– Sei lá, pote pra água, comida, aquele lance pra eles fazerem xixi…
– Areia?
– Isso, areia.
– Tem, não. Tem que comprar.
– Deixa que eu vou lá.

30 minutos depois ele volta com tudo.

– Ó, tá aqui.
– Ai, que ótimo. Obrigada. Já, já, eu arrumo tudo.
– Não. Deixa que eu arrumo.
– Tá bom. Obrigada.

10 minutos depois tá tudo arrumado. Os gatos bebem, comem e fazem cocô.

– Cara, vou te falar. Até fiquei cansado.
– Sério?
– Sério. Vou dar uma deitada.
– Beleza.

Ele deita e em 5 minutos está roncando. Os gatos deitam em cima dele e ele nem se abala. Adoção finalizada.

A vassoura atrás da porta

Receber é uma arte. Expulsar também. E nisso meu pai era um mestre; na segunda arte, quero dizer.

Quando as visitas passavam do tempo que ele considerava regulamentar, ele se recolhia no quarto sem falar com ninguém. Algumas vezes, no caminho para a cama, depois de levar copos e pratos ruidosamente para a pia, ele varria a sala, esbarrando de propósito nos pés dos convidados, e depositava a vassoura atrás da porta, como mandava a superstição. Mas, para ele, isso nada tinha de místico, era apenas um sinal para que os convivas se ligassem, se levantassem e nos deixassem em paz.

Se mesmo assim eles não se tocassem, ele ia dormir. Ao invés de colocar o seu pijama, ele, nesses dias de festa, preferia dormir de cueca. Tentava tirar um pequeno cochilo e se as vozes dos convidados ou o som da música continuassem a incomodá-lo, ele ia tomar um copo de leite quente para tentar atrair o sono. No caminho da cozinha, passava de cueca pela sala como se estivesse sozinho em casa:

– Opa, não imaginava que vocês AINDA estivessem por aí- dizia, fingindo surpresa, e seguia para cozinha para esquentar o leite que o faria dormir.

Quando chegava nesse ponto, ninguém insistia em continuar na festa e todos partiam. Como disse, meu pai era um mestre.

Às vezes, quando caio na asneira de convidar alguém para a minha casa, vejo como herdei a intenção, mas não a técnica do meu pai.

Enquanto as pessoas tendem a se alimentar do contato humano, eu tendo a me exaurir. Depois das 10 da noite ou depois de 2 horas de interação, o que vier primeiro, sinto vontade de me recolher. Cá entre nós, já foi o suficiente. Depois desse tempo, em geral, as conversas se tornam mais altas, mais repetitivas e mais esquecíveis. Ou seja, não há nada que vamos falar hoje que não possa ser silenciado ou deixado para amanhã.

Nessa hora, se estou na rua ou numa casa alheia, eu simplesmente parto, sem avisar a ninguém. Algumas vezes, mesmo com pessoas à minha frente, eu simplesmente viro as costas e vou embora, sem dar nem tchau, o que, eu sei, é feio a beça.

Se o encontro é na minha casa, eu, ao contrário do meu pai, não tento expulsar ninguém. Eu simplesmente começo a agir como se estivesse sozinho. Coloco a TV numa série que estou assistindo; vou pro escritório trabalhar; abro um livro e fico lendo na sala; ou vou pro quarto, me deitar para assistir um VHS ou um DVD. Em geral, uns 10 minutos depois de entrar nesse modo, eu durmo e deixo a casa na mão dos convidados. Como tenho sono pesado, ao contrário do meu pai, não preciso de leite quente nem de passar de cueca na sala para ignorar as pessoas que insistem em socializar comigo.

Hoje em dia, em algum momento- não sei exatamente quando, afinal já estou dormindo-, o pessoal se liga e vai embora por conta própria. Quando eu era mais novo ainda tinha a surpresa de encontrar gente conversando na sala ou na cozinha quando eu acordava perto do amanhecer ou de esbarrar com alguns corpos esparramados pelo chão e pelos sofás com o sol já alto. Sei que pode parecer um abuso que se aproveitem da minha casa dessa forma, mas não tenho ninguém a culpar a não ser eu mesmo que, sabendo como sou, ainda me submeti a essa ideia idiota de que teria a habilidade e a arte de receber.

O fato, eu descobri, é que não existem visitas chatas, mas anfitriões relutantes. Então a culpa é toda nossa por insistir em fazer algo que não queríamos fazer desde o primeiro momento. Por isso, como os proverbiais filhos de Vinícius, agora eu sei, visitas, melhor não tê-las, mas, se não tê-las, a quem vamos expulsar para exercitar nossos vis instintos anti sociais?

AI DE TI, Copacabana – versão bicentenário da Independência

null

Foto: Marcos Serra Lima/g1

Desculpa, Rubem Braga.

1. AI DE TI, Copacabana, porque já deixaste claro que nem ligou que passou teu dia, e, pior, até fizeste a egípcia; porém não receberás de mim nem um áudio de whatsapp de lamentação.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, mas, em nome dos bons costumes, tiraram da tua fronte a socorredora coroa de sedução; e calaram as tuas belas risadas ébrias e vãs que ecoavam no doce seio da noite.

3. Já encheram teu mar de pranchas de SUP e de iates de luxo de uma parte e de outra parte, e turistas que não te amam tomaram o Leme e o Arpoador em busca de falsas representações do que nunca foste, e tu aplaudiste este sinal; estás perdida e cega no meio de tua ganância e de teu mal gosto.

4. Sem Leme, deixaste as viúvas e filhas de militares e burocratas de altos salários te governarem em comícios fascistas. Foste iníqua perante o povo faminto que amava tuas praias, e o 472, o 455 e o 457 mandarão sobre ti a multidão de suas hordas.

5. Grandes e decadentes são teus edifícios de cimento, alugados para o AirBnB, com visitantes mal vindos e sem noção que emporcalham teu mar; mas, como um cuspe no vento, seus abusos serão vingados.

6. E os ratos e pombos cruzarão em tuas ruas e darão cria a uma prole mutante que cobrirá tua face de bosta; e a Estação de Tratamento de Esgoto do Posto 5 lançará ondas de dejetos sobre ti num reciclar de karmas, até morder as rodas dos mototáxis nos sopés de teus morros; e todos os bailes funk se eternizarão como tinnitus em teus ouvidos.

7. E as baratas comerão seus viagras nas suas infinitas farmácias e lesmas insones infestarão tuas hamburguerias gourmet; e as dark kitchens empestearão tuas galerias, desde a Menescal até a Alaska.

8. Então quem pagará um só bitcoin pelo metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade a cripto moeda é só uma invenção de faraós que comandam templos neopentecostais dedicados a Mamon.

9. Ai daqueles que exploram os refugiados que dormem amontoados em tuas quitinetes, e não provam o vento do teu fim de tarde vindo do mar, ocupados demais para te servir através de aplicativos, e desconhecem que, segundo a lei do verão, a praia é para todos.

10. Ai daqueles que passam em seus carros de som, buzinando alto o nome de falsos Messias, pois não terão voz quando tomarem suas economias e propriedades em nome de Deus, da Pátria e da Família para combater um Comunismo irreal.

11. Tuas cam girls se estendem na areia e fazem lives para estrangeiros impotentes desejosos de amor e sol, e teus héteros top fazem da falta de empatia o exercício do seu machismo versão Joe Rogan.

12. Postai fotos e mandai áudios, mancebos e mocinhas de bem, e rebolai-vos na marcha para Jesus, porque vossos dias já passaram da validade, e tuas mentiras já conhecemos.

13. Por que pregais o ódio em vossos templos, eleitores da Besta Fera, e chutai as homenagens para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a hipocrisia da fé que fingem ter?

14. Antes de te extinguir, eu acabarei com a tua soberba— ai de ti, Copacabana! Os exércitos pagãos de teus morros descerão sambando sobre ti, e os canhões flácidos de teu próprio Forte se recusarão a te salvar, e broxarão; mas o chope sagrado das esquinas e botequins levará milênios para se limpar dos teus pecados de um só mandato.

15. E o Cervantes reabrirá, e os seus sanduíches enfim comerão as cabeças de homens de bem com patê e abacaxi; e os anúncios das e dos acompanhantes do bairro exporão os nomes de todos que passaram muitos anos nas colunas sociais, quando deviam estar atrás de grades por prolongar a escravidão.

16. Pois grande foi o teu desleixo, Copacabana, ao se entregar a velhos corruptos pregando a Ditadura em nome de Deus; já se fechou a Help e a Erótica, e fingiste ser esse um sinal de progresso e evolução. Pois a falta de cultura, de tesão e de humanidade te consumirão.

17. A rapina de teus policiais de aluguel e a libação de teus falsos homens de bem; e a ostentação dos fascistas do Posto Cinco, cujas cozinhas permanecem impecáveis graças à servidão de mil meninas miseráveis — tudo passará.

18. Pinta-te de verde e amarelo e coloca a tua camisa da seleção, e canta pela última vez o jingle em homenagem ao odioso demônio que tomou em nome de um Deus falso a Nação, mas a quem estou enganando? É tarde demais para qualquer canção; e que estremeça o teu corpo inchado de Whey Protein e anabolizantes, desde o Copa Leme Praia Clube até a Body Tech da Gomes Carneiro, porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Faz arminha com a mão pela última vez, Copacabana. Dessa traição não te recuperará. Ai de ti. Ai de nós.