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Lembra?

Você se lembra?

Lembra quando acordávamos nos domingos de manhã na casa de pessoas estranhas após horas de bebedeira e outros abusos? Lembra dos corpos estendidos em camas, sofás, poltronas e até no chão? Lembra de escrevermos de batom na cara dos que caíam bêbados mais cedo? Lembra das filas para usar o banheiro? Lembra de olhar pelas janelas em busca de algo que sabíamos não estar lá?

Lembra quando íamos em padarias estranhas comprar refrigerante, pão e mortadela para o nosso tradicional RPM de café da manhã? Lembra de nos perdermos e conversar com gente esquisita que sai de casa nos domingos de manhã? Lembra dessa gente? Dessa gente como a gente? Lembra dos porteiros que sabiam tudo que tínhamos feito mas sorriam pois queriam estar lá?

Lembra da mesa posta? Lembra de tomarmos café juntos? Lembra dos risos, dos papos e dos constrangimentos causados pelos beijos e pelas brigas do dia anterior? Lembra como tudo era ao mesmo tempo recordado e esquecido em prol da nossa unidade “familiar”? Lembra que achávamos que nunca iríamos nos separar? Lembra que éramos falsos? Lembra que queríamos ser sinceros? Lembra?

Lembra de assistirmos TV aberta? Lembra dos programas de umbanda, pesca, caminhões, variedades e sorteios que assistíamos em busca de assunto para termos o que falar? Lembra de assistirmos filmes velhos em VHS? Lembra de sabermos diálogos inteiros? Lembra de encenarmos os filmes que íamos assistir? Lembra de acharmos tudo muito chato?

Lembra de ficarmos em silêncio nos acarinhando e fingindo não sentirmos nada uns pelos outros?

Lembra de lermos os jornais? Lembra de lermos os cadernos de empregos, imóveis e carros projetando o que seríamos no futuro? Lembra que podíamos tudo? Lembra que fizemos nada? Lembra dos planos que fazíamos para a segunda feira? Lembra que sabíamos que nunca iríamos realizá-los?

Lembra dos risos e dos delírios que a ressaca e o rebate da mesma nos provocavam? Lembra daquilo que achávamos tão engraçado que nunca iríamos esquecer? Lembra de não lembramos exatamente o que foi? Lembra que esquecemos? Lembra?

Lembra de decidirmos corajosamente ir às ruas? Lembra do nosso destino? Lembra que as horas de discussão e indefinição sempre davam no mesmo caminho? Lembra de irmos no Sindicato do Chopp?

Lembra do caldo de feijão com cachaça? Da picanha fatiada na manteiga? Do chopp Brahma geladinho que na época achávamos genial? Lembra da fome? Lembra da sede? Lembra? Lembra?

Lembra de nos despedirmos em pontos de ônibus, táxis e trens? Do metrô, não. Do metrô, você não lembra, pois naquela época, como dizia o saudoso João Saldanha, o metrô era como o restaurante que fecha pro almoço e não abria aos domingos. Lembra que reclamávamos disso? Lembra que sempre citávamos o João Saldanha? Lembra de rirmos disso mesmo sem achar graça? Lembra?

Lembra que sentíamos saudades mesmo antes de irmos embora? Lembra que nos abraçávamos e fingíamos que a lágrima furtiva era apenas causada pelo sono? Lembra de abraçar nunca mais querendo soltar? Lembra dos beijos nos rostos que eram pra ser nas bocas? Lembra do amor que sentíamos? Lembra? Lembra?

Lembra de chegar em casa e nossos pais perguntarem: “Como foi a festa?” Lembra de mentir? Lembra de dizer: “Normal, normal”? Lembra de ir pro seu quarto, deitar na cama e lembrar? Isso, lembrar. Lembrar de tudo, como se fosse ontem, pois foi ontem. Lembra? Lembra?

Eu lembro? E você?

Você se lembra?

Por que precisamos acabar com Roberto Carlos

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Nesse período natalino, é só ligar a televisão para esbarrarmos com a onipresença de Roberto Carlos. Quando não temos a sua decrépita imagem na tela, são artistas da moda bajulando-o com frases feitas em forma de oração; ou novas estrelas da música ofertando ritualmente a sua energia vital ao cantor moribundo; ou jornalistas tentando inutilmente nos convencer da importância que ele nunca teve; ou subcelebridades que não conseguiram participar desse funeral anual lamentando estarem fora dessa festa nacional.

A onipresença de Roberto Carlos, na comemoração do nascimento de Cristo, é bem pertinente e serve como um belo contraponto, pois, como a comemoração do aniversário de alguém que já morreu há dois milênios, se trata do velório eterno de uma ideia que se recusa a morrer. Uma ritual de negação que nos impede de fechar o luto pela morte do tal proclamado “rei”.

Roberto Carlos, assim como a ditadura, sua irmã gêmea espiritual, morreu em meados dos anos 80. Mas, ao contrário dela, se manteve em coma, sustentado por aparelhos, por mulheres gordinhas, de óculos e por caminhoneiros, até que voltou a uma não vida e vaga pelos nossos natais e transatlânticos como um zumbi, evocando sentimentos de melancolia e saudades de controle. Cultuar o rei, assim como cultuar a ditadura, é acreditar numa nostalgia inútil e sadomasoquista. Se a ditadura fingia que iria nos ensinar a crescer e votar, apud Pelé, Roberto Carlos fingia que ia nos ensinar a amar.

Com sua postura pseudo sexy e sua manifestação ostensiva de uma masculinidade de romance barato, ele criou o AI-5 do romantismo. Promovida por esse arauto da ditadura emocional toda uma cultura de cafés da manhã, cavalgadas, cabelos encaracolados e metáforas sexuais de botequim se formou. Presos a essas crenças, passadas de pai e mãe para filhos, continuamos infantilizados e sem autonomia para escolher como amar. Assim como ainda não entendemos a democracia e esperamos que a salvação venha de políticos, ainda continuamos proferindo as músicas do “rei” como uma oração em busca do amor que acreditamos não merecer.

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Terrorista do romance ostentação

Precisamos nos livrar dessas saudades do macho alfa da ditadura. Precisamos destruir esse ícone psicosexual do mau caratismo bem intencionado. Precisamos saber que fomos e ainda somos vítimas de um esquema para tornar a todos nós vítimas e canalhas. Como a ditadura não nos ensinou a crescer, Roberto Carlos não nos ensinou a amar. E, enquanto continuarmos ritualizando a sua não morte todos os anos, não seremos livres para cometer nossos próprios erros e continuaremos a acreditar que o amor, a liberdade e a maturidade emocional são coisas que estão nos outros e não em nós mesmos.

Já te contei por que amo Copacabana?

Deixa eu te falar…

A briga começa como a maioria delas começa. O cansaço pesando pelo tardar da noite ou pelo despontar da madrugada; os ânimos exaltados pelo álcool e pelos resultados do futebol de meio de semana; a depressão inescapável de ter que conciliar, no dia seguinte, a ressaca iminente com um trabalho que não nos valoriza. Junte a isso um engano, um tropeço, uma palavra mal entendida, ou, até mesmo, um pequeno esbarrão e está pronta a confusão.

Os envolvidos se estranham. Olhares tortos, palavras tortas. O primeiro empurrão. Dessa vez, intencional. Se abre espaço no meio do bar e, em uma dança orquestrada, os brigões se afastam e se aproximam, mostrando o quanto querem lutar por sua honra e o quanto acham que o outro deve desistir.

As tentativas de intimidação surgem furiosas de um lado e do outro. Os outros clientes do bar, movidos pela demonstração de agressividade gratuita, começam a se sentir obrigados a tomar partido. Primeiro os amigos e conhecidos se posicionam. Depois as lealdades. Pelo time de coração. Pelas posições políticas. Por afinidades que ninguém consegue explicar. O que era uma briga entre duas pessoas vira uma inimizade ancestral entre facções.

Nisso entra em jogo o terceiro time. O time do deixa disso. Desmoralizado, sem entender bem o que se passa e sem argumentos para convencer a turba enfurecida, eles tentam impedir o inevitável com palavras de ordem e chavões inúteis:

– Pô, pessoal!
– Onde já se viu…
– Vocês são tão amigos.
– Vamos lá! Vamos fazer as pazes?
– Vamos parar com isso? POR FAVOR?!

Nesse balé desengonçado, o dono do bar, como o tocador de pratos de uma orquestra caótica, espera o momento certo de chamar a polícia. Objetivo: resguardar a integridade do seu empreendimento perdendo o mínimo de clientes. Sabe que, infelizmente, nunca agirá no momento certo. Na confusão, alguém esbarra numa garrafa que cai no chão gongando o início da luta.

Os ânimos se acirram. Os iniciadores da confusão aproximam seus rostos e respiram bufando um na cara do outro. Falta pouco para tudo degringolar. Apenas um tapa. Um cuspe. Um olhar mais feio. Então…

– Olhem lá!- alguém grita da porta do bar.

Alertas pela adrenalina gerada nas preliminares da briga, todos se viram. Caminhando onde os carros deveriam passar, cinco mulheres, para dizer a verdade, meninas, lindas, no primor da sua juventude, tomam a rua numa passeata misteriosa. Rindo e languidamente apressadas, elas caminham pelo meio da avenida com destino e origem ignorados. Apenas um detalhe: todas estão vestidas de havaianas. É. Havaianas. Com colares de flores de papel crepom; tops imitando cocos; arranjos exagerados nos cabelos; e saias de palha plástica colorida. E, para completar, de pés inexplicavelmente descalços. Alheias à briga, elas flanam faceiras, se dando empurrões e cutucos assim como os brigões. Só que, no caso delas, sem agressividade, apenas com cumplicidade.

No bar, homens e mulheres, inebriados por sua presença, respiram fundo tentando sentir o seu perfume. Sentem. Ou imaginam que sentem. Não faz diferença. E sorriem. Verdadeiramente.

As teorias começam a surgir. Assim como as dúvidas. Quem são elas? De onde vem? Para onde vão? O que diabos estão fazendo aqui? À essa hora?! As dúvidas e curiosidades são muitas e suficientes para distrair todos do conflito que parecia ser tão necessário resolver.

As meninas dobram a rua e somem a caminho da praia. Como um perfume marcante, seu riso ecoa nas paredes dos prédios nos lembrando da sua existência, até que some num silêncio ensurdecedor. De um momento para o outro, aquilo que parecia tão real e tão correto deixa de existir de fato.

Todos baixam as cabeças. Não sabem mais o que fazer. Alguns se sentam, aturdidos. Outros aproveitam para pagar a conta e escapar à francesa da confusão. Alguns, magoados pelo sumiço das meninas, lembram da briga e transformam a sua frustração em agressividade, retomando o conflito. Os brigões, mesmo sem clima, voltam às suas posições iniciais. Podem até apanhar mas nunca desistirão daquilo em que acreditam. Se perguntam sem resposta: qual era mesmo a razão da briga? Voltamos ao começo.

Os envolvidos se estranham. Olhares tortos, palavras tortas. Antes do novo primeiro empurrão, uma surpresa.

Despontando no início da rua, uma sexta havaiana, não tão bonita, mas infinitamente mais charmosa, corre esbaforida atrás de suas amigas, deixando seu colar cair pelo caminho.

– Me esperem. ME ESPEREM!

O bar inteiro é obrigado a cair na gargalhada. Os brigões, envergonhados com a sua postura, se abraçam e oferecem, mesmo sem dinheiro suficiente, pagar a conta um do outro. O dono do bar suspira por ter escapado por pouco da decisão entre proteger a estrutura do bar e manter a clientela. Os outros clientes agora dão razão à turma do deixa disso e os parabenizam por tentar manter a paz.

– Paz. Amor. Beleza. Assim não é melhor de se viver?- sentenciam e fecham o caso.

As saideiras são pedidas e o mais empolgado dos clientes, sempre há um deles, sai correndo pelo meio da rua atrás das meninas com o colar abandonado na mão. Depois da meia noite, busca por sua Cinderela havaiana.

– Ei, espere por mim também. ESPERE POR MIM!

Já te contei por que amo Copacabana? Deixa eu te falar…

A briga começa…

Cada um tem a meritocracia que merece (ou aceita)

Montagem

Meritocracia, uma promessa (vazia) de todos

Meritocracia é uma daquelas palavras engraçadas que, livres de julgamento moral, vão adquirindo um caráter positivo ou negativo com o seu uso. O mesmo aconteceu com qualidade. Se você for lá na sua origem, vai descobrir que qualidade é apenas aquilo que qualifica. O sentido de qualidade como um qualificativo de caráter positivo foi sendo criado, alguns diriam distorcido, pelo seu uso. E hoje, sempre que se fala em qualidade, pensamos em características positivas. Com meritocracia aconteceu a mesma coisa.

Meritocracia é um sistema de gestão onde aqueles que tem o poder (cracia) o recebem por conta de seus méritos. Hoje, seja nas campanhas políticas ou dentro das empresas, vemos os líderes bradando que irão instituir a meritocracia ou que suas instituições funcionam como uma. Quando eles dizem isso, procuram apenas dizer que as pessoas com méritos irão ser recompensadas com o poder. O problema nesse discurso é que é impossível instituir uma meritocracia, pois, cá entre nós, todas as instituições são meritocráticas. Continue lendo

Tesouradas

Oi, doutor, tudo bem? Ainda não abrimos, mas pro senhor claro que dá pra fazer uma exceção. Sente aí. Vai ser só o cabelo? Tudo bem. Vai querer ver aquela revistinha? Chegou uma ótima! Um filé! Ah, tá com livrinho? Eh, eh, eh. Desculpe a piada. Eu entendo, entendo. Vai que a patroa te pega aí, né? Com aquela revista na mão? A coisa não vai ficar boa pro seu lado, né? Mas vamos começar… Continue lendo

Os livros que me fizeram mal na infância

Um dos rituais que mais me agrada no início do ano é a limpeza das estantes. Confiando na velha máxima “comprar mais livros do que consigo ler é crer na imortalidade”, abarroto, todo ano, a minha pequena biblioteca com mais do que ela pode comportar. Com aquele livro que comprei pra falar mal, e nem li; com a biografia daquele sujeito com o qual fiquei obcecado por exatamente 34 horas; ou com os jogos e quadrinhos que readquiri numa tentativa infrutífera de reviver tempos que não passam mais. Acreditem, no final contas, somando aos livros que mereciam ser comprados, não é pouca coisa. Chega uma hora que todo esse suporte emocional de papel começa a causar um peso excessivo nas minhas finanças e na estrutura física da minha casa. Por isso, preventivamente, tiro das minhas estantes tudo aquilo que farei circular pelo mercado de usados. É quase como um cateterismo em que as obstruções das minhas veias de leitor vão parar na lanchonete da esquina para o prazer alheio.

O engraçado é que tem livros já lidos que sempre sobrevivem a essa limpeza. A maioria por utilidade de consulta, desejo de releitura ou simples valor afetivo. Alguns, especialmente alguns infantis, escapam há anos desse ritual por serem, além de tudo, simplesmente meus livros de formação. Ou melhor, má-formação. Continue lendo