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Não é você; sou eu, o comunista

Era batata. Sempre entre a quinta e a sexta cerveja, o espírito liberal na economia e conservador nos costumes, que possuiu seu corpo depois de uma desilusão amorosa, tomava controle. E não importava o assunto; futebol, novela, política, desenhos animados, tudo era justificativa para ele começar a desfiar o seu rosário do mal.

– Tá vendo só?- ele apontava algo que o desagradava.- Tá na cara que (insira posição política, orientação sexual, opinião artística) é influência de (comunismo, marxismo cultural, ideologia de gênero, organizações Globo, vereador de esquerda do Rio de Janeiro, ). O mundo está perdido. Perdido!

Eu discordava totalmente das suas opiniões. Primeiro porque eram basicamente preconceituosas, racistas, homofóbicas e reacionárias; segundo, pois eram burras ou simplesmente não faziam sentido. No início, por boa vontade, eu até tentava trazê-lo à razão, mas era inútil:

– O teu problema é que você lê demais- ele se defendia.- Todos esses conhecimentos de esquerda acabam te deixando mole e hippongo. Empatia é o caralho! O mundo é uma guerra. Uma Guerra!

Eu tentava relevar. Achava que era uma fase. Depois que a dor de cotovelo passasse e ele arrumasse uma nova namorada, as coisas iam melhorar. O tempo passou, ele eventualmente arrumou uma namorada, mas a doideira permaneceu e ele acabou terminando o relacionamento por conta das suas próprias fantasias políticas.

– Vê só se eu ia aceitar aquilo- ele contava a sua versão da separação.- Ela (escolha: votava no PSOL, lia Martha Medeiros, assistia novela da Globo, curtia Pablo Vitar). Isso não é pra mim. Eu preciso de uma mulher cristã. Cristã.

Dizia o homem que quase foi reprovado no catecismo.

Com o passar do tempo, como era impossível conviver com ele e eu não sabia se devia dar fim a uma amizade de quase 40 anos, comecei a me afastar. Ele chamava pra tomar cerveja na sexta, eu inventava um compromisso; dizia que ia passar no meu trabalho para a gente voltar juntos, eu ficava no escritório fingindo fazer serão; ele aparecia na porta do meu prédio… bom, nesse caso não conseguia me safar e acabava sendo obrigado a ouvir mais uma vez a sua cantilena protofascista.

– Eles querem acabar com o Brasil- ele profetizava.- Querem acabar com a propriedade privada, com a religião, com a nação. Querem nos tornar comunistas. Comunistas!

Numa última tentativa, busquei entender melhor a sua visão de mundo:

– Mas o que você quer dizer com isso?
– Como assim?- ele se espantou de eu ter reagido.
– O que seria esse tal comunismo?
– Ah, deixa eu te explicar. Primeiro todo mundo vai ser igual. Se você é mais competente que os outros, vai receber a mesma coisa. O preguiçoso e o sujeito bem sucedido, como eu, ganham o mesmo. Acabou a competitividade. Ninguém tem mais estímulo para ser mais produtivo. Totalmente igualitário. Igualitário!

Como considero a produtividade um mito tóxico e tenho certeza absoluta que se a humanidade fizesse menos viveria melhor, confesso que o começo me agradou.

– Continua. Continua.
– Vou continuar. Imagina só, viver num mundo que considere tudo válido. Todas as religiões e crenças têm o mesmo valor. Mas ao mesmo tempo considere que essas crenças não devem interferir na vida comunal. Todo mundo acredita no que quer, mas tem que viver em comunidade de forma secular. Um mundo sem Deus. Sem Deus!

Mais um ponto pro tal do Comunismo. Viver com pessoas que têm o direito de acreditar no que querem e sabem que aquilo é uma crença, e não uma realidade, é realmente tentador.

– E pra piorar,- ele se adiantou sem eu pedir- acabar com as nações. Todo o planeta, todo universo sob um só governo, uma só bandeira, desrespeitando as tradições locais e nacionais e ignorando as histórias e glórias das nações soberanas. Uma anarquia global. Global!

Essa me remeteu à ficção científica que lia na infância. Uma utopia, um mundo unido, sem guerras motivadas pela ambição de poucos ou justificadas pelas fantasias de destinos manifestos de países inventados. Um mundo igualitário, secular e global. Ele abriu os meus olhos:

– Sabe, cara,- eu declarei- acho que eu sou comunista.

Ele riu amarelo, meio fingindo que era brincadeira, percebeu que eu falava sério e mudou de assunto. Pela primeira vez em muito tempo, o espírito que possuía seu corpo se aquietou e pudemos ter uma conversa normal, entre seres humanos, e não entre estereótipos políticos da sociedade brasileira do século XXI.

Isso foi antes da pandemia e ele não mais me ligou. Nem eu o procurei. Vez ou outra ele me manda uma mensagem querendo chamar para uma aglomeração, mas eu recuso sem explicações e ele entende: sou comunista.

Não sei como será após a pandemia. Não sei se a amizade irá sobreviver ao meu comunismo ou se ele vai finalmente ter superado o coração partido e tirado essa mistura fatal de Paulo Guedes e Bolsonaro do seu coração. Se ele não mudar, pelo menos tá aí uma coisa que ele pode botar de verdade na conta do comunismo: o fim de uma amizade.

A última pizza carioca

O que o paulista(no) não entende é que a pizza carioca precisa ser ruim. E, por isso, ela é boa.

Em primeiro lugar, pizza carioca não é a primeira opção da noite. Pelo menos não cronologicamente. Não me lembro de ter começado uma noite por ela, mas não é uma situação totalmente impossível. Por outro lado, era certo que, quando a noite terminasse, mal, como sempre, a gente fechava os trabalhos com ela.

Pra comê-la tem várias opções, mas um lugar icônico que deixa saudades é o Cine Ópera, um lugar daqueles que não se faz mais. Um misto de restaurante, pé sujo e lanchonete que servia refeições um tanto quanto suspeitas em mesas na calçada ao mesmo tempo em que vendia salgados num balcão. Ao contrário das lanchonetes, eles serviam chopp e, ao contrário dos restaurantes, vendiam coxinhas e joelhos. Um saco de gatos anacrônico que, se ainda funcionasse, seria fechado pelos pseudo especialistas em marketing do SEBRAE.

O engraçado é que vivia cheio e não tinha nada demais. A vista da praia de Botafogo era até legal, o chopp nem fedia, nem cheirava, e a pizza era aquela massaroca carioca de pão macio e queijo mussarela com ketchup e calabresa. Mas a gente gostava, comia e pedia bis. E se a pizza estivesse difícil de descer, o chopp auxiliava a deslizar o pão pela goela.

Não era o lugar mais chique do mundo mas tinha lá a sua mística e ficava aberto até o sol nascer. O que a gente podia pedir mais?

O Cine Ópera, como a pizza carioca, surgia como um sinal de que era hora de encerrar a noite. Fim de madrugada, já tínhamos gasto quase tudo nas boates e bares de Ipanema e Leblon, ou jogado nossa dignidade fora nos inferninhos de Copacabana, e no ônibus da volta, derrotados, alguém avistava o Cine Ópera e convocava:

– Saideira no Ópera!

Sem pestanejar, o bando descia na praia de Botafogo pra comer aquela fatia gordurosa e massarocuda de calabreza com o(s) último(s) chopp(s). E era alí, mascando e molhando a pizza com cerveja que a gente fazia o nosso debriefing: falávamos das tristezas da noite e da falta de sentido da existência; tentávamos extrair alguma sabedoria dos nossos fracassos; e nos entorpecíamos o suficiente para conseguir ir a pé pra casa e dormir sem pensar na nossa falta de propósito. E para isso a pizza carioca era a companhia perfeita.

O que o paulista(no) precisa entender é que a pizza carioca não é simplesmente comida. Ser massuda, sem gosto e necessitar de litros de ketchup é uma forma divina de punir o carioca pelos fracassos que viveu na madrugada; é o ápice de uma noite ruim. E, nisso, ela é insuperável e perfeita.

Mas, não podemos esquecer, a pizza carioca pra ser realmente aproveitada requer contexto e setting. Pode ser comida, quer dizer, engolida de manhã, após uma ressaca moral ou física; à tarde, após uma notícia ruim ou no processo de reconhecimento da sua própria incompetência; ou mesmo no começo de noite, em casa,  em frente à TV, enquanto os pratos sujos de duas semanas lhe lembram que você não sabe cuidar de si mesmo. A pizza carioca, repito, não é só(?) comida, é terapia.

Há boas pizzas no Rio? Sim, claro, e a elas chamamos de pizzas paulistas, pois a verdadeira pizza carioca não pode ser boa, já que a sua missão não é gastronômica e, sim, espiritual.

Por isso, não vale ficar nessa comparação, já que estão em categorias diferentes. A pizza paulista satisfaz a matéria, enquanto a carioca conforta a alma. E saiba que eu estou pronto a defender essa ideia até a última fatia de pizza com meu tubo de ketchup contra sua garrafa de azeite.

En garde?

Extinção

Naquele último domingo todo mundo acordou cedo. Era um dia frio, frio mesmo, no mundo todo. E não choveu. Em lugar algum. Do mundo inteiro.

As pessoas, após acordarem, olharam pelas suas janelas e não se entristeceram com o céu cinza chumbo que circundava a Terra. Apenas sorriram e resolveram fazer as coisas que mais gostavam. Algumas foram trabalhar, mesmo sem precisar; outras visitaram parentes ou amigos; e muitas, mas muitas mesmo, foram pros parques e orlas passear e estar com pessoas que não conheciam.

E todos ficaram calados. Os trabalhadores se concentraram nas suas tarefas; os que visitaram outros apenas os abraçaram cheios de amor; e os que saíram às ruas simplesmente sorriam uns para os outros. E todos, mas todos mesmo, vez ou outra paravam o que estavam fazendo para olhar o céu. Aquele céu cinza chumbo. E sorriam, sentindo que o céu, como uma camada de proteção contra algo muito ruim, os defenderia o máximo possível contra qualquer mal.

Quando começou a anoitecer, as pessoas deixaram o trabalho, as famílias, os amigos, os parques e as orlas com uma sensação de dever cumprido, e se despediram umas das outras com acenos de cabeça discretos e sinceros. A hora, todos sabiam, tinha chegado.

Naquele último domingo, todo mundo foi dormir cedo. Tomaram banhos quentes e longos, botaram pijamas confortáveis e se esconderam do frio sob pilhas de cobertores aconchegantes. Quando todos, mas todos mesmo, já estavam sonhando, o céu cinza chumbo também resolveu partir e deu lugar a um incrível azul que ninguém pôde ver. Aos poucos, tudo, como o céu, também começou a ficar azul. As ruas, as florestas, as fábricas, as máquinas, os prédios, as casas, as pessoas. E esse azul, aos poucos, grau a grau, abaixou a temperatura com muita gentileza e cuidado até que todos, mesmo embaixo de seus grossos cobertores, estivessem congelados e preservados para as futuras gerações que não viriam.

E, assim, o dia e o mundo acabou.

Dezenas, centenas, milhares de anos passaram e todas as construções humanas ruíram. Nada que evidenciasse a nossa presença sobrou. Como uma piscadela do universo, sumimos no tempo.

Mas foi bom, bom mesmo, pois naquele último domingo tudo foi perfeito. Em 30 mil anos de consciência, naquele último momento, por pelo menos um dia, soubemos viver.

A humanidade, como um sonho de uma noite de verão cheio de som e fúria, veio e foi sem alarde, retornando a ser o pó de estrelas que nunca deixou de ser. Sem orgulho ou vergonha simplesmente fomos, simplesmente nos fomos. E nada ficou, pois nada fica. A não ser os céus azul e cinza chumbo que com carinho nos colocaram pra dormir.

Infiltração

Antes de invadir um novo território, é preciso espioná-lo; entrar nele como um fantasma que não vai mais voltar. Comece com um café da manhã na padaria local. Faça um pedido comum, mas com uma pequena diferença que fará com que seja lembrado depois. Ouça as conversas, aprenda os nomes da pessoas e suas relações. Não fale com ninguém a não ser que falem você. Coma, agradeça e pague a conta. Em dinheiro.

Passeie pelas cercanias. Visite a banca de jornal, compre um cigarro varejo e peça um isqueiro emprestado. Seja chato, mas só um pouco. Sente na praça e curta o movimento. Veja as mães brincando com as crianças, os velhos jogando damas, os desocupados deixando o diabo fazer suas cabeças de oficina. Esteja lá, mas não seja um deles. Pelo menos por enquanto.

Dê um tempo até almoçar. Circule pelo supermercado e pelo comércio local. Compre uma coisa ou outra, mas nada que chame a atenção. Crie uma pequena confusão durante o pagamento. Erre a senha do cartão, confira o troco errado. Depois de tudo resolvido, peça desculpa e pergunte onde é bom de almoçar. Siga a sugestão.

Sente, peça uma cerveja e o cardápio. Leia as opções com calma mesmo se já souber o que vai pedir. Chame o garçom e faça algumas perguntas tolas, mas não pareça idiota, apenas distraído. Escolha o mesmo que outra pessoa estiver comendo perto de você e peça apontando para o prato dela. Quando o garçom estiver indo embora faça um sinal pedindo outra cerveja.

Quando o prato vier, pergunte se tem pimenta. Da boa. Regue o prato com ela e coma com voracidade entre goles de cerveja. Quando terminar peça umas cervejas para viagem e ao pagar a conta faça uma piada sem graça. Sorria constrangido junto com o garçom e vá embora.

Vá para casa e volte alguns dias depois. Refaça o ritual, variando a padaria, o comércio e o restaurante. Dessa vez pergunte o nome das pessoas, mas só fale o seu se perguntado.

Faça disso uma rotina, aumentando o grau de cumplicidade a cada visita. Quando a mudança chegar, já será tarde mais para eles. Eles saberão seu nome, seus gostos e lhe dirão ao vê-lo “O de sempre, doutor?”. Pronto. Missão cumprida. Você já será da área. Não se tornará apenas local, será O LOCAL.

Parabéns pela infiltração bem sucedida, agente.

Como eu larguei o futebol (e você também pode, mas não precisa)

Olá, meu nome é Lisandro Gaertner e eu já torci pra time de futebol. Sério. Quem já me viu nos esporádicos encontros para assistir aos jogos da Copa do Mundo, enfurnado na cozinha comendo, bebendo e falando de assuntos aleatórios, enquanto o povo torce na sala, pode até não acreditar, mas, sim, eu já fui um torcedor.

Comecei a torcer, como a maioria, por influência do meu pai. Tinha uns 4 anos quando ele me deu uma camisa do Internacional. Meu pai, como todo bom gaúcho exilado, sentia prazer em não torcer para os times do Rio, apesar de secretamente ser vascaíno. O esforço, em todo caso, foi inútil. Fiquei dizendo pra todo mundo que era Colorado por umas duas semanas, até que a brincadeira perdeu a graça e, puff, não era mais Internacional. Só voltei a me interessar por futebol na Classe de Alfabetização.

Influenciado por uns maus elementos de 5 anos que ficavam perto dos balanços no recreio, comecei a torcer pro Flamengo. Minha mãe, tricolor, e meu pai, vascaíno enrustido, mesmo contrariados, apoiaram. Compraram camisa pra mim e tudo. Mas não foi tão difícil. No início dos anos 80, o Brasil inteiro tinha um caso de amor com o Flamengo. Acompanhei inclusive no meio da madrugada a final do campeonato mundial no dia, não esqueço, 13 de dezembro de 1981. Imaginem que conquista prum menino de 7 anos “ser” campeão do mundo .

Mas nem tudo eram flores. O Flamengo, apesar de ter o seu time mais lendário, também perdia. E eu sofria. De chorar. Lembro de ter ido ao Maracanã assistir a um jogo com um amigo e seus pais e voltar aos prantos para casa. Minha mãe me acalentou e plantou a semente que quase dez anos depois ia permitir a minha libertação:

– Meu filho- ela me disse-, você não pode levar o futebol tão à sério.

Você não pode levar tão à sério. Você não pode levar tão à sério.

Depois daquele dia, virei a casaca. Não tenho vergonha de admitir. Virei a casaca mesmo. Pra agradar meu pai e me livrar do sofrimento que era torcer pro Flamengo, virei Vasco.

Taí uma das coisas que mais me incomoda nos esportes de clube em geral: o estigma de virar casaca. Esse tipo de pressão para se manter ao lado de algo que não mais lhe agrada ou dá prazer é uma espécie de treino perverso para a lealdade incondicional. Se as pessoas fossem livres para virar a casaca, talvez estivessem mais acostumados a mudar de ideia sobre tudo e a nossa convivência seria bem mais harmoniosa. Posso estar exagerando mas essa é a minha opinião. Pelo menos por enquanto.

Me mantive Vasco, sem me ligar muito em Futebol, até mais ou menos os 10 anos. Novamente sob a influência de péssimos colegas de classe, voltei a acompanhar os campeonatos. O Vasco estava passando por uma boa fase na época e calhou que todos os meus amigos mais próximos também eram vascaínos. Pra ter assunto no recreio, passei a acompanhar mais os jogos e inclusive tinha carteirinha do clube do Vascaíno Doente, que era distribuída pelo radialista e, óbvio, vascaíno doente Áureo Ameno.

A carteirinha

Sim, isso é real, mas não é a minha

Essa fase durou uns 4 anos. Mesmo torcendo e acompanhando tudo o que podia, não me lembro de ter criado inimizade com ninguém ou mesmo humilhado os torcedores dos nossos fregueses na época. Torcia, mas era uma torcida mais introspectiva. O que eu curtia mesmo era ouvir rádio AM, bater papo e ler todos os jornais. Nenhuma vez nesse período fui aos estádios ou assisti a jogos com outras pessoas. Sempre tive esse espírito de viúvo aposentado que joga damas no Largo do Machado.

Um dia, chegou meu fundo do poço. O Vasco ia enfrentar o Flamengo na final do Carioca pelo bicampeonato. Depois de um jogo tenso e sem gols, aos 44 minutos do segundo tempo, Cocada, saído do banco há dois minutos, em disparada, sozinho, cravou o gol que consolidou a última vitória do Vasco sobre o Flamengo numa final de campeonato carioca até hoje. Dormi de alma lavada.

No dia seguinte, meus pais me acordaram em festa com o Jornal dos Sports e com o poster do time do Vasco. Quando me deixaram sozinho após diversas felicitações, senti um vazio tremendo. Que diabos estava fazendo com a minha vida? Minha identidade e minha felicidade eram dependentes de algo externo a mim? Será que ser Vasco era o que me definia? Não, eu não queria acreditar nisso, mas as evidências eram tremendas. Gastava uma hora por dia lendo os cadernos de esporte; mais uma hora ouvindo aos comentários da manhã; quando tinha jogo, mais duas horas; e pra finalizar uma hora de comentário esportivo noturno. Sem contar o tempo que conversava sobre futebol, mais de 20% da minha vida era devotada ao Vasco, uma entidade cujos participantes estavam pouco se lixando para salvaguardar a minha alegria e a minha saúde mental. Era muito caro para se fazer parte de algo. Escolhi ser sozinho.

Então, do dia pra noite, nunca mais acompanhei futebol nem outros esportes. Aos poucos esse meu desapego começou a se espalhar por outras áreas da minha vida e me libertou também de religião, ufanismo, posicionamento político, séries de TV e todas essas outras coisas que o povo trata como sérias mas não passam de clubinho.

Graças a Deus, não virei estraga prazeres, nem fico fazendo campanha pros outros seguirem meu caminho. Quando um grupo de amigos assiste a um jogo, até acompanho respeitosamente, mas sinto que desaprendi o futebol e quase sempre me pego fazendo perguntas imbecis. É quase como não ser católico e rezar o Credo nos casamentos em que somos convidados. Não cremos mas gostamos uns dos outros o suficiente para fingir.

Compartilho essa minha história, pois ela pode ajudar quem precisa se libertar de outras idéias ou simplesmente precisa virar a casaca. Afinal, o que descobri foi que nada que dizem de você é verdade, apenas aquilo que você mesmo acredita que você é. Por isso, saiba, você não é flamengo, botafogo, vasco, fluminense, ou mesmo brasileiro. Você pode ser quem você quiser, como quiser e ninguém tem direito de lhe criticar por isso. E você também pode mudar de ideia. Quantas vezes quiser. Garanto, em alguns momentos, virar a casaca pode ser extremamente salutar. Bom, é nisso que acredito. Pelo menos por enquanto.

Mas, cá entre nós, vou te falar, esses pernas de pau que botaram pra jogar nas Olimpíadas tão desafiando até o meu desapego. Ô, gentinha mais desclassificada, meu santo Dalai Lama. Não há zen budismo que nos permita suportar essa seleção brasileira.

007, Licença para matar, Licença para morrer

Uma das coisas que sempre me incomodou na franquia do James Bond foi a licença para matar. Na minha cabeça não entrava que uma licença dessas pudesse funcionar fora territórios da Rainha, quiçá dentro do próprio Império Britânico. Era suspensão de descrença demais pra mim.

Vez ou outra eu até me pegava imaginando a cena da prisão do James Bond num país desses do leste europeu:

– Chefe, esse é o agente secreto que se infiltrou no nosso país, matou dezenas dos nossos soldados e criou prejuízos de milhões de dólares.
– Muito bem, seu desgraçado. Agora vai sentir a fria letra da lei socialista. Qual o nome desse bandido, camarada?
– James Bond, senhor.
– Pô, camarada, onde já se viu?!
– O que houve, senhor?
– O James Bond tem licença para matar. Não sabia? Todo mundo sabe disso. Libere ele agora. E vê se não comete esse engano novamente. Quer me colocar numa crise internacional? E o senhor, senhor Bond? O senhor está bem? Posso lhe oferecer algo? Um martini? Nossos planos secretos? Minha esposa?

Com o passar do tempo comecei a perceber que a tal licença tinha um viés psicanalítico. Ele não tinha licença legal para matar, ele apenas se sentia livre para matar, ou melhor, a Inglaterra se sentia livre para matar quem quisesse. Contudo, para o Bond, essa licença tinha um caráter mais perverso: era uma licença para matar mulheres.

Sério. Preste atenção. Tirando Sylvia Trench, que estava nos dois primeiros filmes, nenhuma delas volta para contar história nos filmes seguintes. Pra piorar, aquelas pelas quais ele realmente se apaixona, Tracy Bond e Vesper Lynd, morrem no mesmo filme em que aparecem. Mesmo que não seja por suas mãos, a culpa, sim, é claramente dele. Portanto não é possível que essas mulheres sumam por mágica. A licença para matar, mesmo que metaforicamente, tem muito a ver com a relação de Bond com o sexo feminino.

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Alguém viu uma dessas bond girls por aí?

Talvez por isso goste tanto de três dos quatro filmes do Daniel Craig. Se tirarmos o Quantum of Solace da jogada, temos uma bela trilogia sobre a sua relação com as mulheres. Em Cassino ele se apaixona, é traído e vê sua paixão morrer. Em Skyfall ele “morre” na mãos de uma mulher, volta do morte acompanhado de um vilão sexualmente ambivalente até chegar ao seu local de nascimento para ver sua “mãe”, M, morrer em seus braços. Em Spectre ele é confrontado a respeito da sua incapacidade de se relacionar por uma psicóloga com a qual finalmente parte abandonando a sua missão.

Óbvio que a relação do homem com a sua Pátria, ou melhor Mátria, está aqui presente. Como precisa se devotar à “Rainha”, um fantasma abstrato e perfeito, ele não consegue se envolver com mulheres de verdade. Por isso suas relações são hipersexualizadas e breves. Não é possível manter o teatro do super macho por tempo demais sem fraquejar. Nesses três filmes, a sua heterossexualidade é diversas vezes ameaçada, física e psicologicamente, o que lhe permite fazer um trabalho psicanalítico, não para se relacionar melhor com as mulheres, mas, sim, para se libertar do serviço para a sua Majestade. Quem diria que o objetivo verdadeiro de James Bond era abandonar sua aventura e se tornar um indivíduo autônomo?

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“Sorry, Queen Bessy, gotta see about a girl”

Por isso quando vejo essas discussões sobre o novo Bond, nada me parece bom. Claro que Idris Elba e Gillian Anderson são super atores e dariam conta muito bem desse recado. Sei também que colocar um negro ou uma mulher nesse papel, a epítome do macho heterossexual branco, tem seu valor social, político e também narrativo. Mas sou contra. Não porque acho que exista uma tradição a ser respeitada, mas porque acho que Bond deveria ter uma licença para morrer.

Convenhamos, um dos pontos principais do personagem é quem o emprega. 007 é um agente de um governo monárquico lutando pela sobrevida de um império anacrônico. Quando havia a guerra fria, a Inglaterra aparecia como um poder moderador entre os jovens impérios capitalista e socialista evitando o fim do mundo. Depois da queda do muro isso parou de fazer sentido. Mesmo antes, nos anos 80, os vilões mudaram. Tivemos traficantes com Timothy Dalton, e nos 90, boa parte dos vilões eram corporações e seus donos. O Império agora se apresentava como o regulador das relações comerciais que ameaçavam o homem comum. Com Daniel Craig, já sabíamos que o Império e as corporações eram parceiras no crime e fomos obrigados a engolir terroristas psicopatas e super conspirações. A situação ficou tão triste que para que houvesse um mínimo de simpatia pelo herói e o que ele defendia, em todos os últimos filmes, Bond está meio ou totalmente à margem do governo. Porém, para não desvinculá-lo totalmente da Rainha, sempre houve M como um bastião de moralidade num governo corrupto ou ineficiente.  Uma estratégia fraca que não teria funcionado não fosse o talento de Judy Dench e Ralph Fiennes.

Por isso acredito que colocar quem seja nesse papel será apenas uma maneira de perpetuar um herói que luta por um governo nada democrático em quem ninguém mais confia. Qualquer ator ou atriz, se não fosse numa obra retrô ou intertextual, tornaria 007 um pastiche de um ícone que não faz mais sentido.

O que proponho? Vamos deixar Bond descansar. Vamos lhe dar licença para morrer e deixá-lo como uma obra representativa de um período histórico específico. Isso não o tornará melhor nem pior, mas apenas o que é: um herói de uma época conservadora em que o que importava era manter o Status Quo política, social e culturalmente. Tentar revivê-lo, seja por ganância ou amor ao personagem, não passa de uma nostalgia doente por algo que não voltará.

Mas você pode dizer que ficaremos órfãos de um protetor, que fará falta um herói, um espião que salve o mundo de ameaças secretas. Temos muitos assim, mas eles precisam falar ao mundo que vivemos e não a uma monarquia democrática utópica que sabemos não existir. Eles podem ser de diversas etnias, gêneros, religiões, ideologias ou nacionalidades, mas precisam falar com a realidade política que vivemos.

Para os nossos tempos, o único substituto real que vejo para James Bond e que fala ao nosso mundo é o Mister Robot. Não conhece? Vá ver. Aproveite que ainda só teve uma temporada e deixe a segurança do nosso mundo nas mãos um hacker viciado e esquizoide que luta contra tudo o que aí está. Como o agente secreto de Joseph Conrad, Mr. Robot, ao contrário de James Bond, é um herói do nosso tempo, é o herói de uma revolução iminente.

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F*ck Society diz nosso novo herói